Sem pai nem mãe

O primeiro Mickey, de 1928, finalmente se livra da Disney e ganha permissão para aloprar nos Estados Unidos

Se gostasse de pagode romântico, o Mickey agora poderia cantarolar, à moda do Só pra Contrariar: O que é que eu vou fazer/Com essa tal liberdade? Desde o começo de 2024, o camundongo mais famoso, querido e lucrativo do mundo caiu em domínio público nos Estados Unidos e está livre da Disney. Para que exatamente? Talvez para beber e fumar de novo. Ou para falar palavrões, emitir opiniões políticas, abrir a relação com a Minnie… Ideias não faltam, como bem demonstram os doze cartunistas que, nesta edição da piauí, imaginaram o personagem em situações nada habituais.
O Mickey que se libertou, porém, é apenas o de 1928. As outras versões do roedor continuam obedecendo às normas da centenária empresa californiana. O ratinho alforriado se distingue do atual por ter um formato menos arredondado, dispensar as luvas e, o mais importante, não ser colorido. Ele apareceu no dia 18 de novembro daquele ano, em O Vapor Willie, curta-metragem de sete minutos que arrebatou a plateia do Colony Theatre, um cinema de Nova York.
A produção logo virou um clássico – e não somente porque apresentou o personagem que iria se tornar mascote da Walt Disney Company. Também chamou a atenção pelo fato de a trilha e os efeitos sonoros estarem totalmente sincronizados com a ação, um prodígio técnico para a época. Mickey e seus parceiros de cena, todos animais, não diziam uma única palavra, mas assobiavam, gargalhavam, mugiam, cacarejavam, miavam e soltavam uns resmungos. A turma viajava no barco a vapor, onde a pancadaria corria solta. O comandante – um gigantesco felino – maltratava o camundongo, que maltratava o papagaio, o gato, os porcos, o ganso… Ou melhor: Mickey descia a lenha nos bichos para extrair deles sons ritmados e, assim, executar uma alegre música folclórica, Turkey in the straw. Outros tempos…
Em maio e agosto de 1928, o roedor já protagonizara os curtas O avião do Mickey e O gaúcho galopante. Os filmes, originalmente mudos, ficaram meses na gaveta. Só estrearam depois de O Vapor Willie e em versões sonorizadas. Uma simpática Minnie participava das três produções como coadjuvante. O gigantesco felino que fazia bullying com o Mickey ganharia, por aqui, a alcunha de João Bafo de Onça. Quando O Vapor Willie surgiu, Walt Disney amargava sérios problemas financeiros. O sucesso estrondoso do curta o tirou do buraco. Não à toa, o artista nutria especial afeto pelo ratinho e o considerava um poderoso amuleto. De início, Mickey se chamava Mortimer, nome que Lillian Bounds – animadora e mulher de Disney – julgava excessivamente formal. Ela sugeriu a mudança, e o marido topou. O camundongo dos primórdios, além de distribuir porrada, curtia bebida e cigarro. De 1930 em diante, ficou mais certinho, devido à imensa popularidade que alcançou. Um astro daquele tamanho não poderia dar maus exemplos.
As leis americanas protegem os direitos autorais de uma obra audiovisual durante 95 anos, contados a partir do seu lançamento. A entrada em domínio público do Mickey ancestral garante que qualquer pessoa exiba ou compartilhe O Vapor Willie nos Estados Unidos sem pagar nada à Disney. Permite-se também parodiar ou alterar o curta. No Brasil, contudo, o papo é outro. A legislação prevê que os direitos patrimoniais do autor sobre produções audiovisuais perdurem por 70 anos, e não por 95. Entre nós, portanto, o Mickey de 1928 tem licença para aprontar desde janeiro de 1999. Mas, até o momento, parece que não está aproveitando muito a emancipação…
(revista piauí)

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