"Acaba, pelo amor de Deus! Acaba!"

Um grupo de PMs no WhatsApp e a matança do Jacarezinho

Com deboche, espírito corporativo, fake news, ataques contra a TV Globo, demonização da esquerda e panfletos em favor do presidente Jair Bolsonaro. Foi assim que um grupo de PMs reagiu à mais agressiva e letal de todas as incursões já realizadas por forças de segurança pública na cidade do Rio de Janeiro. A operação do último dia 6 de maio começou logo cedo, invadiu a tarde e terminou com 28 mortos, incluindo um policial. A favela do Jacarezinho, uma das 1 018 que se espalham pela capital fluminense, serviu de palco para a matança. Naquela quinta-feira, 250 agentes da Polícia Civil ocuparam a localidade sob a justificativa de capturar 21 denunciados por associação ao tráfico e suspeitos de pertencer à facção Comando Vermelho (CV). Helicópteros blindados – os “caveirões voadores”, como ironizam os cariocas – apoiaram a investida terrestre.

Os policiais militares que comentaram a ação integram um grupo no WhatsApp. A piauí conseguiu acessá-lo por dois meses (maio e junho), sem se identificar nem interagir com os 51 participantes. Um sargento administra a comunidade digital, criada em abril de 2014 e representada pela foto de um laço preto, que simboliza a morte ou o luto. Junto da imagem, lê-se o seguinte: “A revolta é grande. Mesmo perdendo um irmão na batalha, não desistiremos da guerra. Honra sempre!” A terceira frase evoca um lema recorrente da Polícia Militar: “Força e honra!”
Os celulares que compõem o grupo têm prefixos do Rio e de Minas Gerais. A mera observação das conversas online não permite saber o nome de quem usa os telefones. Mas, pelo teor dos diálogos, conclui-se que predominam os PMs de baixa patente. Ninguém ali costuma escrever textões. O que mais fazem é compartilhar mensagens alheias, vídeos, fotografias, áudios, memes e emojis.
Os papos tratam principalmente da profissão. Ora os policiais discutem jornadas de trabalho e questões salariais, ora lamentam o assassinato de um colega, trocam informações sobre supostos criminosos e descrevem ocorrências ou expõem imagens delas. Também abordam o noticiário esportivo e político. Às vezes, publicam orações cristãs e pensamentos motivacionais.
Chamam a atenção as inúmeras fotos de cadáveres que circulam no grupo. Todos os corpos têm marcas de tiros ou ferimentos provocados por armas brancas. Os participantes demonstram certo fascínio pelas cenas, já que as divulgam com regularidade e desembaraço. Não raro, se abstêm de quaisquer explicações. Dificilmente nomeiam as vítimas ou dizem onde se encontram. Tampouco esclarecem as circunstâncias em que os fotografados morreram. Boa parte dos mortos é negra e não trajava farda no momento do homicídio.
A primeira manifestação do grupo sobre o episódio do Jacarezinho se deu às 13h51 do próprio dia 6 de maio. Por uma semana, o assunto ficou em alta. Depois, praticamente desapareceu.

Erguida num morro, a favela da Zona Norte é uma das maiores do Rio. Tem pouco mais de 94 hectares ou quase a mesma extensão do Leme, bairro abastado da Zona Sul. Em 2010, de acordo com o Censo, somava 38 mil moradores. Hoje, reúne cerca de 90 mil. Conta-se que aquelas terras abrigavam um pequeno quilombo. O povoado, constituído por escravos que fugiam de engenhos na Serra do Matheus, se expandiu a partir de 1920. Virou um emaranhado de becos e vielas em que apenas quatro ruas são largas o suficiente para comportar o vaivém de automóveis e caminhões.
Com uma incidência superior à média carioca, a tuberculose sempre maltratou o Jacarezinho. Não bastasse, desde março do ano passado, a pandemia de Covid-19 causou 97 mortes no morro, o que coloca a favela entre as quinze da cidade onde a doença se revelou mais impiedosa.
O sambista Monarco, ídolo da Portela, viveu por lá no mesmo período em que o futuro jogador Romário nasceu e deu os primeiros passos – a década de 1960. Filho dileto da comunidade, o ex-centroavante e atual senador do PL já a invocou para se enaltecer como político. Na campanha de 2018, quando disputou o governo estadual, tuitou que o Jacarezinho lhe garantiu duas características valiosas: a dignidade e a consciência de que todo cidadão respeitável precisa “ter o papo reto”. “Por isso, falo a verdade, doa a quem doer.”
Em maio, um dia depois da carnificina, Romário criticou a operação policial com veemência. “Não se combate crime só matando bandido”, escreveu no Instagram. Ele qualificou a política de segurança fluminense como “falida e ineficiente”. “Estamos enxugando gelo”, lamentou. Também afirmou que problemas complicados não se resolvem com atitudes desumanas e simplistas. Mais de 58 mil internautas curtiram a declaração. Outros a rechaçaram na base do sarcasmo: “Romário calado é um poeta!”, “Vai jogar futevôlei!”, “Entrega flores para os criminosos”, “Adota!!”, “Mimimi e blablabá”, “Apaga que dá tempo”, “Foi faxina, baixinho, não chacina!”, “Alguém demite o assessor que redigiu essa merda!!!!!”.
Na manhã da sangria, a Polícia Civil enviou à favela integrantes de pelo menos quatro delegacias e da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), uma tropa de elite. Os agentes planejavam não apenas cumprir os 21 mandados de prisão contra supostos membros do CV como apreender armas. Os procurados, segundo a denúncia do Ministério Público, exerciam as funções de “vapor” (aquele que vende as drogas) ou “soldado” (o responsável por vigiar o morro). A ação pretendia, ainda, coibir outros crimes praticados pelos denunciados, desde roubos e assassinatos até sequestros-relâmpagos e o aliciamento de crianças e adolescentes.
