Uma carta para o lateral do Corinthians que foi acusado de injúria racial
MARIO ARANHA, em depoimento a Armando Antenore
Caro Rafael Ramos,
Faz quatro anos que não vejo um jogo de futebol. Nas quase duas décadas em que fui goleiro, vivi o esporte intensamente. Era um atleta obstinado. Treinava sem reclamar, estudava os adversários e me esforçava para manter o preparo físico. Hoje não acompanho os jogos nem pela tevê. Mesmo assim, fiquei sabendo do que rolou no dia 14 de maio. O Corinthians enfrentava o Internacional em Porto Alegre. O Campeonato Brasileiro estava na sexta rodada, e o Beira-Rio recebia cerca de 17 mil torcedores. Quando faltavam quinze minutos para o fim da partida, o volante Edenilson, do time gaúcho, acusou você de racismo. Ele é negro. Você é branco.
O juiz Bráulio da Silva Machado interrompeu o jogo. Queria entender melhor o que se passava. Edenilson disse que você o xingou de macaco. O árbitro anotou o caso na súmula, mas não tomou mais nenhuma providência. O jogo continuou e acabou empatado: 2 a 2. Logo depois do confronto, Edenilson prestou queixa à Polícia Civil, que foi até o vestiário e prendeu você por injúria racial. O Corinthians pagou a fiança de 10 mil reais na madrugada do dia 15. Agora você responderá ao inquérito em liberdade. “Sei o que ouvi”, escreveu Edenilson no Instagram. Mas você nega tudo: “Não fui, não sou e nunca serei racista.” O Corinthians acionou o Centro de Perícias Curitiba para analisar o vídeo de 28 segundos que registrou parte da discussão em campo. Os técnicos concluíram que ninguém falou a palavra “macaco”. No bate-boca, de acordo com a perícia, o volante do Internacional berrou “maluco!”, e você, “pô, caralho!”.
Como negro, minha tendência é acreditar no Edenilson. Também sei o que já ouvi dentro dos gramados… No entanto, não vou questionar o parecer de especialistas. Só decidi redigir esta carta porque você jogava em Portugal, onde nasceu, e virou lateral do Corinthians há apenas dois meses. Certa vez, o compositor Tom Jobim disse que o Brasil não é para principiantes. Falou de gozação, mas acertou em cheio. Nem os brasileiros sabem direito como lidar com o Brasil. Imagine os estrangeiros… Provavelmente, você não compreende muito bem em que pé está a luta racial por aqui. Gostaria de explicar.
Para começo de conversa, você não é o primeiro jogador a sair preso de um estádio no país. Me lembro perfeitamente de outro episódio. Em abril de 2005, no Morumbi, o São Paulo recebeu o Quilmes pela Taça Libertadores da América. Uma hora, o zagueiro Desábato, do clube argentino, ofendeu Grafite: “Negro de merda!” Indignado, o centroavante são-paulino empurrou o rosto do adversário e acabou expulso. Assim que a partida terminou, a polícia levou Desábato à delegacia. Ele ficou detido por duas noites. Pagou fiança e voltou para Buenos Aires. Grafite retirou a queixa em outubro daquele ano e sepultou a pendência.
Infelizmente, é comum que atletas ou torcedores do Brasil sofram injúria racial na Libertadores. Só em 2022, já aconteceram oito casos. Os racistas estavam nas torcidas do Olimpia (Paraguai), do Emelec (Equador), do Millonarios (Colômbia), do Universidad Católica (Chile), do Estudiantes de La Plata, do Boca Juniors e do River Plate (os três da Argentina). A Confederação Sul-Americana de Futebol abriu processos disciplinares para investigar os ataques. Por enquanto, multou cinco equipes.
Alvos habituais dos insultos, os torcedores, cartolas e jogadores brasileiros jamais deveriam se comportar como quem os provoca. Só que, para vergonha de todos nós, muitos se comportam. Eu próprio escutei coisas terríveis no dia 28 de agosto de 2014, quando defendia o Santos. Jogávamos contra o Grêmio pela Copa do Brasil, em Porto Alegre. Parte da torcida gaúcha me importunou o tempo inteiro. Uns gritavam “preto fedido” e “macaco”. Outros imitavam os sons do animal. Alertei o juiz Wilton Pereira Sampaio, que não moveu uma palha e ainda me ameaçou com cartão amarelo. Foi então que explodi. Passei a mão na pele do meu braço e berrei para os torcedores: “Sou preto, sim!” No final do jogo, dei várias entrevistas condenando duramente aquele circo de horrores.
O Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) excluiu o Grêmio da Copa do Brasil, mas a decisão acabou revogada. Pouco antes do julgamento, dirigentes do time gaúcho apelaram à velha tática de culpar a vítima. Disseram que irritei a torcida gremista porque fiz cera no decorrer da partida. Um ex-presidente do clube me chamou de trapaceiro. Declarou à imprensa que armei “uma cena teatral depois de ouvir uns gritinhos”. Em 18 de setembro de 2014, o Santos enfrentou de novo o Grêmio, agora pelo Brasileirão. Mais uma vez, torcedores me atormentaram. Levei vaia durante todo o jogo.
A perseguição não parou nem mesmo quando mudei de equipe. No dia 16 de julho de 2017, como goleiro da Ponte Preta, encarei o Grêmio em Porto Alegre e amarguei outra enxurrada de vaias. Por determinação de cartolas gremistas, uma câmera acompanhou cada um dos meus movimentos dentro de campo. O clube me considerava “uma pessoa perigosa e difícil”, nas palavras de um diretor. Daí a vigilância. A única recordação agradável daquela tarde é o cartaz que dois gremistas, pai e filho, ergueram nas arquibancadas: “Aranha!! O tempo passa, mas a dor não! Novamente… perdão por tudo!!! Somos a verdadeira torcida do Grêmio!”
Virei profissional em 1999, no Palmeirinha, um pequeno time de Porto Ferreira (SP). Depois, vesti a camisa de mais sete equipes. Pela ordem: Esporte Clube União Suzano, Ponte Preta, Atlético Mineiro, Santos, Palmeiras, Joinville, Ponte Preta outra vez e Avaí. Tinha 38 anos quando parei. Agora, estou com 41.
O racismo me infernizou até o final. No Avaí, de Florianópolis, onde pendurei as chuteiras em novembro de 2018, pensei que teria sossego. Doce ilusão… Enquanto disputava o campeonato catarinense, aturei muita afronta de torcedores rivais. Eles não me ofendiam com termos racistas, mas faziam alusão à atitude que tomei contra os gremistas em 2014: “Aranha chorão! Aranha criador de caso! Aranha treteiro!”
A verdade é que minha carreira saiu dos trilhos depois que abracei a causa negra nos gramados. De 2014 em diante, nunca mais deixei de discutir o assunto publicamente. A mídia não parava de me procurar para tratar da questão. Nenhum dirigente gosta de jogadores que agem assim. Com o distintivo do clube e as marcas dos patrocinadores no peito, eu denunciava a estrutura racista do futebol. Mostrava a poeira debaixo do tapete. Botava o dedo na ferida. Era uma situação embaraçosa. Creio que, por isso, as boas propostas minguaram. Em dezembro de 2015, o Palmeiras me dispensou. Fiquei um semestre desempregado, sem receber um único convite. Atletas que deixam uma potência como o Palmeiras costumam se recolocar no mercado rapidamente. Em geral, vão para outro time grande. Imaginei que aconteceria o mesmo comigo, mas…
Até hoje, me entristece relembrar certos episódios. Por exemplo: quando jogava no Santos, peguei um voo comercial. Durante a viagem, uma passageira branca perguntou para um segurança negro do clube: “Aquele é o goleiro Aranha?” O segurança confirmou. A passageira logo emendou com uma observação surreal: “Não sei por que o cara reclamou tanto dos torcedores que o chamaram de macaco. Um bicho tão simpático, tão fofinho…” Sem elevar a voz, o segurança retrucou: “A senhora gostaria que a chamassem de vaca ou de galinha? Também são bichos simpáticos, fofinhos…”
Nas redes sociais, li coisas piores. Os racistas me bombardeavam com palavrões, ironias, piadinhas, textões e ameaças. Incomodavam até minha família. Tive de apagar todos os meus perfis. Só voltei para o Instagram e o Facebook há poucos meses.
Não é à toa que passei os últimos quatro anos sem ver jogos de futebol. O racismo tirou a felicidade que o esporte me dava. Você consegue se colocar na minha pele, Rafael? Consegue medir a violência dos gestos e expressões que roubaram de mim um dos meus bens mais preciosos? Recentemente, me tornei cartola. Aceitei um cargo administrativo no Mogi Mirim, clube paulista da quarta divisão. Tomara que a experiência me devolva o prazer do futebol.
