Com quantos monólogos se faz um diálogo?

“- Você tem filhos?
– Tenho uma filha. Por que não teria? Sou uma mulher adulta com um marido e uma filha que eu tenho de alimentar. Por que a surpresa? Por que mais eu passaria tanto tempo no supermercado?
– Por causa da música?, ele sugeriu.
– E você? Tem família?
– Tenho um pai que mora comigo. Ou eu moro com ele. Mas não tenho família no sentido convencional. Minha família já era.
– Esposa? Filhos?
– Nem esposa, nem filhos. Voltei a ser um filho.
Elas sempre me interessaram, essas conversas entre seres humanos em que as palavras não têm nada a ver com o tráfego de pensamentos pela cabeça. Enquanto ele e eu conversávamos, por exemplo, minha lembrança lançou a imagem visual do estranho realmente repulsivo, com pelos pretos cerrados saindo das orelhas e do colarinho da camisa, que no último churrasco tinha, muito tranquilamente, posto a mão no meu traseiro enquanto eu me servia de salada: não me acariciou nem beliscou, simplesmente segurou a minha nádega com a mãozona. Se essa imagem estava dominando minha mente, o que poderia estar dominando a mente daquele outro homem ali, menos hirsuto? E que sorte a maioria das pessoas, mesmo gente que não era boa em mentir direto, ter competência suficiente ao menos para não revelar o que está acontecendo por dentro, nem pelo menor tremor de voz, nem pela dilatação da pupila!”

Trecho de Verão, romance de J.M.Coetzee

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