Às 6h15, logo depois de desembarcar de um veículo blindado na parte baixa da comunidade, o policial André Leonardo de Mello Frias levou um tiro na cabeça e morreu. O inspetor branco de 48 anos, casado e padrasto de um garotinho, sofreu o ataque enquanto – diz a versão oficial – tentava retirar um obstáculo da Rua José Maria Belo. Entraves do gênero, construídos com dormentes ferroviários, pneus ou blocos de concreto, são comuns em regiões pobres do Rio. Os bandidos costumam montá-los para dificultar o acesso de inimigos.
A morte do policial acabou gerando uma fuzilaria horrenda, que desencadeou as demais 27 mortes, todas de civis. Eram homens com idades entre 16 e 49 anos, majoritariamente negros, abatidos em cinco casas e outros sete pontos do Jacarezinho. Um dos projéteis atingiu o metrô que trafegava perto do morro e machucou de leve o braço de um rapaz. Os estilhaços da janela cortaram um segundo passageiro, também sem gravidade. Por algum tempo, o tiroteio interrompeu serviços básicos da favela, como o sistema de transporte e as consultas na Clínica da Família Anthidio Dias da Silveira.
Um relatório da polícia afirma que 25 das 28 vítimas tinham antecedentes criminais. Muitas atendiam por apelidos: Furão de Galo, Sabará, Petrolinho, Bolado, Du Mal, Cara Preta, Bigão, Pa-to, Digo Digo, Pezão, Carrapicho, Magneto… Entre os crimes que cometeram estão porte ou negociação de drogas, lesões corporais, furtos, ameaças, posse irregular de armas e receptação de mercadorias roubadas.
Os policiais ficaram nove horas dentro da comunidade. Detiveram sete pessoas. Só três apareciam na lista dos 21 procurados. Outros três alvos dos mandados de prisão morreram na carnificina. Foram confiscados cinco fuzis, uma submetralhadora, duas escopetas, dezesseis pistolas e doze granadas, além de munições, cocaína, maconha e lança-perfume. No final de maio, profissionais da Delegacia de Combate às Drogas prenderam Sandra Helena Ferreira Gabriel em Saquarema, no litoral fluminense. Sandra Sapatão, como é conhecida, liderava o tráfico do Jacarezinho com Felipe Ferreira Manoel, o Fred, e Adriano Souza de Freitas, o Chico Bento. Ela tomava sol em plena Praia do Boqueirão, reduto de surfistas e bodyboarders, quando os agentes chegaram. Informações que circularam por celulares recolhidos na ação do dia 6 levaram à captura. Fred e Chico Bento continuam foragidos.

A Polícia Civil batizou a ação no Jacarezinho com um substantivo latino: exceptis. O termo significa “exceção” e remete indiretamente à morte de João Pedro Mattos Pinto. Em 18 de maio de 2020, o estudante negro – morador do Complexo do Salgueiro, uma das principais favelas da Região Metropolitana do Rio – brincava com os primos dentro da casa de sua tia quando uma equipe da Core a invadiu. Os agentes buscavam criminosos, mas acabaram baleando o jovem de 14 anos. O homicídio logo despertou uma série de protestos. No dia 5 de junho, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, restringiu incursões similares em todas as comunidades fluminenses até o fim da pandemia. O magistrado determinou, por liminar, que as ações só poderiam acontecer sob “hipóteses absolutamente excepcionais”. Nessas circunstâncias, a polícia deveria comunicar a razão da investida para o Ministério Público do Estado. Em 4 de agosto, o plenário do STF endossou a ordem de Fachin.
O MP afirma que recebeu um aviso por escrito com os motivos da Operação Exceptis, mas apenas três horas depois de os agentes enveredarem pelo Jacarezinho. Partidos de esquerda, juristas, movimentos sociais, advogados e jornalistas questionaram se existiam mesmo razões excepcionais para a ocupação ou se houve desrespeito à decisão do STF. Enquanto o debate corria solto, a Polícia Civil impôs sigilo de cinco anos a todos os dados sobre incursões em favelas desde que Fachin as limitou. A corporação alegou que o segredo garantiria a segurança dos policiais e evitaria que futuras missões naufragassem. Somente os promotores, procuradores e corregedores teriam acesso às informações. Dezenove entidades, como o PSB, a Justiça Global, o Instituto de Estudos da Religião e o Coletivo Fala Akari, pediram a quebra do sigilo no Supremo. Em 30 de junho, Fachin acatou o pedido e designou que o Ministério Público Federal investigue a pertinência das justificativas apresentadas pelas autoridades para a invasão do Jacarezinho. Mesmo depois da liminar, as ações policiais nas comunidades do Rio se repetiram às centenas. Entre 14 de junho de 2020 e 6 de maio de 2021, houve 528.
Os PMs que, durante uma semana, discutiram a Operação Exceptis pelo WhatsApp jamais desaprovaram a conduta dos colegas sem farda. As denúncias de execuções, os relatos de torturas, as violações de casas, nada mereceu ressalvas ou uma palavra de censura. Eles tampouco manifestaram solidariedade pelos moradores do Jacarezinho.
***
6 DE MAIO, QUINTA-FEIRA, ÀS 9h03_Os participantes do grupo começam o dia sem citar a Operação Exceptis, que está se desenrolando desde as seis da manhã. Preferem difundir o link de uma notícia que o site Consultor Jurídico publicou na véspera. A matéria informa que o Tribunal de Justiça condenou o juiz Marcelo Borges Barbosa à pena de aposentadoria obrigatória, com salários proporcionais, por conceder liminares indevidas para PMs. O magistrado atuava em Mangaratiba, no litoral do Rio. Os policiais favorecidos praticavam roubos, extorsão mediante sequestro e outros crimes. Ninguém no grupo comenta a reportagem.
