João Moreira Salles: "Fiz o filme para me curar"
Em seu novo documentário, “Santiago”, que estréia neste mês, João Moreira Salles se expõe como nunca em sua obra. Ele conta que concluiu o longa em meio a uma crise pessoal e que pretende abandonar o cinema
Se “Santiago” apenas retratasse um mordomo exótico, seria um filme curioso, como os inúmeros que abrem espaço para personagens incomuns. Se desenhasse o mesmo retrato e ainda desnudasse os bastidores do fazer cinematográfico, seria um filme curioso dentro da extensa família de produções que pensam sobre si próprias. O novo trabalho de João Moreira Salles exibe as duas características, mas também uma terceira, o que o torna absolutamente original e, talvez, um marco entre os documentários brasileiros.
Por partes: o mordomo em questão se chamava Santiago Badariotti Merlo. Argentino de sangue italiano, trabalhou durante três décadas para o banqueiro e diplomata Walther Moreira Salles, pai de João e de outro cineasta, Walter Salles. Certamente, pouquíssimas figuras conseguiriam se revelar tão peculiares quanto Santiago, um tipo que tocava castanholas e venerava música erudita. Pelas manhãs, separava pequenos pedaços de papéis, preenchia-os com aforismos (“abortos mentais”, explicava) e os disseminava por todo canto. Não bastasse, encontrava tempo para elaborar uma espécie de enciclopédia, em que registrava a biografia de reis, aristocratas, chefes indígenas, astros de Hollywood e da TV. Algo como a história universal das celebridades. Eram centenas e centenas de listas, que o acompanharam até a morte, em 1994.
João cresceu ao redor de Santiago num casarão da Gávea, hoje a sede carioca do Instituto Moreira Salles. Quando tinha 30 anos, em 1992, decidiu rodar um filme sobre o antigo mordomo, àquela altura já octogenário e morando sozinho num pequeno apartamento. Por alguns dias, entrevistou o ex-empregado e o registrou de incontáveis maneiras. No entanto, nunca concluiu a obra.
Em 2005, depois de se tornar um documentarista premiado (é autor de Notícias de uma Guerra Particular, Nelson Freire e Entreatos), retomou o longa-metragem sem saber exatamente que caminhos seguir. Acabou produzindo um segundo filme que reflete sobre o fracasso do anterior. Em “Santiago”, não há imagens novas. O cineasta — atualmente com 45 anos — aproveita o material que captou no passado e o remonta. Amarra as cenas por meio de uma narração em off. Eis o pulo do gato, a terceira característica que ilumina o documentário: a narração, na primeira pessoa, não só exprime os anseios, os dilemas, as falsificações e as mesquinharias da filmagem de 1992 como destrincha as memórias e as inquietações de João Moreira Salles. Falando do mordomo, do casarão e do longa que naufragou, o diretor fala de si com uma rara franqueza.
Leia, abaixo, a entrevista que ele concedeu a BRAVO! no Rio de Janeiro:
BRAVO!: Você é um documentarista reconhecido que sempre zelou pela discrição. No entanto, em “Santiago”, resolveu se expor publicamente. Por quê? É uma auto-sabotagem?
João Moreira Salles: Não, talvez seja exatamente o contrário — uma tentativa de me salvar, de me curar. Fiz “Santiago” pensando sobretudo em sanar as aflições que me rondavam a alma e que, de certo modo, ainda me atormentam. Trata-se de um filme essencialmente terapêutico. Quando decidi rever o material que rodei em 1992, tinha 43 anos e atravessava uma intensa crise. Estava adquirindo a consciência muito profunda de que as coisas realmente passam e de que não conseguimos recuperá-las. Para mim, que não acredito em nada, que não alimento nenhuma fé metafísica, a morte e a passagem do tempo são problemas imensos, obsessões que sempre me acompanharam. A diferença é que, com 30 anos, possuía apenas uma compreensão abstrata, intelectual do assunto. Agora, a compreensão se tornou concreta. Compreendo com as tripas. Intuitivamente, julguei que retomar o documentário inacabado me ajudaria a organizar o caos em que imergira. Há quem, no meio de uma tempestade existencial, resolva usar drogas, viajar a Lourdes e clamar por um milagre, conhecer o Dalai Lama ou praticar esporte. Eu resolvi fazer um filme.
Em que sentido fazer o filme poderia contribuir para tirá-lo da crise?
