Hércules do morro

Quando o homem mais forte do Pavão-Pavãozinho fraquejou

Copa de 2014 acabara de começar e a guia turística Ceci Maciel ainda se debatia com um problema nada trivial. Setenta e cinco torcedores, recém-chegados da Austrália, planejavam não apenas ver alguns jogos in loco como conhecer melhor o Brasil, país que sediava a competição. No Rio de Janeiro, pretendiam visitar os inevitáveis Cristo Redentor e Pão de Açúcar, mas também uma favela. “A do Pavão-Pavãozinho seria perfeita”, conjecturou a guia que, apesar de nascida em Belo Horizonte, conduzia forasteiros pela capital fluminense havia quase duas décadas. Situada na Zona Sul, região mais próspera do Rio, a comunidade lhe pareceu adequada primeiro por já ter o costume de receber turistas. Depois, por oferecer uma paisagem magnífica. Quem alcança o cume da favela, encarapitada no maciço do Cantagalo, vislumbra tanto a praia de Copacabana quanto as montanhas que recortam o litoral.
Com a ajuda de moradores do Pavão-Pavãozinho, a guia organizou um passeio para o feriado de Corpus Christi. Os estrangeiros se dividiriam em três turmas, que subiriam a comunidade por trilhas distintas e se encontrariam no topo do morro. Ali, parte do grupo disputaria uma pelada com jogadores da própria favela – um Brasil versus Austrália em campo de terra. Logo depois, todos almoçariam num dos casebres locais. A dona da residência prepararia uma feijoada.
Pouco antes da excursão, porém, Ceci Maciel soube que haveria um adulto com deficiência física entre os turistas. Oriundo de Newcastle, cidade a 160 quilômetros de Sydney, Christopher James Dryden tinha 36 anos à época e não podia caminhar muito. Um erro médico lhe causara uma lesão irreversível na coluna. “Enquanto fazia o parto de meu filho, o obstetra o deixou cair”, relembra a mãe, Helen Dryden. “A queda danificou a medula espinhal do Chris, e o lado direito do corpo dele perdeu a força.” Assim, desde criança, o australiano só consegue percorrer longas distâncias com cadeira de rodas. Apenas em trajetos curtos é que dispensa o equipamento.
O Pavão-Pavãozinho, diferentemente de outras favelas que se espalham pelos morros cariocas, não dispõe de “ruas e avenidas carroçáveis”, como diz a prefeitura. Caminhões, ônibus, carros, motos e bicicletas estão impossibilitados de subir a comunidade porque não existem ladeiras por lá. Os moradores e visitantes que desejam galgá-la necessitam embarcar num bondinho elétrico (e gratuito) ou desbravar uma sucessão de escadas bem íngremes. Isso quando não têm de recorrer às duas alternativas. O bonde, afinal, se desloca num plano inclinado com somente 130 metros de comprimento. Partindo do sopé, trafega em linha reta e atende cinco estações. Da quinta até o cume, ainda há muito chão, repleto de casas e biroscas. Para acessá-las, restam unicamente as escadarias de concreto.
“Como o Chris vai atingir o alto do morro?!”, alarmou-se a guia turística, já considerando excluí-lo da visita. O australiano, no entanto, não topou ficar de fora. Ele, que opera escavadeiras de 52 toneladas no ferro-velho da família, viajava com os pais e um cunhado. “Educamos nosso filho para não recuar diante dos obstáculos que as limitações motoras lhe trazem”, conta Helen. “Acho que o garoto aprendeu a lição…” Quando menino, Chris não abdicou nem mesmo do futebol, esporte de que mais gosta. Jogou com muletas entre os 5 e 8 anos num time em que nenhum dos outros integrantes apresentava deficiência física. “Deem um jeito! Quero assistir à pelada no topo da favela”, reiterava o australiano toda vez que tentavam demovê-lo da ideia.
A solução para o dilema só apareceu aos 45 minutos do segundo tempo. Na véspera do passeio, a guia teve um estalo: “Óbvio! Vou procurar o Rocky!” O homem mais forte do Pavão-Pavãozinho a recepcionou com a descontração habitual. “Deixa comigo, Ceci. Eu ponho o gringo lá em cima.”