ÀS 13h51_Uma gravação de sete segundos reproduz um grito masculino: “Acaba, pelo amor de Deus! Acaba, pelo amor de Deus! Acaba!” O homem que berra parece estar num local agitado, onde se escuta um intenso burburinho. “Áudio dos bandidos do Jacaré”, explica por escrito o participante do grupo que postou a gravação. É a primeira menção dos PMs à investida no Jacarezinho. Trata-se de uma piada. O áudio circula nas redes sociais como uma espécie de meme sonoro. Torcedores de futebol gostam de usá-lo para sacanear os adversários. Exemplo: em janeiro, o Internacional atropelou o São Paulo numa rodada do Brasileirão por 5 a 1. Logo depois do jogo, pipocou no Facebook e no WhatsApp uma “gravação secreta” que revelaria o desespero do técnico são-paulino, Fernando Diniz, à beira do campo: “Acaba, pelo amor de Deus! Acaba, pelo amor de Deus! Acaba!”
ÀS 14h05_O grupo compartilha um tuí-te da deputada federal Vivi Reis (Psol-PA): “O horror acontecendo hoje no Rio de Janeiro, 25 pessoas mortas, passageiros baleados no metrô, pessoas impedidas de sair de casa com medo de serem mortas. A operação da PM no Jacarezinho precisa ser nomeada corretamente – chacina e terrorismo de Estado!”
Fisioterapeuta, a parlamentar negra – que faz 30 anos neste mês – levanta as bandeiras da proteção à Amazônia, dos direitos humanos e do Sistema Único de Saúde (SUS). Ela menciona 25 mortes por ainda não saber das outras três e erra quando associa a Operação Exceptis à Polícia Militar em vez de atribuí-la à Civil. Os integrantes do grupo não perdoam o deslize. “A PM é pica, filho”, reclama um deles, por áudio. “Sempre se fode, mesmo quando não tem nada a ver. Meu irmão, nunca esquecem a PM!”
O artigo 144 da Constituição afirma que as polícias são complementares. A Militar responde pela manutenção da ordem. Por isso, vigia as ruas, aparta brigas de vizinhos e fiscaliza se motoristas estão alcoolizados. A Civil investiga os crimes e executa determinações da Justiça, como os mandados de prisão. “Só que, na prática, as corporações se ajudam menos do que poderiam. Competem, interagem pouco e desconfiam uma da outra”, diz Daniel Barcelos Vargas, pesquisador da FGV Direito Rio e autor do livro Segurança Pública: Um Projeto para o Brasil. “Embora ambas tenham o mesmo chefe, o Estado, há diferenças consideráveis entre os planos de carreiras, os salários, as estruturas e os orçamentos de cada uma. Tais disparidades talvez expliquem o antagonismo.”
Em 2021, o governo fluminense destinará 5,6 bilhões de reais para a PM, que possui 45 094 membros na ativa. Serão, portanto, 124 mil reais per capita. Já a Civil, com 8 825 integrantes ativos, receberá 2,05 bilhões de reais – ou 232 mil reais per capita. “Os valores, ainda que soem elevados, se mostram insuficientes para todas as necessidades das corporações”, afirma Vargas.
A histórica rixa quase não transparece nas mensagens do grupo. “Faz sentido. Sempre que confrontadas pela sociedade, as polícias se apoiam. Deixam as rusgas de lado em nome de certo ensimesmamento institucional. O coleguismo fala mais alto que as rivalidades”, explica o pesquisador.
ÀS 15h11_Os agentes relembram uma ode a Jair Bolsonaro, divulgada quando o presidente completou seiscentos dias no Planalto, em 21 de agosto de 2020:
“600 dias sem dinheiro público para drogados e abortistas.
600 dias sem dinheiro público para artista fracassado mamar na Lei Rouanet.
600 dias sem dinheiro público para ONGs interessadas somente nas riquezas do Brasil.
600 dias sem dinheiro público para a Globo.
600 dias sem dinheiro público para invasão de propriedades pelo MST e MTST.
600 dias sem dinheiro público bancando parada LGBT.
600 dias sem dinheiro para balbúrdia nas escolas e universidades públicas.
600 dias sem dinheiro público para financiar ditaduras.
600 dias de lucros recordes nas estatais brasileiras.
600 dias de reconstrução do modal de transporte no Brasil.
600 dias de foco no Nordeste, e a água chegou às casas do povo do sertão nordestino.
600 dias de investimento em infraestrutura.
600 dias de estradas recuperadas pela engenharia do Exército.
600 dias de choro da esquerda maldita pela perda da mamata.
600 dias sem corrupção.
Viva o novo Brasil!”
O link que acompanha o panegírico dá acesso a uma reportagem de O Sul, jornal gaúcho online que pertence à Rede Pampa de Comunicação. A matéria, veiculada em agosto do ano passado, traz uma bravata de Wagner Rosário, ministro da Controladoria-Geral da União: “Estamos há vinte meses sem nenhum caso de corrupção dentro do governo.”
Também em agosto do ano passado, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, organização apartidária que não tem fins lucrativos, analisou o modo como 141 717 policiais militares, civis e federais da ativa agiam no Facebook. Eles representavam 27% dos 522 mil homens e mulheres que integram as três corporações e se distribuem pelo país inteiro. Realizado em parceria com a agência Decode, o levantamento mostrou que pregações de extrema direita, similares à ode bolsonarista, não eram comuns nos perfis daqueles profissionais. Algumas conclusões do estudo:

  • Pelo menos 12% dos policiais militares, 7% dos civis e 2% dos federais propagavam conteúdos antidemocráticos. Ora pediam o fechamento do Congresso, ora reivindicavam a prisão de ministros do STF;
  • 68% dos agentes que atacaram o Congresso e o Supremo também se engajavam em páginas pró-Bolsonaro;
  • O presidente alcançou maior popularidade entre os policiais militares: 37% deles o elogiavam, contra 12% dos federais e 8% dos civis;
  • Quase um quarto dos PMs (24%) rejeitou pautas LGBTQIA+, cifra muito superior à de policiais civis (1%). Os federais não abordaram o tema;
  • Somente 3% dos federais, 6% dos militares e 12% dos civis repudiaram a violência policial, defenderam causas sociais e apoiaram os direitos humanos;
  • Apenas membros da Polícia Civil desaprovaram o racismo, ainda que tocassem pouco no assunto.

