Um ás da guitarra viciado em trocadilho
Recentemente, o guitarrista Marcinho Eiras abriu o Instagram e se deparou com a selfie de uma amiga que, dentro de um avião, aguardava a decolagem. Ele não titubeou. Foi até o espaço de comentários e escreveu “jato indo”. Poucos dias depois, num restaurante, pediu “aquele peixe que pulou do prédio”. O garçom, claro, não compreendeu. “Aaaaaa… tum!”, explicou o músico de 52 anos, com ares de menino travesso. Em outra ocasião, contou para a mãe que pretendia estudar na escola de inglês recém-inaugurada pelo Sérgio Mallandro, a CCIéIé. “Eu simplesmente não resisto”, diz Eiras. “Faço trocadilhos o tempo inteiro, mesmo em momentos inoportunos: no Uber, nas reuniões de trabalho, numa consulta médica ou num encontro amoroso. Virou uma obsessão.”
Não por acaso, há quem o considere bobo, infantiloide, sem noção, mala ou o próprio tio do pavê. “Pior que sou… Nem adianta negar”, reconhece, enquanto despeja mais uma leva de gracinhas: “Qual é o inseto que só come madeira cor-de-rosa? Cupink! Qual o doce favorito dos átomos? Pé-de-molécula! Quais as frutas que os veganos detestam? Frangoesa e jabuticabra!”
No entanto, há também os que o julgam genial, seja por se lembrar rapidamente de trocadilhos clássicos, seja pela agilidade com que inventa novos. Desde 2016, o guitarrista integra um grupo de WhatsApp em que todos os diálogos precisam conter jogos de palavras. Entre os 51 membros, prevalecem os humoristas, como Marcos Castro, Ed Gama, Criss Paiva, Talita Halliday e Marcio Ballas. Outros participantes são revisores de texto, produtores, dubladores, roteiristas ou mesmo engenheiros e matemáticos. Até o saxofonista Derico, que compunha o sexteto de Jô Soares, está ali. No grupo, Eiras já atingiu os patamares de “máquina”, “mito” e “monstro” – termos que designam os craques do time. “Por que o padre bateu o carro? Porque deu uma rezinha! Por que o lápis resolveu malhar? Para ficar grafitness! Por que não pode soltar pum numa loja da Apple? Porque lá não tem Windows!”
Paulistano da Vila Mariana, o guitarrista demonstrou talento musical antes de se alfabetizar. Com apenas 4 anos, tocava canções de novelas ou sucessos de Roberto Carlos que pescava na televisão. Começou dedilhando o piano de uma tia-avó. Mais tarde, se deixou seduzir pela bateria e finalmente aderiu à guitarra. Frequentou um conservatório na pré-adolescência, mas logo o abandonou, para desgosto do pai. Até hoje, aprende tudo de ouvido e não sabe ler partitura. “É mal de família. Meu avô materno arrasava no acordeão e meu tio se tornou um exímio contrabaixista profissional. Nenhum dos dois estudou música formalmente.”
Em 1997, Eiras fez parte do Rádio Táxi, grupo que ganhou fama com Eva, Sanduíche de Coração, Garota Dourada e outros chicletes do pop. Também engrossou por meia década a banda do extinto Domingão do Faustão. No programa, acompanhou cantores dos mais diversos estilos: Ivete Sangalo, Vanessa da Mata, Zezé Di Camargo e Luciano, Agnaldo Rayol, Latino, Reginaldo Rossi, Felipe Dylon…
Entretanto, o que realmente distingue o guitarrista dos colegas brasileiros é o domínio de uma técnica difundida pelos americanos Eddie Van Halen e Stanley Jordan: a two-handed tapping. “Os adeptos do método tocam sem palheta e unicamente com as cordas que estão no braço da guitarra”, esclarece o músico. “Não usamos a porção das cordas que atravessa o corpo do instrumento. Extraímos do braço tanto a melodia quanto a harmonia das composições.” Graças à técnica, os instrumentistas conseguem tocar duas ou três guitarras de uma só vez. No Instagram e no Facebook, Eiras gosta de publicar vídeos em que realiza a façanha. São hipnotizantes.
O virtuosismo possibilita que o guitarrista promova workshops e se exiba regularmente no Brasil, na Europa, na Ásia e nos Estados Unidos. Ele costuma entrar em cena sozinho ou à frente do Projeto BePop – trio cujo nome é um trocadilho com bebop, gênero que inaugurou o jazz moderno.
O fascínio de Eiras por jogos de palavras também nasceu na infância. “Eu pirava sempre que ouvia bobagens do tipo: ‘Como se chama o dono do cemitério? Seu Pultura.’ Para mim, não havia ninguém mais inteligente do que os autores de trocadilhos.” Em paralelo, o menino descobriu o universo das anedotas – inclusive as chulas ou preconceituosas – e tratou de decorar o maior número possível delas. “Acumulei um repertório tão gigantesco que o pessoal do colégio vivia me pedindo para contá-las.”
À época, o pai de Eiras tinha o hábito de escutar o comediante Juca Chaves no toca-fitas do carro enquanto passeava com o filho. “Foi outra descoberta incrível. O Juca tocava modinhas satíricas num alaúde durante os espetáculos. Unia o humor à música.” Por volta de 2010, o guitarrista – que também é cantor – resolveu imitá-lo. “Botei alguns causos, piadas e trocadilhos nos meus shows. O público se amarrou tanto que não parei mais.”
Hoje, Eiras se apresenta até em clubes de stand-up. “Qual o país onde se prepara o melhor omelete? Kosovo! Se virasse terrorista, o Tiririca participaria de que grupo? Do Abestado Islâmico! O Cebolinha entrou no cinema com dois sorvetes para ver qual filme? Lambo 2 – A Missão! Que posição sexual faz o Galvão Bueno subir pelas paredes? Anal do Cezar Coelho!”
Embora crie trocadilhos diariamente, o músico não reivindica a autoria de nenhum. Tampouco se priva de roubar as invenções alheias. “Jogos de palavras não têm dono. São como os memes. A gente recebe um, morre de rir, passa adiante e não se preocupa em saber quem bolou aquilo.” De uns tempos para cá, Eiras vem apostando justamente na disseminação de memes – um mais tosco que o outro. Ele próprio os elabora, ainda que mal domine programas de design. Há uns meses, por exemplo, concebeu o Nanando Reis, fotomontagem em que o baixista dos Titãs aparece dormindo de óculos escuros numa cama com lençóis muito brancos.
O guitarrista afirma que inventa trocadilhos quase sem pensar. “Às vezes, quebro a cabeça. Mas, na maioria dos casos, as ideias pintam naturalmente. Vejo ou escuto algo que me inspira e, pronto, transformo o banal em zombaria.” O processo se assemelha à improvisação no jazz. “Quando toco, amo o freestyle. Quando falo, também. Sinto prazer em contaminar os ambientes com brincadeiras infames. Boa parte das pessoas curte as minhas tolices. Raras se irritam de verdade: ‘Porra, Marcinho! Jura que você se orgulha de uma babaquice dessas?’”
Solteiro e sem filhos, Eiras mora num tríplex em São Paulo. Mantém os cabelos loiros sempre compridos e se veste de maneira jovial. Toda semana, pratica surfe na Praia Grande, município da Baixada Santista que frequenta desde criança. À espera da melhor onda, não perde a oportunidade de pentelhar os companheiros do lado: “Deve ser horrível dar aula de natação. O professor ensina, ensina, ensina, e o aluno nada!”
(revista piauí)