Nojinho
B
aiano de Ilhéus, Roque Luiz Santos Ferreira morava na favela desde a década de 80 e exercia ali um ofício imprescindível: o de carregador. Fulano resolveu se livrar de um fogão. Beltrana adquiriu um freezer. Sicrano se mudou para a comunidade e precisa levar meia dúzia de móveis até o novo endereço. Como transportar coisas tão grandes morro acima ou morro abaixo se o bondinho, além de não servir toda a montanha, só pode conduzir pessoas, bichos de estimação e compras leves? Houve um período em que recebia qualquer trambolho, inclusive material de construção. Ocorre que o peso excessivo acelerava o desgaste do veículo. Para evitar que o bonde continuasse quebrando com frequência, a associação de moradores proibiu determinadas cargas. Daí a importância de Ferreira. Ele carregava sofá, poltrona, mesa, guarda-roupa, máquina de lavar, geladeira e o que mais aguentasse pelas escadarias. Trabalhava geralmente sozinho e sem o auxílio de cordas nem roldanas. Valia-se apenas do próprio corpo para encarar o batente. Não à toa, ora o tratavam pelo apelido de “Hércules”, ora pelo de “Rocky Balboa”. Ostentar o nome dos dois fortões lendários – o da mitologia greco-romana e o do boxeador de Hollywood – lhe agradava. “Sou o Hércules do morro!”, proclamava, às gargalhadas. “O Rocky Balboa de Copacabana!”
O ganha-pão de Ferreira advinha especialmente dessas atividades. Mas o carregador desempenhava outras na favela sem cobrar um tostão. Volta e meia, assumia o papel de gari voluntário e limpava as valas, desentupia o esgoto ou varria os becos. Não utilizava botas nem luvas para se proteger. Caso alguém o reprimisse pela falta de cuidado, debochava: “Não tenho nojinho, não!”
Ele também garantia que doentes, idosos, grávidas, moradores com deficiência física e até caixões transpusessem as escadas do Pavão-Pavãozinho. Ajeitava-os nos braços ou nas costas e enfrentava os degraus. “Lá vai Rocky Balboa, o Samu mais ágil da comunidade!”, trombeteava, referindo-se ao Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, oferecido pelo governo.
No dia 19 de junho de 2014, conforme acertara com a guia turística, Ferreira se apresentou para ajudar Chris Dryden. “Era uma quinta-feira chuvosa”, recorda-se Ceci Maciel. “O chão da favela estava uma manteiga de tão escorregadio.” Trajando um bermudão, uma camisa do Vasco e sandálias de borracha, o carregador logo se entendeu com “o gringo”, um marmanjo de pele rosada. A dupla tomou o bondinho e desceu na última estação, onde o australiano abandonou a cadeira de rodas. Ele, então, apoiou um dos braços sobre os ombros de Ferreira, que o enlaçou vigorosamente pela cintura. Devagarzinho, os dois andaram até o cume do morro. Quando Chris se cansava, o carregador o levava nas costas – ou “na carcunda”, como costumava falar.
A guia quis pagar pela empreitada, mas Ferreira relutou em aceitar. O “Samu mais ágil da comunidade” tinha de se manter fiel à regra de nunca prestar socorro por dinheiro. “Eu tanto insisti que o Rocky acabou pegando uns trocados – já nem lembro o valor. Ele guardou a grana sem jeito enquanto repetia: ‘Não precisava, Ceci! Comigo é no coração.’”
Chris e a mãe ficaram quase meia década sem notícias do carregador. Em abril passado, porém, Helen publicou uma breve mensagem no Facebook: “Triste por saber que o Rocky morreu. Jamais vou esquecê-lo. Era de fato um gigante gentil.” No espaço para comentários, Chris lamentou igualmente a morte do baiano e o cobriu de elogios: respeitoso, incrível, amável, carinhoso. “Espero revê-lo um dia no céu”, arrematou.
