A dor como herança

Uma neta diante das revelações deixadas por escrito pela avó

S
e lhe pedissem para definir a avó materna em poucas palavras, a carioca Nanda Félix não hesitaria em pegar emprestado o título de uma antiga opereta: A Viúva Alegre. Composta pelo austro-húngaro Franz Lehár, a peça cômica narra a trajetória de Hannah, uma jovem bonita, sedutora e espirituosa que herda a fortuna do marido banqueiro. A primeira montagem, de 1905, não agradou. Com o tempo, porém, o espetáculo alcançou tamanho sucesso que acabou ganhando pelo menos três versões cinematográficas. Em março de 1982, quando enviuvou, Maninha – a avó de Félix – já não exibia a mocidade de Hannah (beirava os 60 anos) nem ficou milionária, embora gozasse de boas condições financeiras. Mesmo assim, a neta costumava associá-la à protagonista da opereta famosa. “Como nasci em outubro de 1981, mal conheci o meu avô. Não sei quase nada sobre a personalidade ou os hábitos dele. Em compensação, pude conviver bastante com minha avó, que me dava a impressão de esbanjar felicidade. Era carismática, sagaz, engraçadíssima e, principalmente, curiosa. Ela se interessava por tudo e todos. Não fugia da vida.”

Cearense de Fortaleza, Maninha “estava sempre pronta para sair”, ainda nas palavras da neta, que é artista visual, escritora e cineasta. “Vovó tinha olhos castanhos, a pele muito branca e cabelos escuros, mas os tingia de loiro desde cedo. Adorava mantê-los arrumados e dificilmente se esquecia de pintar as unhas.” Tampouco negligenciava o próprio figurino. Vestia-se com esmero até para executar tarefas rotineiras. Nos compromissos familiares, virava o centro das atenções. Contava piadas e gargalhava de um jeito peculiar, sem emitir nenhum som. Apenas escancarava a boca, jogava a cabeça para trás e sacudia o corpo inteiro.
Tais singularidades, no entanto, não a tornavam uma mulher fútil. “Pelo contrário: vovó se questionava à beça. Enfrentava os obstáculos com uma coragem admirável e evitava se acomodar. O verbo desistir não frequentava o dicionário dela.” Como gostava de aprender, Maninha fez diversos cursos livres: de cerâmica, história da arte, teatro… “Era uma atriz excelente, por sinal. Participou de algumas peças amadoras e colecionou elogios.”
No início de 2018, logo após Maninha morrer de pneumonia, Félix decidiu encarar a penosa incumbência de organizar os pertences deixados pela avó. Adoentada, a “viúva alegre” passou o fim da vida sob os cuidados da filha caçula, Teresa. As duas compartilhavam um espaçoso apartamento na Lagoa, bairro do Rio de Janeiro. Maninha ocupava justamente o quarto em que Félix dormia enquanto morou com Teresa, sua mãe. Foi ali que, vasculhando o guarda-roupa, a artista encontrou uma velha caixa de sapatos.
“O que a vovó escondia aqui?”, perguntou, num tom despretensioso. Teresa, que também escarafunchava o armário, se intrigou: “Sei lá. É a primeira vez que vejo isso.” Assim que abriu a caixa, a dupla se deparou com bilhetes corriqueiros, documentos sem importância, fotos banais e um misterioso envelope pardo que trazia cinco frases manuscritas: “Por favor, leiam para que eu descanse em paz. Papéis muito particulares. Não quero machucar ninguém, mas necessito ter o meu próprio arquivo. Desculpe se faço algum dos meus filhos infeliz. A única coisa de que realmente estou certa é que nunca serei capaz de permanecer viva sem amor.”
As frases, todas escritas em inglês, nem sempre primavam pela correção gramatical. Com 26 cm de comprimento por 18 cm de largura, o envelope ostentava, no alto, o nome e o endereço impressos de uma divisão da Merck, a centenária indústria farmacêutica dos Estados Unidos. Dentro, havia um laudo que traçava o perfil psicológico de Maninha.
A caixa ainda abrigava dois cadernos e 33 cartas envoltas num saco plástico, a maioria datilografada. Entre 1969 e 1985, um frade italiano remetera cada uma delas à cearense. Os cadernos, por sua vez, reuniam as cópias de 63 correspondências que Maninha enviou para o clérigo naquele mesmo período.