Pelo fato de que Santiago também estava às voltas com a passagem do tempo, ainda que à maneira dele. As listas de celebridades que elaborava pretendiam imortalizar aquela gente toda. Santiago tinha uma concepção de vida e morte quase helênica e, por isso, bela. Para os gregos, um homem morre quando o esquecem e vive quando o lembram. Se Homero lembra, o guerreiro Aquiles existe. Se Homero não lembra, Aquiles deixa de existir. Assim, realizar um filme sobre Santiago significava realizar um filme sobre as questões que me assombram. Era um jeito inconsciente de me aproximar do problema com serenidade, sem tanto horror. Digo “inconsciente” porque, quando decidi resgatar as imagens, não fazia idéia do que iria encontrar ali. Não me recordava das cenas.
E funcionou? Concluir o filme lhe trouxe paz?
Não por completo. Mas tirou muito do veneno, da pimenta que o problema destilava em mim. Só os loucos se tranqüilizam inteiramente com a consciência da finitude… Ao montar o filme, percebi um aspecto na figura de Santiago que me comoveu e que contribuiu para me apaziguar um pouco. As listas que ele transcreveu durante décadas não têm função prática nenhuma. Revelam-se inúteis, se levarmos em conta a noção de utilidade que costumamos atribuir às coisas. Entretanto, Santiago agarrou-se àquela inutilidade na esperança de engrandecer a própria vida. Deu sentido à sua existência dedicando-se a algo que não é nada. Agiu como cada um de nós deveria agir. Até porque, no limite, tudo o que produzimos acaba se mostrando tão inútil quanto as listas de Santiago. O próprio cinema é inútil.
O cinema?
Exato, ainda que boa parte dos cineastas não concorde. O universo funcionaria perfeitamente sem o cinema — e sem a literatura ou as artes em geral. Adoro aquele célebre verso de W. H. Auden: “A poesia não faz nada acontecer”. Os poemas, os filmes, as pinturas são inúteis. Eis o que os enche de beleza em um mundo absolutamente utilitarista. Na verdade, a crise que enfrento decorre também das dúvidas acerca de minha profissão. Nunca me considerei um cineasta. E nunca fiquei à vontade entre cineastas justamente por não partilhar do entusiasmo com que eles discutem o cinema. Alguns livros e alguns quadros me causaram impacto maior do que os melhores filmes a que assisti. É uma deficiência minha, não do cinema. Encaro o gesto de filmar apenas como um trabalho. Um acidente. Não se trata de uma vocação genuína. Não é dali que extraio prazer. Tenho, inclusive, lacunas enormes em minha formação e não me sinto obrigado a superá-las.
Que lacunas?
Conheço bem a tradição do documentário, mas não vi obras ficcionais importantes. Não vi nada de F. W. Murnau, por exemplo. Nem “Profissão: Repórter”, de Michelangelo Antonioni, ou “Ladrões de Bicicleta”, de Vittorio De Sica. Vi poucos westerns de John Ford, já que o gênero quase sempre me aborrece. Enfim… As lacunas são incontáveis.
Falando em lacunas, por que você não conseguiu terminar “Santiago” da primeira vez?
Porque, na época, achei que as imagens careciam de fluência narrativa. As cenas não se ligavam. Faltavam elos. Não notei que havia um terceiro protagonista no filme — eu próprio. Ou melhor, a minha relação com os outros dois personagens: o mordomo e a casa da Gávea. Daí a dificuldade de montar o longa. É como se quisesse encenar a tragédia de Otelo e Desdêmona sem incluir o Iago. Precisei de 13 anos para me dar conta dessa ausência. Assim que a identifiquei, não pude fugir do óbvio: ou me expunha ou o filme continuaria capenga. Claro que relutei imensamente à hipótese de me mostrar por saber que um fio muitíssimo tênue separa a auto-exposição do narcisismo. Foi quando li uma declaração do cineasta francês Chris Marker: “O uso da primeira pessoa num filme equivale a um ato de humildade. Tudo o que tenho a oferecer sou eu mesmo”. Se necessitava de um álibi, acabara de o encontrar. Resolvi, então, mergulhar de cabeça na aventura. Vou me expor? Que seja como em uma sessão de psicanálise: nada de esconder as mesquinharias, os golpes baixos, as fraquezas.
Por isso você não cortou as cenas em que trata Santiago de modo autoritário, quase agressivo?