Nasci em Pouso Alegre, no Sul de Minas Gerais. Quando criança, jogava com os moleques do bairro. Depois das partidas, matávamos a sede na casa de algum garoto. Às vezes, as mães dos meninos brancos não permitiam que os negros entrassem. A gente bebia o copo d’água na porta. Eu demorei para associar aquilo à discriminação. De início, me parecia natural que negros e brancos não compartilhassem determinados espaços. A ficha caiu apenas na adolescência, por causa do hip-hop. Meus primos tinham um grupo de rap. Aprendi bastante com o que cantavam e ouviam. As rimas condenavam os abusos da polícia, alertavam para o perigo das drogas, aplaudiam a negritude e protestavam contra o racismo. Estimulado pelo hip-hop, resolvi pesquisar mais sobre os pretos. Li biografias e livros de história, troquei ideia com estudiosos, participei de debates e acompanhei batalhas de MCs. Eu já estava na luta havia um tempão quando a torcida do Grêmio me provocou. Já militava, já participava de conversas em escolas e instituições sem fins lucrativos, já dava uns toques para os companheiros de time: “Mano, quem você acha que libertou os escravos? A princesa Isabel? Não, cara! A mina não cuidou de tudo sozinha…” Eu comia pelas beiradas e evitava me expor como ativista na imprensa. Se jogasse mal, os espíritos de porco iriam me encher o saco: “Está vendo? O Aranha esqueceu a bola. Só pensa em agitar.” Claro que minha estratégia se alterou por completo depois que reagi daquele jeito na partida de 2014.
Não me arrependo. Levantar a bandeira do antirracismo me trouxe problemas, mas também me engrandeceu como cidadão – tanto que, no finzinho de 2014, ganhei do governo federal o Prêmio Direitos Humanos. Sinto profundo orgulho das brigas que comprei em nome da igualdade. Hoje, recebo mais incentivo e elogios do que críticas. Sou convidado para dar palestras no país inteiro. Solto o verbo principalmente em ONGs, colégios e empresas. Tento seguir a trilha do ator Lázaro Ramos, que trata de questões raciais com certa suavidade. Ele manda a real sem usar palavras ásperas. Os brancos que o escutam acabam baixando as armas. Saem da defensiva, não se fecham para a mensagem.
Outra inspiração é Carolina Maria de Jesus, a catadora de papel que fazia um diário sobre a vida na favela onde morava com os filhos. Em 1960, os registros se transformaram no livro Quarto de Despejo. Como tinha pouco estudo, Carolina escrevia de maneira bem própria. Ela entregou o diário para o jornalista Audálio Dantas, que organizou a papelada toda, mas sem mudar o estilo da autora. Foi assim que surgiu o livro.
Eu também curto escrever e não avancei muito na escola (concluí o ensino médio só depois de adulto). Por dois anos, redigi pequenos textos sobre a história brasileira, destacando a contribuição de personagens negros, como o geógrafo Teodoro Sampaio, o psiquiatra Juliano Moreira, a socióloga Virgínia Bicudo e o engenheiro André Rebouças. Queria mostrar que os pretos não aceitaram passivamente a escravidão do passado nem aceitam as explorações do presente. Mesmo sob condições ruins, buscam caminhos para crescer.
Quando li Quarto de Despejo, tomei coragem e apresentei as anotações à editora Mostarda. Os profissionais da casa ajeitaram os escritos sem adulterar o meu palavreado. O trabalho resultou no livro Brasil Tumbeiro, que publiquei em 2021 com a intenção de atrair especialmente os jovens. Talvez você não saiba, mas tumbeiro é sinônimo de navio negreiro. Na travessia marítima da África para a América, os pretos morriam às dezenas. Viajavam em tumbas, não em navios. Agora preparo outro livro, um infantil sobre o abolicionista José do Patrocínio, que será lançado em julho, na Bienal de São Paulo.
Costumo dizer que não tenho nada contra os brancos. Minha desavença é com os racistas. Ou melhor: é com o racismo que está impregnado em nossa sociedade e se manifesta nas situações mais comuns. Nem sempre as pessoas que expressam preconceito desejam realmente discriminar. Muitas vezes, agem por impulso, sem perceber a imensa dor que causam. Chamar negros de macacos pode até não parecer tão ofensivo para um branco. Há quem ache que o xingamento é uma brincadeira. Estão redondamente enganados. Nenhum branco faz ideia do que os negros sentem quando são desumanizados.
Lembre-se disso toda vez que entrar em campo, Rafael, e continue lembrando fora dos estádios. Se por acaso você derrapar e disser uma bobagem para alguém, admita logo. Não finja que nada aconteceu. Assuma o erro e peça desculpas.
(revista piauí)