“A pesquisa indica que, até agora, os policiais abertamente golpistas e retrógrados são minoritários. Mesmo assim, convém que a sociedade os fiscalize para avaliar se oferecem riscos à democracia. As polícias devem servir o Estado e jamais podem referendar este ou aquele projeto de poder”, adverte o sociólogo Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum.
ÀS 17h15_O grupo repassa um tuíte de Guilherme Boulos, principal líder do Psol e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST): “Banho de sangue em operação policial ilegal no Rio de Janeiro deixa 25 mortos e dois baleados no metrô. Saiu Witzel, entrou outro assassino. Minha solidariedade às vítimas e aos familiares.”
Naquele momento, Boulos também não sabia que a Exceptis provocara 28 mortes. O “outro assassino” é o governador Cláudio Castro, que assumiu o posto depois do impeachment de Wilson Witzel. Nenhum participante do grupo comenta a nota.
ÀS 19h18_Uma montagem fotográfica coteja duas cenas extraídas da televisão. A primeira mostra um repórter da Globo. A legenda que a emissora relaciona à imagem afirma que 22 pessoas morreram durante a incursão da Polícia Civil no Jacarezinho. A segunda cena – do Balanço Geral RJ, programa da Record – retrata a favela. A legenda informa que a ação policial matou vinte bandidos. O responsável pela montagem grifa de vermelho os termos “22 pessoas” e “vinte bandidos”. Logo abaixo das cenas, escreve: “Perceberam a diferença?! Tirem suas conclusões!!!” Para não deixar dúvida sobre a ideia que deseja transmitir, identifica a primeira imagem como sendo da “GloboLixo”.
ÀS 19h25_Os agentes partilham a convocação de um protesto contra o massacre e pela extinção da polícia. “Olhem o que está rolando em grupos de jornalistas”, alertam. A manifestação vai ocorrer no dia seguinte, bem perto do Jacarezinho.
As quatro instituições que promovem o ato são de esquerda. Os Comitês de Luta nasceram para combater o “impeachment fraudulento” da presidente Dilma Rousseff e hoje congregam “todos os opositores dos golpistas, da direita e do fascismo”. O Partido da Causa Operária se define como “revolucionário e comunista”. O Coletivo João Cândido reúne os negros do PCO. E a CasaNem, “um espaço anticapitalista”, acolhe transexuais, travestis e transgêneros em vulnerabilidade social.
Referindo-se à convocação, um dos agentes comenta: “O que eles conseguirão com isso??? Nada!!!”
ÀS 19h59_Os PMs conversam sobre o funeral de Mello Frias, o inspetor morto na Operação Exceptis. A cerimônia é marcada para o dia 7, em Sulacap, bairro da Zona Oeste carioca.
Os assassinatos de policiais civis e militares voltaram a subir no país, de acordo com a nova edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Entre 2018 e 2019, caíram 45%. No período seguinte (2019-20), aumentaram 12,8%. Juntas, as duas polícias totalizam cerca de 500 mil integrantes. Trezentos e treze deles morreram assassinados em 2018, 172 em 2019 e 194 em 2020.
No ano passado, São Paulo liderou o ranking dos três estados com maior número de agentes executados. Foram 49. O Rio de Janeiro, que somou 44 mortes, ocupou o segundo lugar. As treze vítimas do Pará o colocaram em terceiro. Se considerarmos a taxa de homicídios por mil policiais da ativa, o Rio também apareceu na segunda posição, com o índice de 0,8. Ficou abaixo do Piauí (1) e acima do Pará (0,7).
A maioria dos agentes mortos era do sexo masculino (98,4%), se declarava negra (62,7%) e tinha 39 anos ou menos (51,7%). Salta aos olhos que 72% das vítimas morreram quando estavam de folga, exercendo ou não “bicos” de segurança.
A Covid-19, porém, matou mais policiais do que a violência. Em 2020, o coronavírus tirou a vida de 472 agentes. Além de continuarem atuando nas ruas, nos quartéis e nas delegacias, sem fazer home office, os profissionais assumiram tarefas extras, derivadas da pandemia, como averiguar se estabelecimentos comerciais respeitavam as exigências sanitárias.
O aumento de policiais executados deve-se, em parte, às várias medidas de Bolsonaro que afrouxaram o controle de armas e munições. O arsenal particular – e legalizado – vem se expandindo de maneira vertiginosa pelo Brasil. No ano passado, a Polícia Federal registrou 186 071 novas armas para uso civil – um pulo de 97,1% em relação a 2019. “Quando mais pistolas, revólveres, espingardas e afins circulam pela sociedade, cresce o risco de brigas corriqueiras terminarem mal, o que pode afetar qualquer cidadão, inclusive policiais”, afirma o sociólogo Renato Sérgio de Lima.
ÀS 23h12_O grupo dissemina uma suposta mensagem do Comando Vermelho. A cúpula da facção estaria planejando uma represália contra a PM por causa do massacre no Jacarezinho. Diz o texto, crivado de erros gramaticais: “Preparar aí rapaziada do CV vai chegar o toque pra todas as comunidade que é pra descer pra pista e atacar as bases ou batalhão das polícias e a ordem é resistir até o final […] vamos parar tudo é mostrar que nos juntos somos mas fortes ass: Culpula do Cv.” O ataque não aconteceu.