O desaparecimento de Ferreira também surpreendeu e entristeceu a favela. “Tudo aconteceu muito de repente”, diziam no morro. “O coitado partiu cedo demais. Tinha só 52 anos! Como pode? Tão forte e…”

Flamengo
V
i o carregador pela primeira vez em 2017, quando me mudei para o bairro de Copacabana. Desde então, o avistava invariavelmente no mesmo local, a rua Saint Roman, e com o figurino que se tornara uma obsessão: o “manto do Vasco”, a bermuda e as sandálias de borracha. Poucos vascaínos devem ter tantas camisas do time e de épocas tão diferentes. Ferreira se gabava de possuir uma infinidade de modelos, que vestia alternadamente para trabalhar ou ir às compras, passear na orla, encontrar os amigos, vagabundear diante da televisão.
Estreita e sinuosa, a Saint Roman margeia o Pavão-Pavãozinho. No tempo em que o Rio ainda exibia o status de capital federal, a rua abrigava casarões requintados. O cenário foi se alterando à medida que a favela cresceu. Hoje o bondinho que atende o morro sai justamente da Saint Roman. Lá também se iniciam algumas escadarias de acesso à comunidade. O vaivém de potenciais consumidores pobres atraiu para o endereço lanchonetes e restaurantes baratos, mercearias, bancas de frutas, botecos, sorveterias e carrocinhas de tapioca ou milho verde. Os imóveis residenciais se desvalorizaram, carcaças de motos e carros abandonados despontaram pelas calçadas, o lixo se avolumou e um odor azedo – o cheiro dos núcleos urbanos em que o saneamento é precário – inundou o ar.
No meio daquela balbúrdia, Ferreira montou um pequeno negócio, 100% informal, que chamava de “Casas Bahia”. Era uma lojinha a céu aberto, em que vendia mercadorias usadas: rádios, tevês, antenas, ventiladores, colchões, brinquedos, armários, camas, escrivaninhas, cadeiras – tudo, enfim, que conseguisse garimpar pelas imediações e que julgasse comercializável. Às vezes pescava os objetos nas lixeiras dos prédios que se estendem por Copacabana. Outras vezes alguém lhe dava um cacareco que desejava jogar fora. Para resguardar os produtos da chuva e do sereno, o carregador os envolvia com lona ou plástico. “Um pesadelo sempre me atormenta”, contava. “Sonho que fiscais da prefeitura me esculacham e levam minhas tralhas embora. Ou que, de noite, algum malandro rouba a loja toda. Fico desesperado. Mas de manhã, quando chego à Saint Roman, encontro cada tranqueirinha no mesmo lugar. Nunca mexeram em nada.”
Nas Casas Bahia, além de bancar o camelô, Ferreira acertava o preço dos carregamentos com quem pretendia contratá-lo. A tabela variava segundo o peso da carga e a distância percorrida. “Uma geladeira de duas portas, por exemplo. O Rocky cobrava 150 reais para deixá-la na região mais alta do morro e liquidava a tarefa em quarenta minutos, se tanto”, relembra Francisco de Assis Marques de Sousa. O cearense é um dos pelo menos sete carregadores que continuam servindo a comunidade. “Sem dúvida, nenhum de nós tem a mesma força do Hércules. O cara fazia sozinho o que fazemos em dois ou três. Ele brincava que a favela é a nossa academia de ginástica. Não estava errado. Só que, numa academia de verdade, você paga para malhar. Aqui a gente malha e ainda ganha.”
Cada carregador do Pavão-Pavãozinho se especializou num tipo de artefato. Uns transportam material de construção. Outros priorizam caixas de bebida ou botijões de gás. Ferreira gostava dos eletrodomésticos e das mobílias. À semelhança do colega mais parrudo, os sete profissionais remanescentes também se arvoram de Samu comunitário. Nessa circunstância, trabalham de graça.
“Prefiro me machucar do que machucar as coisas de alguém”, sentenciava Rocky Balboa sempre que lhe indagavam se conseguiria portar uma carga sem danificá-la. Ele realmente merecia a fama de cuidadoso e ajuizado. Apreciava uma cervejinha ou uns tragos de catuaba, mas evitava tomar álcool durante o expediente. Caso necessário, arregaçava as mangas nos fins de semana e feriados. Não tinha agenda ou celular nem o hábito de anotar compromissos. Mesmo assim, jamais traía um acordo. Ouvi de várias pessoas relatos do gênero: “Você pedia para o Rocky buscar um fogão em determinado endereço, dentro de cinco semanas. Na data marcada, o cara aparecia.”