Durante quatro anos, Félix se debruçou sobre o laudo psicológico e as 96 cartas. Desnudou, assim, uma faceta pouco conhecida da avó. Agora está transformando a experiência de destrinchar o material num documentário, que dirige com outra artista carioca, Anna Costa e Silva. O curta-metragem, como não poderia deixar de ser, vai se chamar Por Favor, Leiam para que Eu Descanse em Paz.

Quando se descobriu grávida, a bisavó de Nanda Félix não imaginou que esperava gêmeos. Só recebeu a notícia na hora do parto. Entre o assombro e a euforia, viu Maninha e Zuzu nascerem idênticas em dezembro de 1922. Ocorre que os pais das meninas não tinham dinheiro para alimentar três bocas – as delas e a do primogênito. Restou-lhes entregar uma das bebês à avó paterna, que morava perto da família.
As gêmeas, portanto, cresceram juntas e separadas. Encontravam-se com regularidade, mas não dividiam o mesmo teto. Criada pela avó, Zuzu usufruía de certos privilégios. Era muito paparicada e dispunha de mais tempo para brincar ou estudar. Maninha, em contrapartida, precisava cuidar da mãe, que sofria de tuberculose.
No final da adolescência, Zuzu casou com um moço rico, do interior paulista. Ela e o marido logo se transferiram para Campinas e tiveram filhos. Talvez influenciada pelo movimento da ir-mã, Maninha também resolveu sair do Ceará, onde terminara o ensino médio. Mudou-se para Petrópolis, na serra fluminense, e iniciou um curso de enfermagem. Pouco depois, frustrada com a escolha, abandonou os estudos e regressou à terra natal. Passou mais uma temporada em Fortaleza até viajar novamente. Dessa vez, uma tia a acolheu no Rio, então capital do país. Maninha se apaixonou por um rapaz, que a pediu em noivado. Entretanto, um parente venenoso espalhou o boato de que a pretendida flertava com os homens da vizinhança. O noivo acreditou e encerrou a relação por carta.
Traumatizada, Maninha voltou para o Ceará quando a Segunda Guerra Mundial ainda se desenrolava. O Brasil ingressara na batalha como aliado dos norte-americanos, que construíram em Fortaleza uma base militar, onde a moça arranjou trabalho como secretária. Ela aprendeu inglês tão facilmente que cogitou emigrar. Mandou currículo para possíveis empregadores nos Estados Unidos, mas se deu mal. Todos a recusaram.
O desejo de viver num lugar mais cosmopolita acabou por fazê-la retornar à cidade em que se desiludira amorosamente. Com uma amiga, alugou um apartamento na Zona Sul do Rio. À época, Maninha saboreava uma oportuna ascensão profissional. Tornara-se secretária executiva bilíngue e ganhava bem. Certa manhã, aceitou carona de um médico gaúcho que transitava pela Avenida Atlântica, em Copacabana. Ele também residia na Zona Sul e despontava para uma carreira de sucesso. Clínico geral, iria abrir um consultório de prestígio, se especializar em diabetes e lecionar medicina preventiva. No dia 6 de setembro de 1950, o médico e a secretária se casaram.
Maninha seguiu, então, o script feminino daqueles tempos. Largou o emprego para virar dona de casa e ter dois filhos. O primeiro nasceu em 1951. Teresa é de 1954. Cinco netos e três bisnetos completam a prole da matriarca.

Nanda Félix se recorda de flagrar a avó melancólica apenas numa ocasião, quase vinte anos atrás. “Era sábado ou domingo. Estávamos no apartamento da minha mãe. Cabisbaixa, vovó às vezes se mostrava irritada. Outras vezes parecia alheia, fora do ar. Não entendi nada.” Teresa aproveitou a oportunidade para explicar à filha que Maninha usava remédios psiquiátricos havia décadas: calmantes, soníferos, antidepressivos. “Naquela semana, tinha rolado um ajuste de doses ou algo do gênero. Por isso, vovó se comportava de maneira tão diferente.”
