Selvageria legalizada

“Na pequena experiência que tive na reconstrução de Timor Leste sob os auspícios das Nações Unidas, pude me familiarizar um pouco com o direito indonésio. Participei da reedificação das instituições jurídicas e das primeiras investigações das atrocidades indonésias durante os 26 anos de ocupação de Timor Leste, em que um país de 200 milhões de habitantes (hoje 240 milhões) quase dizimou uma pequena nação de 1 milhão de habitantes. A Indonésia utilizou largamente a técnica de combate denominada escudo humano, crime de guerra segundo a IV Convenção de Genebra, que consiste em fazer marchar à frente das colunas de seu exército familiares do inimigo, mulheres, crianças e velhos, enquanto disparavam fogo pesado contra os timorenses que lutavam por sua independência.
Como é usual em transições políticas para evitar vácuos normativos, o nascente Estado (…) aplicava a legislação indonésia até que o país contasse com um legislativo eleito apto a elaborar novas leis. Ocorre que o Código de Processo Penal indonésio era tão selvagem, tão inquisitivo, tão incompatível com o devido processo legal, com os princípios das Nações Unidas, com um mínimo de dignidade para o indivíduo suspeito de uma infração penal, que foi preciso que as Nações Unidas improvisassem às pressas uma resolução que fizesse as vezes de processo penal para funcionar para o cotidiano dos crimes comuns e para as grandes atrocidades. Noutros termos, o direito indonésio não é selvagem apenas na prática, como frequentemente ocorre no Brasil, mas também o é em teoria. No país que possui a polícia secreta mais capilarizada do mundo, de fazer inveja às imaginações mais férteis de ficções sobre o macartismo e o stalinismo, não sobra muito nem sequer para um arremedo de estado de direito. (…).
Pois bem, esse é o país que se sente com superioridade moral (ou cinismo) para condenar indivíduos à morte por tráfico de drogas, inclusive um diagnosticado com esquizofrenia, depois de estarem no corredor da morte por tempo equivalente à pena máxima prevista para o tráfico de drogas no Brasil. Talvez sua inconsciência tenha amenizado seu sofrimento e sua dor, pois o outro, segundo relatos, soube de tudo até o último momento, teve crise de choro, de diarreia – logo assepsiado à distância com jatos d’água, porque precisava ser conduzido à morte limpo -, para depois seguir para o crematório. Até a última visita de parente ocorreu mediante propina.
Dirão alguns, se não muitos, ‘mas é um traficante, e os que morreram das drogas que ele traficou?’. A isso eu respondo: qual a utilidade dessa morte ritualizada em relação à outra? Têm a sociedade e o Estado o direito de matar por vingança apenas, sem utilidade?”

De Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos, subprocurador-geral da República

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