Ferreira se mostrava tão responsável que diversos moradores lhe confiavam as próprias chaves quando se ausentavam. Diziam: “Às tantas horas da tarde, a loja tal vai trazer meu sofá novo. Pode receber a encomenda na Saint Roman e guardar em minha casa.” O trato se fazia imperioso até porque a “loja tal” – como nove entre dez estabelecimentos comerciais da cidade – não se dispunha a subir o morro para entregar nada.
Negro, musculoso, de cavanhaque ralo e cabelos bem curtos, o carregador de 1m75 adorava mexer com quem passava diante das Casas Bahia:
“Que princesa, hein?”
“Turista? Inglaterra? Beautifulbeautiful!”
“Fala, meu rei! Compre um negocinho aqui do Hércules.”
“E aí, moço do gás, atrasou hoje?”
“Nego ruim de roda! Não aprendeu a dirigir, não?”
“Se liga, viado!”
“Agora usa dois celulares, é? Ficou rico?”
“Boa tarde, bebê!”
“Ô, cracudo! Cadê o teu cachorro pentelho?”
“Devagar, cabeção! Vai tirar a mãe da zona?”
Não raro, finalizava as piadas com uma gargalhada ou um sorriso bem característicos. Ele ria quase de boca fechada, talvez por lhe faltarem alguns dentes frontais. Costumava madrugar nas Casas Bahia e logo colocava um aparelho de som para tocar “músicas de antigamente”, sempre em alto volume e em inglês: Lionel Richie, James Brown, Michael Jackson. Odiava canções brasileiras, sobretudo funk carioca. “Troço ridículo! Qual a graça de cantar ‘senta no meu, agarra na tua, bota na minha’?” Quando estava particularmente alegre, trocava a camisa do Vasco por uma fantasia do Homem-Aranha, que descolou sabe-se lá onde, e dançava pela Saint Roman.
Perto das Casas Bahia, num mastro improvisado, hasteava a bandeira do clube que venerava. Entre os atletas históricos do time, cultuava principalmente Roberto Dinamite, o artilheiro que brilhou durante as décadas de 70 e 80. No muque do braço direito, Ferreira tatuou a cruz de malta, um dos ícones vascaínos. No braço esquerdo, desenhou o brasão da equipe. Certa vez, flagrou o ônibus do Vasco estacionado à beira de um hotel. Não titubeou: arrumou uma porção de sal grosso e lançou sobre o veículo “para tirar o mau-olhado”.
Mais do que torcer pelo próprio time, o carregador torcia contra o Flamengo. “Suponha que o rubro-negro fosse enfrentar um clube obscuro na Copa do Brasil. O Rocky dava um jeito de arranjar a camisa do time pequeno e vesti-la só para sacanear os flamenguistas”, recorda Gabriel Santos Abreu. O jovem de 29 anos é proprietário da Favela Connection, microempresa que organiza excursões por comunidades do Rio. “Promovo turismo de experiência”, faz questão de esclarecer. “Normalmente, minha clientela vem da Holanda, França, Alemanha e dos Estados Unidos.”
O giro pelo Pavão-Pavãozinho demora cerca de duas horas, custa 100 reais por pessoa, em média, e inclui almoço num restaurante local. Do roteiro, constava uma visita às Casas Bahia. “O Rocky simbolizava não só a favela como o país inteiro. Era um brasileiro típico – daqueles que, mesmo sem emprego formal, têm uma baita disposição para ralar. Por isso, eu queria que os turistas o conhecessem.” Muitos brindavam o carregador com gorjetas e lhe deixavam mensagens num mural branco afixado junto à lojinha. Redigiam frases do tipo God bless you (Deus abençoe você) ou Rocky, carry on the great work(Rocky, prossiga com o excelente trabalho).
Natural do Pavão-Pavãozinho, o guia acredita que Ferreira poderia ser diagnosticado como um acumulador compulsivo. “Boa parte das quinquilharias que expunha nas Casas Bahia não valia um centavo. Ele as catava pelo simples prazer da posse – tanto que dificultava a venda das mais preciosas.” Jogava o preço lá para cima e enchia de perguntas os incautos que teimavam em fechar negócio: “Tu precisa realmente disso? Por quê?”