O narcotráfico e as milícias reinam no Rio de Janeiro. Quase 73% do território municipal e 57% da população (ou 3,8 milhões de habitantes) se encontravam sob domínio da bandidagem em 2019. O Comando Vermelho controlava 11,4% da cidade. O Terceiro Comando e o Amigo dos Amigos, facções que rivalizam com o CV, imperavam em 3,7% e 0,3%, respectivamente. O filão maior (57,5%) cabia às milícias, constituídas de policiais, bombeiros, militares e agentes penitenciários que resolveram abraçar a delinquência. O crime ainda disputava outros 25% da área urbana. Apenas 2% do município estava livre dos poderes paralelos.
A radiografia é de uma pesquisa conduzida por cinco instituições: o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), que faz parte da Universidade Federal Fluminense; o Núcleo de Estudos da Violência (NEV), ligado à Universidade de São Paulo; o Disque Denúncia, um serviço do instituto privado MovRio; a Pista News, plataforma digital especializada em geopolítica; e o aplicativo Fogo Cruzado, que monitora tiroteios. O consórcio divulgou o trabalho há nove meses.
Segundo outro levantamento, a Polícia Militar e a Civil promoveram, entre junho de 2020 e fevereiro de 2021, quatro vezes mais incursões nos territórios ocupados pelo tráfico do que nas searas de milicianos. O Geni realizou a análise em toda a Região Metropolitana do Rio, a pedido do jornal Folha de S.Paulo.
7 DE MAIO, SEXTA-FEIRA, ÀS 7h59_Uma chacota demoníaca inaugura o dia. “Hoje o inferno está em festa”, anuncia o meme, que exibe um homem fantasiado de capeta. “Os vagabundos do jacaré estão dançando com o capiroto.”
ÀS 10h26_O grupo publica uma foto tirada por Ricardo Moraes, da agência Reuters, durante a Operação Exceptis. Na imagem, dois policiais apontam fuzis atrás de um poste. De costas para a dupla e indiferente à cena, um cidadão usa a camiseta do Botafogo.
Um áudio com uma voz masculina tripudia sobre a foto: “Cara, mas o que esse filho da puta está fazendo ali? A nossa torcida já é pequena pra cacete. Vai morrer mais um na bala perdida? Porra, tem que se preservar, rapaz! Nós somos raridade. Aposto que ontem morreram uns dezoito ou vinte com a camisa do Vasco e mais um punhado de mulambos. Eles podem diminuir que não vão acabar. Agora, um botafoguense faz falta…” Mulambo é como os adversários chamam os flamenguistas.
ÀS 11h_Os agentes exaltam um vídeo de 67 segundos, gravado por uma câmera de celular. “Enquanto a imprensa metralhava os policiais na ação do Jacarezinho, o pessoal da Core apaziguava os moleques da comunidade”, escreve o participante do grupo que envia as imagens.
Não era fake news. O vídeo realmente captou o momento em que Francisco Marques Pacheco contou a lenda do Boi-bumbá para crianças da favela. O investigador avançava pelo morro quando notou que, dentro de um casebre, cinco garotos se assustavam com os confrontos. Pensando em tranquilizá-los, parou por uns minutos, se sentou numa escada e narrou a história. “Eu me reconheci ali. Morei em comunidade na infância e acordei diversas vezes com o barulho de tiros, mas não havia ninguém para me acalmar”, disse à imprensa depois que a cena viralizou.
ÀS 12h27_Uma reportagem da revista Carta Capital surge no grupo. A matéria relata que uma comissão da Câmara vetou um projeto de lei muito caro à extrema direita: o PL nº 4754, que autorizaria o impeachment de ministros do Supremo caso os magistrados usurpassem competências do Executivo ou do Legislativo. A proposta nasceu em 2016 e voltou à pauta por influência da deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), presidente da comissão. Nenhum componente do grupo se pronuncia sobre a notícia.
ÀS 12h38_Um dos agentes avisa, com letras garrafais: “o secretário de polícia civil está dando um show na record, em entrevista para o tino júnior.” Cinco emojis de aplausos turbinam o recado. De fato, o delegado Allan Turnowski participa de uma conversa com o apresentador do Balanço Geral rj e o repórter Rael Policarpo desde as 12h22. O assunto, claro, é a Operação Exceptis.
O secretário reitera a lisura e a absoluta necessidade da incursão. Explica que os policiais investigaram o Jacarezinho por dez meses para descobrir onde os traficantes se refugiam, escondem armas e constroem fortificações, de que maneira aliciam garotos da comunidade e como pressionam os moradores. Muitas das barricadas, segundo Turnowski, dispõem de seteiras – pequenas aberturas que possibilitam observar o movimento nas imediações e atirar contra os inimigos. O delegado afirma que, não raro, os criminosos invadem casas e as tomam dos donos. Ou, então, proíbem namoros de moças pelas quais se interessam.
“Nós somos o Estado! Nós temos que vencer a resistência dos caras!”, enfatiza o secretário. “Por que ninguém menciona as atrocidades do tráfico? Por que só criticam a polícia? Os marginais não podem servir de exemplo para as crianças. O exemplo deve partir do professor, do pai de família. Não há como nossas ações pararem, compreende? É importantíssimo prender os bandidos. A sociedade de bem precisa enfrentar o crime organizado.”