Sim. Em 1992, talvez devido à onipotência juvenil, cultivava idéias extraordinariamente pretensiosas sobre cinema. Desejava conceber um filme de uma beleza absoluta, de um rigor absoluto, glorificando o que existe de pior no formalismo estéril. E enxergava qualquer documentário como sinônimo de controle. O diretor elimina do mundo todos os imprevistos e manda os personagens repetirem 15 vezes a mesma seqüência até alcançarem uma espécie de perfeição. Muito do meu autoritarismo, da minha ansiedade no set derivava dessa postura rígida, dogmática. O curioso é que não a percebia. Agora, penso exatamente o oposto: não temos como controlar nada. O acaso, portanto, deve fazer parte do filme. O fortuito, a surpresa, o acidental. Há documentaristas que saem para a rua com um mapa, sabendo o que procuram. E há aqueles que saem sem mapa nenhum e sem saber direito o que querem. Estes me interessam mais hoje em dia. Eu, antigamente, carregava um mapa. E o mapa só indicava uma autoban, uma rodovia plana; não considerava atalhos ou estradas vicinais.
Mas Santiago parecia gostar da encenação e do controle sobre a realidade. Ele, de certa maneira, passou a vida medindo os próprios gestos, incorporando um tipo exótico e caricato. Você traiu Santiago quando optou por questionar o controle e a encenação no filme?
Todo documentarista acaba traindo seus personagens de uma ou outra forma. Sempre os respeita, exceto se assume o comportamento de um mau-caráter, e sempre os decepciona. Afinal, os personagens jamais se reconhecem integralmente na tela. Em parte, o Santiago do filme é ele mesmo. Em parte, é a ficção que faz de si próprio e o desmonte dessa ficção.
Num único momento do documentário, Santiago dá sinais de que abdicará espontaneamente da encenação para contar algo muito íntimo. Tudo indica que pretendia se confessar gay. No entanto, você o impediu. Por quê?
De novo, porque eu estava disposto a ouvir somente aquilo que desejava escutar e não o que ele queria dizer.
Mas por que você não estava disposto a ouvir especificamente aquela revelação?
Por julgar que Santiago iria se expor em excesso. Tentei protegê-lo e, lógico, evitar meu próprio constrangimento diante da situação inesperada.
Hoje você permitiria que ele falasse?
Sem dúvida nenhuma. Santiago queria falar.
Outro ponto chama atenção no documentário. É quando você admite que, no set, não deixou de agir como patrão e Santiago não abandonou o papel de mordomo. Levantando uma lebre tão apetitosa, você não corre o risco de a leitura social se sobrepor às demais leituras possíveis do longa?
Corro, embora a leitura social seja benéfica para o país. Raras vezes a classe dominante se mostra nos filmes brasileiros. Cinema, por aqui, corresponde quase sempre à equação “quem tem filma quem não tem”. Nossos cineastas em geral se preocupam com o diferente. Retratam mundos alheios, o sertão, a favela, a periferia. Olhar para si é mais complicado — não como desafio estético, mas como desafio existencial.
Você já declarou que, depois de Santiago, deverá encerrar a carreira de documentarista. Deverá mesmo?
Produzi o filme com uma sensação de ponto final. “Santiago” me possibilitou fechar uma porta, concluir um ciclo. O que penso sobre documentário está lá. Se abrirei novos ciclos, ainda não sei. Por ora, não tenho nenhuma vontade de abri-los. “Santiago” é o único filme que reconheço como meu. Outros diretores poderiam assinar os demais documentários que fiz. Já “Santiago” só poderia sair de mim.
Há um certo narcisismo nessa afirmação, um tom triunfal de quem se julga melhor hoje do que ontem. Aliás, idéia semelhante se insinua no filme, não?
É uma interpretação legítima. Mas, usando o mesmo raciocínio, poderia argumentar que, ao me julgar melhor hoje, denuncio minha imensa soberba e, portanto, sou pior. Impossível escapar das armadilhas… Se houve progresso, não se trata de progresso moral. Não me tornei mais virtuoso, e a próxima etapa não é a santidade.
Para terminar, repito a pergunta que aparece em “Viagem a Tóquio”, filme de Yasujiro Ozu citado por você em “Santiago”: a vida é uma decepção?
Como a personagem de Ozu, eu deveria responder “sim” e dar um grande sorriso depois. Porque a inteligência é encontrar o júbilo de um sorriso diante do que não se pode evitar.
Você o encontrou?
Estou sorrindo agora, não estou?
Gostei muito de assistir o documentário em 2008 e da leitura da entrevista quase quatro anos depois.Em ambos momentos, eu senti com muita força a sinceridade, a sensibilidade e a coragem de João Moreira Salles.
Na última instancia, em destaque, a capacidade do entrevistador.