Embora passasse com regularidade pela Saint Roman, nunca ousei comprar nada de Rocky Balboa. Sabia do folclore em torno dele e imaginava que, um dia, iria entrevistá-lo. A morte, infelizmente, agiu mais rápido.

Rala-Bucho
Hércules de Copacabana migrou para o Rio de Janeiro ainda criança. Primogênito de três irmãos, deixou Ilhéus com a família em busca de melhores oportunidades e se estabeleceu no Arará, favela da Zona Norte carioca. A mãe trabalhava como empregada doméstica. O pai limpava barris de óleo em refinarias. Depois de uns anos no Sudeste, o casal se separou e a mãe retornou à Bahia junto dos filhos. Já o pai seguiu para o Pavão-Pavãozinho, onde se amigou com outra mulher. Mal adquiriu um sobrado de três andares, virou comerciante. Transformou dois pavimentos em moradia e inaugurou no térreo o Rala-
Bucho, um híbrido de bar e forró.
Durante a adolescência, Rocky Balboa – que não terminou o ensino fundamental – resolveu auxiliar o pai e saiu mais uma vez do Nordeste. Iniciou, assim, o ofício de carregador. Pegava caixas de cerveja na Saint Roman e levava até o Rala-Bucho. “Ele esbanjava força desde pequeno. Em Ilhéus, quebrava coco na porrada. Dava uns murros e, tuf!, o fruto se abria”, afirma Carlos Alberto Santos Ferreira, o irmão caçula, que também voltou para o Rio e hoje vive em outra favela da cidade, o Complexo do Alemão.
Quando decidiu fechar o Rala-Bucho, o pai trocou o Pavão-Pavãozinho por Niterói. Vendeu dois pavimentos do sobrado e consentiu que o carregador permanecesse no último andar. O espaço, minúsculo e abafado, compunha-se de um quarto, um banheiro e uma cozinha. A porta de entrada tinha um buraco considerável, que permitia a invasão de ratos, baratas e lacraias. Após se casar, Ferreira criou ali os três filhos. A família inteira dormia numa única cama, rodeada por adornos que celebravam o Vasco: bichos de pelúcia, pôsteres, bótons e adesivos. “Aqui até os ratos são vascaínos”, zombava o carregador.
A parceira dele acabou morrendo jovem, em razão de uma insuficiência renal. Viúvo, Hércules preferiu cuidar da prole sozinho. Apenas quando as duas meninas (“minhas princesas”) e o garoto cresceram é que encarou um segundo casamento. Alugou uma residência maior, também no Pavão-Pavãozinho, e se mudou com a nova companheira. Legou o casebre antigo para os filhos e, agora, um par de netos – já que ambas as princesas, solteiras, tornaram-se mães.

Desavenças
T
ão logo me identifiquei como jornalista pelo telefone, Maria Desterro de Lima, a Meri, abandonou o tom cordial.
– O que você quer?
– Falar sobre o Rocky.
– Por quê?
– Porque vocês moravam juntos. Formavam um casal, não?
– Não! A gente morava junto, mas nossos santos não batiam. Conversávamos só o necessário. Eu não sabia nada da vida dele.
– Nada?
– Praticamente nada. Nós apenas dividíamos o mesmo teto, entende? O Rocky se dava com todo mundo lá fora, mas aqui dentro…
– Vocês brigavam?
– O tempo inteiro! A gente se maltratava demais.
– Agrediam-se fisicamente?
– Não, isso não! Como vou explicar? O Rocky não gostava de papo comigo… Explodia à toa.
– O que o irritava?
– Qualquer besteira. Por isso, não parava em casa. Ficava sempre na rua, limpando as valas, erguendo coisas pesadas, vendendo os badulaques dele. Eu também não facilitava. Sou estranha, totalmente na minha.
– Quando vocês se conheceram?
– Há uns onze anos. Mas não moramos juntos logo de cara. O Rocky primeiro educou os filhos. Ele doaria um braço, uma perna, um rim pelos três. Adorava aquelas crias.
– Se vocês brigavam tanto, por que não se separaram?
– Boa questão! Já pensei à beça no assunto… Nunca consegui responder.
