Sobre o direito de morrer como travesti
Em 1998, cercada de travestis e ativistas gays, Andréa de Mayo pediu o microfone na plateia do Programa Livre. Queria fazer uma pergunta para o convidado daquela tarde, o ultraconservador Afanasio Jazadji, então deputado estadual pelo PFL paulista. Ela estava furiosa. Com cabelos negros, crespos e longos, trajava calça social e um camisão listrado de mangas curtas. Não usava maquiagem nem adereços, exceto um relógio de pulso, e tinha a voz fina. Era deliberadamente uma figura ambígua, que trafegava entre o masculino e o feminino.
Transmitido pelo SBT, sob a batuta de Serginho Groisman, o Programa Livre se notabilizou por promover debates acalorados. Àquele dia, o apresentador e o público sabatinavam Jazadji sobre questões de gênero. O parlamentar, claro, defendia aguerridamente a tradição e achincalhava os que a colocavam em xeque. “Vi-aaa-do! Conversa de viadinho, de mariquinha!”, bradava, com sotaque italianado, apesar das origens romenas. Mal pegou o microfone, Andréa mirou o deputado e disparou: “Quando o senhor saiu às ruas angariando votos, disse para o indivíduo homossexual ‘Não vote em mim’?” Os aplausos e gritos da plateia quase abafaram a resposta do político. “Não, não, absolutamente…”, admitiu Jazadji. Ainda irritada, Andréa jogou o braço esquerdo para o alto e para trás, como se falasse: “Então vá se catar!”
A cena encontra-se no YouTube e dura míseros onze segundos. Não deixa de ser uma relíquia, já que a internet reúne poucos vídeos com Andréa. Ela – que nasceu Ernani dos Santos Moreira Filho e se definia como travesti, embora nem sempre envergasse roupas ou acessórios de mulher – morreu em 2000, logo após comemorar 50 anos. Principalmente no underground de São Paulo, sua cidade natal, ficou conhecida pelas peripécias noturnas e por defender com unhas (às vezes, coloridérrimas) e dentes (bem cuidados) a dignidade dos LGBT. “O palhaço pinta o rosto para viver. O travesti também. Por que o travesti não trabalha? Quem dá trabalho para o travesti? Me conta isso! Se falta trabalho para pai de família, vão dar trabalho para travesti?”, resumiu em 1985, no programa Comando da Madrugada, conduzido pelo telejornalista Goulart de Andrade.
Depois de um longo ostracismo, quando nem mesmo os movimentos gays costumavam evocar o legado de Andréa, a militante desbocada e pioneira está retornando às discussões sobre os direitos dos transgêneros. É que, em novembro de 2016, por iniciativa da prefeitura paulistana, o túmulo dela no cemitério da Consolação recebeu uma nova identificação. Agora, os que visitarem a sepultura descobrirão que ali jaz não apenas Ernani dos Santos Moreira Filho, como anuncia a placa de bronze original, mas também Andréa de Mayo, conforme indica a placa recém-afixada. As duas inscrições aparecem juntas, uma embaixo da outra.
Já faz algum tempo que, em diferentes documentos, travestis e transexuais vêm conseguindo substituir seus nomes de batismo pelos adotados socialmente. O reconhecimento oficial, desta vez, se estende à seara dos mortos. Se a ativista decidiu viver como Andréa, gesto que lhe custou um bocado, por que haveria de morrer somente como Ernani?
Prohibidu’s
“Pai, vou operar logo. Preciso tirar a merda do silicone. Está dando rejeição.” Era uma sexta-feira quando Andréa comunicou por telefone que iria se submeter à delicada cirurgia. Avisou não o pai biológico, com quem tinha péssima relação, mas o amigo e guia espiritual Walter Alegrio – ou Pai Walter de Logun Edé, sacerdote iniciado no candomblé da nação Egbá-Arakê, a mesma de Mãe Menininha do Gantois. “Meu filho, nós, do santo, nunca fazemos nada importante sem ouvir os orixás. Não se opere antes de jogar os búzios e conferir se o momento é propício”, aconselhou o religioso, que sempre se referia à travesti no masculino. Ela concordou. Naquela manhã, Pai Walter viajaria para o Rio de Janeiro. Planejava voltar uns dias depois e consultar os búzios diante da própria Andréa.
Bem alta e branquela, a travesti ostentava coxas e nádegas imensas (os seios, em contrapartida, se revelavam pequenos). O corpão desabrochara da pior maneira: à custa de hormônio e muito silicone industrial, injetado sem nenhum acompanhamento médico. Na época, quanto mais litros do produto uma travesti aplicasse, mais poder detinha entre os pares.
Discriminada pela família, a futura militante saiu de casa antes dos 18, ainda sob a máscara de Ernani. Morou na rua e abraçou toda sorte de bicos: lavava carros, engraxava sapatos, varria calçadas. Tentou cantar e dançar profissionalmente, mas não deslanchou. Com 20 e poucos anos, resolveu se montar e virou Andréa de Mayo. O sobrenome celebrava o mês em que Ernani nasceu. Por ironia, acabou se mostrando premonitório, uma vez que a travesti morreu igualmente em maio, no dia 17.
Quem a conheceu jura que não bebia álcool, não consumia drogas nem se prostituía. Ganhava dinheiro negociando carros e como dona de boates – a Val Improviso e a Prohibidu’s, onde garçons trabalhavam nus, se tornaram míticas. Frequentemente, recepcionava os habitués dos nightclubs em companhia de Al Capone, um cão pequinês. Quando sobrava grana, comprava apartamentos, abarrotava-os de beliches e alugava os leitos para outras travestis. Há relatos de que também atuava como cafetina. Explosiva, não fugia de brigas. Andava com um nunchaku, o bastão duplo das artes marciais, sob o braço – alguns afirmam que se tratava de uma corrente – e chegou a levar seis tiros de um namorado.
Curiosamente, em oposição à faceta agressiva e oportunista, exibia um lado protetor. Ajudava favelas e instituições de caridade, acolhia travestis com Aids, denunciava preconceitos contra homossexuais e reivindicava a criação de um estatuto que garantisse todos os direitos da comunidade LGBT.
Batonzinho
“Em maio de 2000, retornei de viagem como previsto e procurei Andréa imediatamente. Pretendia jogar os búzios para ela”, relembra Pai Walter. Foi quando recebeu a notícia: negligenciando as recomendações do amigo, a travesti se operou antes de escutar os orixás. Sofreu complicações pós-cirúrgicas e não resistiu. Tinha pressa em extrair o silicone tanto por razões de saúde quanto estéticas. Já não suportava ver o corpo deformado – de tal modo que, nos últimos tempos, raramente se montava. Passava um batonzinho e olhe lá.
Segundo o guia espiritual, o pai biológico de Andréa não deixou que a enterrassem no jazigo dos parentes. “Autorizei, então, que pusessem o menino no túmulo de minha própria família”, conta o sacerdote, que completa 69 anos em março. Quase duas décadas depois, quando o Serviço Funerário do Município de São Paulo manifestou o desejo de reparar a memória da ativista, Pai Walter permitiu que instalassem a nova placa, doada pelo professor e arquiteto Renato Cymbalista, um dos idealizadores do ato. “Gostava à beça de Andréa”, diz o guia. “Nunca o tratei no feminino porque não reconheço travestis como mulheres. Ele respeitava minha opinião. Eu também respeitava a dele. Cada um com seus pecados, né?”
(revista piauí)