Turnowski conta que, mesmo quando presos, os líderes das facções dão ordens para os subordinados confrontarem a polícia nas favelas. “Os chefões querem as mortes. Querem que a coisa repercuta, se espalhe pelas mídias sociais e ganhe contornos políticos até que alguém impeça as operações nas comunidades e deixe que os criminosos, os aliciadores de crianças, vivam tranquilamente ali.” Os embates de quinta-feira, ainda segundo o delegado, aconteceram em quarenta pontos do Jacarezinho. “Não considero que alcançamos êxito”, avalia. “Uma ação que provoca a morte de um policial e fere outros dois, que machuca inocentes, que desencadeia a reação de traficantes por causa de ordens superiores, não é exitosa.”
Com ar solene, Tino Júnior elogia o entrevistado: “Parabéns, doutor Allan! Gostaria de lhe agradecer muito como cidadão do Rio de Janeiro. Me sinto bastante feliz de ver o secretário da Polícia Civil falando as verdades, sem meias palavras, e agindo com força.” O apresentador pergunta se pode fazer um pedido. “O senhor me permite? Por favor, olhe pelos nossos policiais. Cuide da segurança deles. Garanta que desfrutem de uma boa estrutura profissional. Solicite que o Estado compre equipamentos adequados: capacetes balísticos, coletes. Eu nunca vou defender bandido, doutor! Não é da minha essência. Eu tenho criação. Não me importo com os ataques que sofro nas redes sociais. Sei distinguir o certo do errado. Hoje de manhã, um policial da antiga me disse: ‘Ô, Tino, não se importe, não! Quem fica em cima do muro leva tiro dos dois lados.’”
ÀS 12h41_Um áudio de oito minutos e 25 segundos traz partes de outra entrevista com Allan Turnowski. O secretário repete os argumentos expostos no Balanço Geral RJ. Ele fala, agora, para o Programa Isabele Benito, da Super Rádio Tupi. A apresentadora, que também comanda o telejornal SBT Rio, cultiva um bordão: “A minha marca é a verdade, é a coragem e, se precisar, é dedo na cara!”
ÀS 12h42_O grupo passa adiante um textão anônimo:
“As equipes da Polícia Civil atuaram ontem de forma extraordinária. Progrediram em conduta de patrulha, fizeram ombro a ombro, fatiaram os becos com muita lucidez, transpuseram muros e edificações, realizaram buscas pessoais minuciosas e de uma perfeição incrível!!! Mesmo sabendo que tinham perdido um grande guerreiro, mantiveram a calma e avançaram no terreno com sigilo e segurança. Agiram de forma implacável contra os seus algozes, que, encurralados e homiziados, disparavam irresponsavelmente com armas de grosso calibre.
A Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro atuou como uma tropa de elite do Exército americano, mostrando eficácia e responsabilidade na sua missão de imobilizar o inimigo. Se os demônios não se renderam, é um problema deles. A polícia estava lá para prender. Segundo a literatura sagrada, o livre-arbítrio é uma opção individual.
Sou subtenente da Polícia Militar com trinta anos de serviço e jamais tinha visto uma ação tão coesa, homogênea e com tanta união. Que deus abençoe vocês de forma rica e extraordinária!
Morte aos ímpios! 💀
E paz na terra aos homens de boa vontade.”
Em 2020, o país atingiu o maior número de óbitos decorrentes de intervenções policiais desde que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública começou o monitoramento, oito anos atrás. Houve 6 416 assassinatos no período – ou dezessete por dia. Os agentes da PM e da Polícia Civil cometeram os homicídios também quando estavam de folga. A cifra é 190% superior à de 2013 e ultrapassa em 1% a de 2019. O crescimento se deu mesmo durante a pandemia, que não só tirou pessoas das ruas como motivou a decisão restritiva do ministro Edson Fachin sobre as investidas nas comunidades fluminenses.
O Rio contabilizou 1 245 vítimas em 2020. No ano anterior, totalizara 1 814. A resolução de Fachin, portanto, colaborou para a queda dos óbitos, mas não impediu que o estado seguisse encabeçando a lista da letalidade policial. A Bahia, com 1 137 assassinatos, ocupou o segundo lugar. São Paulo, terceiro colocado, somou 814 óbitos.
Considerando a taxa de homicídios por 100 mil habitantes, o Rio alcançou o índice de 7,2. Apenas quatro estados o superaram: Amapá (13), Goiás (8,9), Sergipe (8,5) e Bahia (7,6). A média nacional girou em torno de 3. Pode-se inferir, assim, que o problema não é tão agudo no país todo. Das 27 unidades federativas, dezessete ficaram abaixo da média.
O perfil de quem morre sob a mira da polícia brasileira não se altera muito desde 2013. Os alvos preferenciais continuam sendo do sexo masculino (98,4%), negros (78,9%) e jovens (76% com idades entre 0 e 29 anos).
Professor aposentado de direito na Universidade de Nova York, Paul Chevigny criou uma métrica que permite verificar se as forças de segurança estão abusando de suas prerrogativas. Em termos ideais, as intervenções não deveriam ferir nem matar ninguém. Na prática, as coisas mudam de figura. Daí o método de Chevigny. Ele sugere comparar o número de agentes assassinados numa localidade com o de civis mortos pela polícia. Caso a proporção seja maior do que 1 para 15 – ou melhor, um agente assassinado para cada quinze civis mortos –, convém acender o sinal de alerta. No Brasil de 2020, a média estadual chegou à marca de 1 para 33. Só Rondônia, Mato Grosso do Sul, Piauí, Ceará, Pernambuco e Distrito Federal tiveram índices menores do que 1 para 15. O Rio apresentou a taxa de 1 para 28. Goiás e Paraná registraram inacreditáveis 1 para 210 e 1 para 186,5, respectivamente.
ÀS 16h48_Os policiais soltam outra piadinha: “Atenção! Operação no Jacaré agora!!!” Duas fotos mostram um veterinário fazendo cirurgia num jacaré.