A neta quis saber a razão das medicações. Teresa respondeu que, em 1954, Maninha caíra numa depressão pós-par-to e teve de ir para o hospital. “Vovó não conseguia lidar com a recém-nascida. Mal suportava ouvir mamãe chorar”, relata a artista. “Foram duas ou três internações, sempre numa clínica de Botafogo. Ali vovó enfrentou o tratamento violento da época, à base de eletrochoques. Desde então, tomava remédios.”
Uma névoa acabou encobrindo o episódio, como ainda ocorre quando famílias se defrontam com doenças psíquicas. Maninha e os parentes que presenciaram o sofrimento dela não gostavam de rememorar o período sombrio. Durante um bom tempo, a bebê rejeitada ficou sob a responsabilidade do pai e de uma empregada doméstica. Mesmo depois de se recuperar, Maninha evitava passar perto da clínica onde amargou os eletrochoques. “Lógico que a história me impressionou, mas não me preocupei em investigá-la a fundo. Respeitei a discrição de vovó sobre o assunto e segui adiante”, diz Félix.

O laudo de duas páginas que estava dentro do envelope pardo aludia exatamente àquela fase depressiva. Por ordem médica, Maninha realizou uma série de testes psicológicos em outubro de 1957. Um instituto da Fundação Getulio Vargas, localizado no Centro do Rio, fez as provas, que analisavam tanto as aptidões quanto o temperamento da paciente.
De acordo com o laudo, ela possuía uma inteligência de nível médio. Destacava-se pelo raciocínio espacial e apresentava certa sensibilidade estética, que poderia beneficiá-la em trabalhos de modelagem. Também manifestava interesse por artes plásticas, música e administração, apesar de não conseguir apontar qual das três áreas a encantava mais.
O documento ainda dizia que a paciente demonstrava:
* “leve tendência à compulsão”;
* “afetividade primitiva e egocêntrica, talvez agressiva, mas que, nos momentos de introspecção, se critica e procura controlar-se”;
* “personalidade muito reprimida, frustrada e desajustada”;
* “sentimento de insatisfação”;
* “dificuldade de ajustamento, principalmente no campo sexual, onde o sexo oposto parece constituir problema”;
* “vivência mais apoiada em motivações interiores”;
* “desejo de chamar a atenção”;
* “conflito entre os impulsos sexuais e as inibições morais.”
O envelope guardava, além do laudo, quatro páginas de caderno em que Maninha transcreveu ipsis litteris as conclusões dos testes. A paciente, no entanto, não teceu nenhum comentário sobre as provas.
As 96 cartas que Nanda Félix também achou dentro da caixa abrangiam um período bem posterior às internações da avó. Nem por isso abordavam temas frívolos ou expressavam felicidade. Geralmente, tratavam dos fantasmas que continuavam assombrando Maninha.
“Embora se definisse como católica, vovó não invocava Deus o tempo inteiro. Perto do Natal, montava um presépio lindo de cerâmica na sala. Em outras datas especiais, até se permitia rezar o terço e assistir à missa. Só que fazia tudo de um jeito descompromissado, sem qualquer fanatismo. Ela enxergava a religião mais como uma bússola ética do que como um ritual”, diz a neta. Não à toa, a artista quase caiu para trás quando constatou que a avó se correspondeu com um frade por dezesseis anos.

Foi a própria Maninha quem principiou a troca de cartas, em junho de 1969. Uma amiga lhe passou o endereço do jovem clérigo italiano, que morava no interior da Bahia, onde cuidava dos pobres. “Vovó andava em busca de um confidente. Queria abrir o coração, tirar dúvidas e receber conselhos. A tal amiga considerava o frade um bom ouvinte. Então…”, conta Félix, que extraiu as informações das primeiras correspondências remetidas por Maninha.
O religioso se comunicava fluentemente em português e assumiu sem embaraço o papel que a missivista lhe delegou. Num determinado momento, abandonou o clero, voltou à Europa, casou e se tornou pai de três filhos. Mesmo fora da Igreja, não abdicou de escrever para a cearense. Assinou a última carta em maio de 1985. “Pelo que presumi, os dois se afastaram paulatinamente. Não houve um rompimento brusco. O curioso é que, em dezesseis anos, vovó e o confidente se encontraram raríssimas vezes e sempre no Rio. O relacionamento deles independia da presença física”, afirma a neta.
