Embrulhando o estômago

“Rolava o ano de 1971, fomos presos por haver cometido grave delito. Eu fora pego por populares que, se não chegam os policiais, teriam acabado comigo. Pingo, meu parceiro, havia sido torturado pelos policiais. Estávamos quebrados. Mas as vítimas, com medo de represálias, recusaram-se a registrar queixa. Os policiais teriam que nos soltar, pois sem registro não há crime. Mas o delegado, revoltado, determinou que nos esquecessem em uma cela da delegacia. Demos graças quando nos deixaram em paz. Os tiras não podiam nos ver que já queriam bater. Não havia outros presos e a carceragem ficava no porão. Na cela só havia nós, a privada e dois rolos de papel higiênico. Os dias foram passando e ninguém descia ao porão para nos ver. A fome começou a apertar. Bebíamos água para enganar o estômago. Pingo começou a gritar, bater nas grades, fazer escândalo e nada de alguém aparecer. Depois de seis dias sem que ninguém nos desse atenção, já tontos de fraqueza, pensamos que tínhamos sido abandonados ali para morrer de fome. Foi quando Pingo veio com a ideia: vamos comer o rolo de papel higiênico? A princípio achei que não dava, o gosto devia ser muito ruim. Mas ele argumentou: molhado até que podia descer. Estava desesperado de fome, falou em comermos seu sapato, que era de couro. Eu salivava, mas não me desesperava. Não acreditava que levassem aquilo até o fim. Achava que era blefe, queriam nos assustar; logo trariam comida e nos soltariam. Gritamos, tentamos atrair a atenção novamente. Mas, no oitavo dia, molhamos o papel higiênico, fizemos umas massas macias e fomos mastigando com os dentes já meio moles, fazendo caretas e engolindo. Logo em seguida vomitamos tudo, misturado com sangue e uma dor aguda no estômago. Passaram-se mais de 40 anos e ainda sinto aquele gosto horrível na boca.”

Trecho de Salvo pelo papel higiênico, relato autobiográfico de Luiz Alberto Mendes

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