ÀS 17h45 e 17h53_O grupo propaga um vídeo de trinta segundos em que duas mulheres dançam o funk Minha Vó Tá Maluca, de MC Carol. A cena transcorre durante uma festa diurna. Enquanto sacolejam, as mulheres exibem artefatos que lembram armas. A mais idosa, já grisalha, aparenta segurar um fuzil. A mais jovem, de cabelos pretos, carrega uma espécie de submetralhadora e veste um colete policial.
Fotos que acompanham o vídeo reproduzem imagens do RJ1, telejornal da Globo. Cercada de repórteres, uma mulher semelhante à de cabelos pretos demonstra indignação. Chama-se Adriana Santana de Araújo e é mãe de um dos rapazes mortos no Jacarezinho. Ela diz que o filho não trabalhava para o narcotráfico e ganhava a vida como motoboy: “Perdi meu grande amor. A polícia entrou na comunidade com a intenção de matar!”
O texto que se propõe a explicar as fotos e o vídeo faz “uma denúncia”. Sustenta que Adriana de Araújo e a mulher mais jovem da festa são a mesma pessoa. A mãe chorosa que protesta na tevê curtiria baladas de traficantes.
Tudo calúnia. A própria polícia desmentiu a história, que tomou as redes sociais de extrema direita. O vídeo, na verdade, retrata uma confraternização familiar. A mulher de cabelos pretos, uma empregada doméstica de 49 anos, comemorava o aniversário do filho em Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense. Ela dançava junto à avó do aniversariante, uma costureira quase septuagenária. Os netos da empregada produzem uma série caseira sobre o cotidiano das favelas e a transmitem pelo YouTube. Gravaram o vídeo da festa por farra, com as armas falsas e o colete policial que usam na “novelinha”. A família não sabe como as imagens viralizaram.
Em razão da boataria, as três mulheres foram insultadas e perseguidas. Adriana de Araújo decidiu processar dezessete pessoas que espalharam a injúria, entre as quais deputados e blogueiros. Os integrantes do grupo não corrigiram o equívoco.
ÀS 20h42_Um desabafo mordaz fecha o dia. Numa foto em preto e branco, um PM com trajes de combate aponta um fuzil. Sobre a imagem, os dizeres: “Todos são especialistas em segurança pública até ouvir o primeiro disparo. Depois disso, só ficam os policiais!”
8 DE MAIO, SÁBADO, ÀS 13h32_Os agentes destacam trecho de uma entrevista do procurador Marcelo Rocha Monteiro à Rádio Bandeirantes. Ele critica a resolução do STF que limita as intervenções policiais nas favelas do Rio: “Eu recomendo que, em vez de escutar as ONGs e os especialistas fajutos, o Edson Fachin abandone o conforto dos gabinetes e acompanhe uma ação dentro das comunidades. O ministro e seus colegas do Supremo deveriam conferir de perto como a bandidagem reage à presença da lei. Assim vão entender por que a polícia atira. Naquela situação, existem somente duas alternativas: matar ou morrer.” Rocha Monteiro costuma recorrer às mídias sociais para atacar a esquerda, os desarmamentistas, o “manicômio jurídico brasileiro” e os opositores de Bolsonaro.
ÀS 16h40_O grupo posta novas piadas. “Não tô acreditando que o Bope vai deixar a Core manter esse recorde”, zomba um meme, ilustrado com uma caveira. O Bope – Batalhão de Operações Policiais Especiais – é a tropa de elite da PM fluminense.
Outro meme atiça: “Fala, rapaziada da Polícia Civil! Não querendo fazer fofoca, mas falaram que no Complexo do Alemão vocês não entram!!!!” A favela da Zona Norte carioca também está sob o jugo do Comando Vermelho.
9 DE MAIO, DOMINGO, ÀS 22h21_Os participantes do grupo anunciam que o programa Domingo Espetacular, da Record, vai apresentar a versão da Polícia Civil sobre a chacina no Jacarezinho: “Imagens, áudios e documentos exclusivos deixarão claro o que aconteceu de verdade.” Conduzida por Roberto Cabrini, a reportagem de 26 minutos é equilibrada. Expõe tanto a visão dos agentes quanto as denúncias dos moradores e ativistas sociais.
11 DE MAIO, TERÇA-FEIRA, ÀS 12h38_Os PMs compartilham um vídeo do influenciador digital José Maria Silva Filho, o Dr. Zéma, que vive na Baixada Fluminense. Advogado criminalista e ex-coordenador do Movimento Brasil Livre (MBL), o mineiro de 46 anos se declara cristão, adepto do liberalismo, fã de armas e negro – “ou preto, crioulo, tição, miquimba, tiziu”. Tem um total de 26 mil seguidores no Facebook, Instagram, YouTube e TikTok. Durante os dois minutos e cinquenta segundos do vídeo, “manda a real” sobre a Operação Exceptis:
“Só você não se ligou que o sistema todo lucra com a morte dos traficantes. Lucra a mídia, vendendo notícia. Lucra a polícia, mostrando relevância social. Lucram promotores, juízes e até advogados, como eu. Lucra o olheiro da boca, que agora será promovido para vapor. Lucra o vapor, que vai virar soldado, e lucra o soldado, que vai virar gerente. Lucram vereadores e deputados, que bombam nas mídias sociais, já garantindo os votinhos das próximas eleições. E não adianta vir com esse papo de direita ou esquerda porque, para mim, os dois lados se alimentam dessa merda. A gente também precisa mencionar alguns parentes de vagabundos, né? Namoradas, tios, primos e irmãos que tiram onda dentro da comunidade, usufruindo da fama conquistada pelos meninos da boca. Cara, o bagulho é complexo! Corrompe desde o mototaxista que fecha com o traficante até ministro do Supremo Tribunal Federal comprometido em manter a polícia longe das favelas.