Nas correspondências, o frade demonstrava profunda empatia pelos dramas de Maninha, mas também se declarava preocupado com as oscilações políticas e as disparidades sociais do Brasil. Já a avó de Félix discorria quase que exclusivamente sobre as próprias mazelas: os dissabores do casamento, as inquietações espirituais e os dilemas em relação à maternidade. Falando de si mesma, ecoava dores coletivas e se rebelava contra o silêncio que a ordem patriarcal impingia às mulheres. Seguem alguns trechos das cartas que enviou:
Creio que não constituí minha casa na rocha e, sim, na areia. O dia de amanhã me apavora porque será igual ao de hoje, sem grandes esperanças.
*
Disseram-me, certa vez, que espero demais das pessoas e, por isso, me decepciono. Não acho que espero dos outros muito mais do que realmente podem dar. Todavia, essa aferição é feita pela capacidade de dar-me às pessoas. Talvez esteja aí o terrível engano. Em toda a minha vida, fui naturalmente voltada para o outro. O dar–me é tão forte e espontâneo como também é a minha necessidade de amigos sinceros, autênticos e corajosos.
*
Receio tornar-me adoradora do meu sofrimento.
*
Hoje pensei na minha história conjugal. São dezenove anos de cacos de vida em que se destacam apenas duas grandes alegrias, o nascimento dos filhos. Milhares de decepções, de fracassos, de dúvidas, de acusações mútuas. Existem entre nós raramente uma tolerância insuportável e normalmente uma intolerância também insuportável. É essa a nossa vida de casados. Os filhos crescem e nada nos sobra, ou melhor, falta o essencial – o amor. Parecemos dois náufragos desconhecidos, afogando-nos um ao lado do outro, mas tão distantes que nem o medo nos une.
*
Acho que, para salvaguardar o nosso lar de uma derrocada total, meu sofrimento é nulo, como nulas têm sido todas as minhas tentativas. Devo ser a própria nulidade, a página em branco de um escritor cansado e idoso. Eu sou o nada dos homens. Preciso renascer. No momento, só penso em fugir dos homens, do mundo, de mim. Diga-me como e onde encontrarei o que busco. Será que Deus não me satisfaz? O que procuro, então? Ser eu mesma. Sem imposições, recriminações, sujeições, sem limitações físicas, sem frustrações, sem medos, sem cores cinza.
*
Saber-me presa a alguém a quem não consigo amar porque só sabe dominar e exigir é morrer diariamente. […] Ele não tenta ver-me como um ser humano sujeito a falhas. Para ele, sou a mulher mais vulgar, mais cruel, mais mal-educada e neurótica, que não merece confiança etc. etc. Qualquer palavra ou ato meu contendo as melhores das intenções é repelido como uma maldade, uma esperteza, uma falsidade.
*
Às vezes, comparo Deus a um pai que diz a seus filhos: “Botei vocês no mundo. Vão, sigam seu caminho. Se andarem direitinho, talvez lhes dê presentes. Se errarem, poderão vir a mim. Talvez eu os ajude. Talvez não. Depende da minha vontade. Podem pedir, peçam. Peçam sempre. Mas vocês nunca saberão se lhes atenderei ou não.” Eu acho, padre, que Deus é assim porque nunca foi mãe.
*
Desde menina, o Natal me traz tristeza.
*
Para mim, os homens são egoístas em extremo. Ser pai é facílimo, custa apenas alguns minutos de prazer. Ser mãe é sofrer nove meses […] e passar noites acordada e longos dias de preocupações pequeninas e grandes. É desdobrar-se, decifrar-se em cada filho que nasce. É pesar o amor para distribuí-lo equitativamente, sem poder demonstrar uma simpatia ou um carinho a mais pelo filho mais afetuoso […]. Ser mãe é caminhar anos chorando ou sorrindo, saudável ou doente, sem parar. Lembre-se, sem parar um minuto, por uma estrada de um palmo de largura, tendo, de ambos os lados, arames farpados e flores, intercalados. Seus pés não podem sair um da frente do outro, seu corpo não pode desequilibrar–se. Seu espírito não pode vacilar, todo o seu ser tem de estar disponível e alerta. Ela tem de sorrir quando as lágrimas não podem ser contidas. Ela tem que disfarçar, mentir às vezes (o que eu mais odeio) para ocultar verdades tristes e negras. […].
