Levi

Foto João Wainer

O ator Gero Camilo com a máscara de Levi, seu personagem em Aldeotas

O personagem da peça Aldeotas incorpora em Gero Camilo e pergunta: “É mais fácil engolir o sol ou uma dúzia de limões?”

Depois de muito tempo fora, Levi volta à cidade onde nasceu para rever um amigo e o passado.

BRAVO!: Quantos anos você tem?
Levi:
Tenho 7.
Onde você mora?
Num canto minúsculo do mundo. Chama-se Coti das Fuças.
E o que você gosta de fazer?
Gosto de subir em árvore, de nadar no açude, de soltar pipa. Também gosto de… Não posso contar…
Não pode?
Prometi que não contaria.
Prometeu para quem?
Para o pessoal de lá, o lugar secreto que costumo visitar. Conto apenas que, ali, as cores não se parecem com as do nosso universo. O vermelho deles lembra o vermelho da gente. Mas não é assim um vermeeeelho. É mais bonito que o vermelho. Entendeu?
Médio.
Se você olhasse o lugar, entenderia. Fica perto e longe. As duas coisas. A estrada de acesso começa no meu quintal. Uma estrada comprida… E escura.
O que há no seu quintal, além da estrada?
Há um cajueiro, que é uma espaçonave. Há a Jurema, que é uma galinha. E há o Joca, que é um cachorro. Quer dizer… Às vezes, a Jurema e o Joca se transformam em astronautas. Ou cientistas. Ou jogadores de futebol. Ou qualquer outro negócio. Minha mãe, quando vê o cajueiro, a Jurema e o Joca, não vê a espaçonave, nem os astronautas, nem os cientistas, nem os jogadores. Ela não os vê e, no entanto, todos existem.
Você se dá bem com seus pais?
Claro! Os dois me protegem. Minha mãe costura em casa e alfabetiza os velhinhos. Meu pai constrói móveis de madeira lindíssimos, só que não empina raia direito. Eu me cansei de ensinar: “Pai, presta atenção!”. Mas o atrapalhado nunca aprende. Ninguém é perfeito… Pelo menos, ele não me bate. O pai do Elias bate. E bate forte — não em mim, né? Bate no Elias.
Elias? Que Elias?
Meu melhor amigo. Eu o conheci no colégio. O pai dele bebe demais e, depois, lasca o pau. Bate em toda a família, inclusive no cachorro. O Elias sofre… [Vira uma cambalhota]
Quantos anos você tem agora?
Estou com 12.
Cresceu rápido.
Os meninos sempre crescem rápido.
Você continua morando em Coti das Fuças?
Continuo. A diferença é que, nos fins de semana, passeio pelas cidadezinhas dos arredores.
Deixou de visitar aquele lugar misterioso?
Lógico que não.
Já pode revelar onde fica?
De jeito nenhum.
O que você gosta de fazer com 12 anos?
Gosto de desenhar, ler e escrever poesias de amor.
De amor? Você arranjou namorada?
Não! Escrevo poesias de amor para o Elias, a Jurema, o Joca…
E para as meninas?
Nunca escrevi. Menina não pisa no meu quintal! Se bem que… Estou me recordando… Outro dia, escrevi um poema para Dolores, minha colega de escola. Escrevi por causa do nome, não por causa dela. Dolores rima com um monte de palavras. Eu queria te falar de amores, Dolores./ Mas meus lábios não são tão doces, Dolores./ Eu queria te dar mil flores, Dolores./ Mas não há no meu jardim flores de cores, Dolores./ Eu quero que sejas minha rainha./ Te seguirei aonde fores, Dolores. Curtiu?
Médio.
O Elias também não curte. Na verdade, odeia. De vez em quando, ele me tira do sério, sabe? Numa tarde dessas, lhe confessei que tenho ganas de engolir o sol. De engolir mesmo, não de mastigar. Desejo sentir o sol inteirinho dentro de minha barriga. O Elias zombou: “Engolir o sol? Moleza! Difícil é engolir uma dúzia de limões sem fazer careta”. Eu respondi: “O sol é quente, rapaz! Bem mais difícil de engolir”. O Elias não se curvou: “E daí? Limão é azedo!”. A conversa quase terminou em pancadaria. Cabra teimoso… O que você acha? Mais fácil engolir o sol ou uma dúzia de limões?
Desculpe. Repórter não opina…
Vai ver o Elias prefere limões porque a vida dele é azeda, coitado.
O Elias ainda apanha do pai?
Ainda… Não me conformo com tanta agressão!


E sua família, segue em paz?
Por sorte, apesar de meu pai e minha mãe andarem discordando sobre mim. Ele diz que já sou um homem. Ela diz que não passo de uma criança. Discussãozinha à toa. [Rodopia]

Mudou de idade outra vez?
Sim. Cheguei aos 18.

Mora onde?
Em Coti das Fuças, infelizmente… Mas vou partir. Preciso explorar a imensidão que, hoje, só observo pelos jornais. Preciso engolir o mundo.

Você parou de frequentar o lugar secreto?
Parei…

Onde fica?
Não importa mais.
O que você faz com 18 anos?
Poemas.

De amor?
De amor e de revolta. Eu e Elias lutamos contra as injustiças. Redigimos uma porção de manifestos. “Liberdade para os pardais selvagens!”, gritava o panfleto em que pregávamos a desestimação dos animais. Por que trancar os pássaros nas gaiolas? Por que manter os cães nas coleiras?

Pelo jeito, sua amizade com Elias permanece intacta.
O Elias é encantador. Sei tudo sobre ele. Tudo! Nós combinamos partir juntos. Vamos desaparecer daqui. Fugir! Finalmente o Elias se livrará daquele pai tirânico.
Você vai abandonar sua família?
Não me agrada a palavra “abandonar”. Vou partir. Apenas partir.
E as meninas, já podem pisar no seu quintal?
Podem. Tornei-me um bom amigo das meninas. Gosto delas, mas não da maneira que o Elias gosta. [Dá um salto]

Você envelheceu bastante, não?
Envelheci. Completei 50 anos.
Mora em Coti?
Não, moro no mundo. Vivi em inúmeras metrópoles. Sou escritor. Desde os 18, não avistava minha cidade. Voltei somente para me despedir do Elias. Ele adoeceu…

Doença séria?
Creio que sim.

Você e o Elias não fugiram juntos?
Não. Na hora H, o Elias desistiu. Nunca compreendi exatamente o motivo. Com o correr do tempo, nos distanciamos.
Ainda o considera um amigo?
Amigo? Elias foi minha primeira paixão.
E seus pais?
Não estão mais vivos. Mas também não morreram.
Aquele lugar misterioso…
O centro da Terra. O lugar
secreto e mágico é o centro da Terra.

Você retornou para lá?
Não, jamais.

O Elias conhece o lugar?
Espero que vá conhecê-lo agora.
Onde encontrar Levi
Na peça ”Aldeotas”, de Gero Camilo. Direção: Cristiane Paoli-Quito. Com Gero Camilo e Marat Descartes. Tucarena (rua Monte Alegre, 1.024, Perdizes, São Paulo, SP, tel. 0++/11/3670-8455). Até 30/8.

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