Essa galera construiu um sistema que só favorece rico, político e o comércio de drogas. Então, deixa eu te dar um papo reto: vagabundo que se alista como soldado do tráfico está ali para matar ou morrer. E muitas vezes o cara mata! Mata tudo que vê pela frente. Imagina você errar o teu caminho e entrar numa comunidade dominada pelos criminosos. Vai morrer, meu amigo! Já aconteceu com vários turistas. Por isso, não vou ficar chorando a morte de vagabundo que estava de plantão e assassinou policial.
Mas a verdade é que tanto o policial quanto o vagabundo são vítimas do grande sistema. Aqueles que permitem a entrada de drogas e armas por nossas fronteiras e pela alfândega, aqueles que garantem a livre distribuição da parada nas favelas provavelmente usam gravata e nunca trocaram, nem vão trocar, nenhum tiro com o Caveirão. Enquanto coronéis corruptos bebem uísque em seus apartamentos, os verdadeiros chefes do tráfico brindam com champanhe francês a bordo de algum iate em Angra dos Reis. Tu sabe que estou dizendo a verdade. O sistema opera como num jogo de xadrez: sempre sacrifica os peões para poupar o rei. E se você acha que essa merda está perto de acabar, com certeza não conhece o Rio de Janeiro. Fala sério!”
12 DE MAIO, QUARTA-FEIRA, ÀS 8h_Uma sugestiva citação bíblica, escrita sobre uma paisagem idílica, abre a manhã: “Portanto tomai toda a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau e, havendo feito tudo, permanecer firmes. Efésios 6,13.”
17 DE JUNHO, QUINTA-FEIRA, DE 0h20 A 0h54_Os PMs travam um diálogo sobre uma ocorrência recente:
– Dois colegas baleados agora em serviço.
– Viatura atacada. Ainda levaram o fuzil e uma pistola.
– A princípio, óbito.
– O STF patrocinou isso!
– Confirmado: dois óbitos.
– Puta que pariu! Covardia!
– Tem que caçar esses filhos da puta!
– A resposta precisa vir à altura, mas no Brasil é bagunça.
– Vamos ver se amanhã os safados dos direitos humanos irão se manifestar.
– Mais duas famílias ceifadas e destruídas pelos marginais.
-– Tem que fazer igual fizeram no Jacarezinho…
***
Pouco depois da chacina, representantes da Polícia Civil convocaram a imprensa para dizer que a corporação agiu corretamente e sem excessos naquela quinta-feira. “Hoje a favela presenciou uma única execução, a do inspetor André Leonardo de Mello Frias”, afirmou uma das autoridades. As demais mortes, explicaram, aconteceram “em confronto”. O governador do Rio, Cláudio Castro, também defendeu a operação num vídeo curto. Ressaltou que os narcotraficantes impuseram uma “rotina de terror e humilhação” à comunidade e enfrentaram os policiais de maneira “brutal”, com “armas de guerra”. O presidente Jair Bolsonaro, acuado pela CPI da Pandemia, logo embarcou no assunto. Chamou os agentes de “guerreiros” e os parabenizou por “protegerem a população de bem”.
Laudos necroscópicos atestaram que 73 projéteis atingiram os 27 civis. Um dos mortos recebeu um disparo à queima-roupa na barriga e quatro levaram somente tiros pelas costas. Familiares de cinco vítimas alegam que nenhuma delas participava do Comando Vermelho. Embora tivessem a ficha suja, estavam afastadas do crime. Os parentes ainda dizem que, das cinco, três morreram enquanto faziam atividades rotineiras. Uma passeava com a cachorra, outra ia comprar pão e a terceira caminhava até o mercado.
Moradores do Jacarezinho acusam os agentes de cometer mais arbitrariedades: matar homens já rendidos, desdenhar dos mortos, mudar as cenas dos assassinatos, invadir domicílios e não socorrer feridos. Em audiências de custódia, parte dos sete presos relatou que os policiais os forçaram a arrastar cadáveres, os torturaram psicologicamente e os agrediram com joelhadas, chutes, tapas, coronhadas, pisões e socos.
O Extra, jornal popular do Rio, rastreou 24 das 81 munições apreendidas no morro. Os cartuchos provinham tanto do Exército, da Marinha e da Aeronáutica quanto das polícias Federal, Militar e Rodoviária. Trocando em miúdos: o material bélico do Estado chegou às mãos dos traficantes.
O massacre repercutiu no exterior. Os diários norte-americanos The Washington Post e The New York Times, o britânico The Guardian, o espanhol El País, o francês Le Monde e o argentino La Nacion abordaram a matança com destaque. A Defensoria Pública do Rio descreveu o que se passou na favela como “grande absurdo”, “desastre” e “terror generalizado”. A Organização das Nações Unidas, a Anistia Internacional e a Human Rights Watch – instituição não governamental que defende os direitos humanos – engrossaram as críticas à ação.
A própria Divisão de Homicídios da Polícia Civil está encarregada de apurar os crimes no Jacarezinho. A corporação, porém, não estabeleceu data para encerrar o trabalho. Em maio, o Ministério Público estadual anunciou que faria uma averiguação paralela por quatro meses. O prazo será prorrogado, se necessário. De acordo com a Constituição, o MP responde pelo controle externo das atividades policiais. Ocorre que, no Rio, o órgão tem fama de não cumprir sua tarefa.
Há seis anos, a Assembleia Legislativa instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para analisar os quase 3,5 mil assassinatos praticados pelas forças de segurança fluminenses entre 2010 e 2015. A investigação constatou que o Ministério Público ou o Tribunal de Justiça pediram o arquivamento de 98% dos casos. “Isso mostra uma falha do sistema. Não é só a polícia que é violenta, mas todo o sistema favorece essa violência”, concluiu à época o deputado Marcelo Freixo, relator da CPI.
(revista piauí)

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