Aí, meu caro amigo, o egoísmo entra pela fenda da solidão, do desespero, da amargura, do desejo de ser também amada. Por alguém – pelo marido, pelos filhos, pelos irmãos, pelos amigos, pelo mundo. É o que em psicologia se chama “carência de afetividade” […]. Começa aí a luta atroz entre a mãe e a mulher. Aquela conhece bem suas responsabilidades e esta, suas necessidades. O choque é inevitável, mas isso só acontece quando a mãe e a mulher deram-se demais durante anos e esqueceram-se de que são seres humanos iguais aos outros. Querem amar, procuram o marido, o companheiro, e encontram um homem dentro de uma redoma, voltado para si, incapaz de dar-se, incapaz de amar verdadeiramente com a alma e não somente com o corpo. Um homem solitário, seco, doente, ausente. Dirá você: ela cuidou dos filhos e esqueceu o marido. Não! Procurei sempre conciliar os dois deveres […]. Onde estava o marido? E onde se encontra ele agora? Lá, no seu mundo de trabalho e satisfações extraconjugais. Não posso amar um fantasma desconhecido. E continuo mulher, embora também se-ja mãe. Cumpro minha missão de mãe e quero viver como mulher, amar e ser amada, enquanto não recomeçaremos tudo com os netos. […] É um erro grave os maridos esquecerem que as mães precisam de calor humano, compreensão, caridade. Luto por um lugar ao Sol, depois de vinte anos de esquecimento de mim. Será isso o egoísmo?
*
Gostaria de não ter medo. Medo de nunca me encontrar. Medo de não ser compreendida. Medo de não entender. Medo do medo.
piauí não conseguiu informações recentes sobre o ex-frade. Estará vivo? Ainda mora na Itália? Concordaria com a divulgação das cartas? Por isso, a revista preferiu omitir sua identidade. Os nomes reais de Teresa e Maninha também não são publicados em respeito à privacidade das duas. “Melhor que vocês alterem o da mamãe e mencionem somente o apelido da vovó”, solicitou Félix.

A artista se lembra de não ter ligado muito para as cartas assim que abriu a caixa de sapatos. “Manuseei ligeiramente o calhamaço, sem perceber que estava diante de algo revelador. Passei os olhos em trechos das correspondências e nenhum me atiçou. Já o envelope pardo rapidamente se impôs. Os dizeres em inglês me fisgaram de imediato. Existia um paradoxo gritante ali. Por um lado, vovó ressaltava que o envelope continha papéis bastante particulares. Por outro, nos pedia para lê-los. Pedir, aliás, não é o verbo ideal. Ela suplicava que os lêssemos. Claro que atendi o apelo na hora. Li os papéis em voz alta, com minha mãe sentada junto de mim.”
Inicialmente, Nanda Félix temeu descobrir “verdades incômodas” sobre Maninha. “Quando notei que o envelope guardava um laudo psicológico de 1957, logo relacionei aquilo à época em que vovó lutou contra a depressão pós-parto. Gelei. Eu não pensava no episódio havia décadas e fantasiei que o relatório pudesse estampar algum veredito grave sobre a saúde mental de Maninha. Uma tolice, né? Mas de fato a ideia me ocorreu.”
Depois de ler e reler o laudo, a artista substituiu o receio pela indignação. “O documento adotava um tom assertivo e reduzia vovó à condição de ‘mulher problemática’. Ela possivelmente se identificou e se alarmou com os resultados. Acredito até que sentiu vergonha daquelas conclusões. Pior: creio que teve culpa por se reconhecer tão inadequada. Daí a decisão de redigir as cinco frases dramáticas no envelope. Acontece que, se pensarmos bem, o laudo não atestava nada preocupante ou fora de série. Enfileirava uma porção de enunciados genéricos: afetividade egocêntrica, talvez agressiva; desejo de chamar a atenção; personalidade desajustada; conflito entre os impulsos sexuais e as inibições morais; sentimento de insatisfação… Quem não se encaixaria em definições desse tipo? Eu mesma me encaixo. O laudo apenas pintava vovó como um ser humano – repleto de aflições, carências e limites. Ela certamente dispunha de outras características psicológicas, só que o relatório não as apontava. Preferia enfatizar os aspectos ‘negativos’ da paciente e lhes conferir o status de doença, de transtorno. Imagino o quanto vovó padeceu om o diagnóstico.”
A neta – que tem um filho de 8 anos, é separada e faz um curso de formação psicoterapêutica desde 2019 – se pergunta quando exatamente Maninha escreveu as frases no envelope: em 1957 ou depois? “Queria esclarecer, mas não consegui. Se vovó as escreveu bem depois de 1957, significa que o laudo a importunou durante muito tempo.” A artista também gostaria de compreender por que Maninha copiou o relatório em folhas de caderno. “Talvez ela quisesse absorver todo o conteúdo, como um aluno aplicado que estuda para as provas.” Embora o documento fosse da Fundação Getulio Vargas, o envelope trazia o nome da Merck. “As indústrias farmacêuticas deviam presentear meu avô, médico, com material de escritório e outros mimos. Provavelmente, vovó utilizou um dos brindes.”
A imersão nas cartas provocou em Félix um desassossego maior que o despertado pelo laudo. À medida que as esmiuçava, a artista tomou consciência do quão insuportáveis o casamento e a maternidade se tornaram para Maninha. “Levei um susto. Não esperava que vovó tivesse se defrontado com tamanha angústia. Ela jamais chegou nem perto de me contar. Desconfio que apenas o frade realmente soube o que se passava.”
Para Félix, não convém jogar sobre o parceiro de Maninha toda a responsabilidade pelo inferno em que os cônjuges se emaranharam. “O vilão do casamento deles parecia ser o próprio casamento. Ou melhor: a ética que norteava as uniões daquele período. Segundo minha mãe, meu tio e outros parentes, vovô nunca deixou de sustentar a família nem de apoiá-la em situações difíceis. Ele amava os filhos e netos, pavimentou uma trajetória profissional de respeito e mereceu a admiração de vários alunos. Só que também apreciava a vida boêmia, sofria de alcoolismo e se mantinha afastado emocionalmente da mulher. Trocando em miúdos, vovô abraçou sem críticas o papel que a sociedade reserva para os homens brancos, cisgêneros e heterossexuais. Fez o que julgava legítimo sob a ótica do machismo, e vovó pagou o pato. Ela idealizava demais o casamento. Botou todas as fichas numa relação que se mostrou insatisfatória e a enclausurou. Somente o falecimento de meu avô pôde libertá-la.”

A súplica em inglês de Maninha atormentou Nanda Félix ao longo de meses: Please, read it for me to rest in peace. “Como o verbo read se encontrava no imperativo, não é possível ter certeza de que vovó empregou o singular ou o plural. Optei pela tradução no plural – ‘por favor, leiam para que eu descanse em paz’. Mas quem deveria ler o conteúdo do envelope? Eu, mamãe, meu tio, os outros netos, qualquer um? Vovó deixou no ar. Então, com o aval de minha família, resolvi levar às últimas consequências o apelo dela e ampliar expressivamente a quantidade de pessoas que comungariam daqueles segredos. Eis a razão de o laudo psicológico e as cartas servirem de mote para um documentário.”
A artista sentiu, porém, que não daria conta do projeto sozinha. Em 2018, apresentou a ideia à colega Anna Costa e Silva, de 33 anos, que vem construindo uma prestigiosa carreira na confluência entre a performance, as instalações e o cinema, além de estudar terapia reichiana. A dupla venceu recentemente um edital da Fundação Anita Mantuano de Artes do Estado do Rio de Janeiro (Funarj) e recebeu 25 mil reais para rodar o curta-metragem.
“Sessenta mulheres de diferentes contextos irão acessar o laudo e alguns fragmentos das correspondências. Queremos ver como cada uma delas interage com o legado de Maninha. Em que medida os rótulos sociais e os diagnósticos psíquicos aprisionam as mulheres contemporâneas? Até que ponto os impasses femininos do século passado se diluíram no século XXI?”, explica Costa e Silva. Das inúmeras questões que o documentário pretende levantar, uma surge como a mais crucial: o que as mulheres do novo milênio necessitam dizer às claras para descansarem em paz não depois de mortas, mas enquanto ainda estiverem vivas?
(revista piauí)

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