As desavenças, porém, não impediram que o carregador e a parceira gerassem um menino. A criança está com 4 anos e é o terceiro filho de Meri, uma paraibana de pele clara, com os cabelos tingidos de loiro. Ela tem duas adolescentes de outras uniões.
– O Rocky cuidava direito do garoto?
– Cuidava, sim. Também ajudava nas despesas. Eu trabalho como diarista num apartamento da Zona Sul às segundas e quintas-feiras. O bom de lá é que a patroa me deixa levar o menino. Tiro 1 200 reais por mês e pago 600 de aluguel. O dinheiro do Rocky vai fazer muita falta.
– Você sentiu a morte dele?
– Senti. A gente se acostuma com a presença do outro mesmo quando não vive bem.
Perguntei se poderia visitá-la.
– Melhor não – retrucou depois de um breve silêncio. – Já disse que sou estranha.

Deslizamento de terra
Instituto Pereira Passos, um dos responsáveis pelo planejamento urbano do Rio de Janeiro, estima que o Pavão-Pavãozinho nasceu na década de 30. À época, Copacabana e a vizinha Ipanema se consolidavam como bairros de classes média e alta. Ofereciam, assim, diversas possibilidades de emprego. Ávidos por aproveitá-las, trabalhadores de baixa renda, majoritariamente negros e originários do norte fluminense, de Minas Gerais ou da Bahia, se transferiram para a região. Sem condições de bancar os caros aluguéis cobrados nas redondezas, desbravaram o maciço do Cantagalo e ergueram ali um punhado de casas. Eram construções precárias, de tábua ou lata, que se agrupavam em terreno instável. Bastava chover para que a área se convertesse num lamaçal. Cobertos com folhas de zinco, os barracos costumavam ter quintais, onde vicejavam árvores frutíferas. Como o morro carecia de água tratada, os moradores precisavam descer até o asfalto e pedi-la nas residências abastadas da rua Saint Roman. A falta de eletricidade exigia que lamparinas iluminassem os casebres, aumentando o risco de incêndio.
Nos anos 30 e 40, o Cantagalo também abrigou o Hotel Belvedere. Inaugurado por um imigrante alemão, o empreendimento – que dispunha de confortáveis bangalôs e um bosque – funcionava igualmente como cassino. Fez muito sucesso, mas perdeu o glamour a partir de 1946, quando o presidente Eurico Gaspar Dutra proibiu os jogos de azar.
Com o tempo, cada vez mais decadente, o Belvedere virou um pensionato e, depois, um cortiço. Transformou-se, dessa maneira, em novo foco de habitações populares no morro. Enquanto a favela se expandia, cresciam as reivindicações por luz elétrica e água encanada, que só chegaram na década de 60, embora não suprissem toda a comunidade. No mesmo período, o Pavão-Pavãozinho recebeu a primeira rede de esgoto. O upgrade, ainda que tímido, se deveu às negociações entre uma incipiente associação de moradores e o Estado.
Nos anos 60, aliás, o Rio e o governo federal colocaram em prática uma operação gigantesca para extinguir as favelas que se espraiavam pela parte mais rica da cidade. De 1962 até 1965, o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, removeu aproximadamente 42 mil pessoas de 27 comunidades. Seu sucessor, Francisco Negrão de Lima, deslocou 70,5 mil. Os desalojados iam para conjuntos habitacionais nas longínquas zonas Norte e Oeste. O Pavão-Pavãozinho, graças à resistência da associação de moradores, permaneceu em Copacabana.
Não se sabe com exatidão como o nome da favela surgiu. Uma das hipóteses é que derive justamente da riqueza que cercava o maciço do Cantagalo. Conta-se que, nos palacetes dos arredores, criavam-se pavões. Talvez, de onde estivessem, os habitantes do morro divisassem as aves lá embaixo e desejassem absorver um pouco da imponência delas. Por isso, batizaram o povoamento inicial de Pavão e chamaram de Pavãozinho a extensão desse primeiro núcleo.
A década de 70 trouxe para a comunidade uma onda de nordestinos que fugiam da seca. Já os anos 80 presenciaram uma tragédia de que a favela ainda se lembra. No Natal de 1983, uma tempestade noturna provocou um deslizamento de terra e entulhos que fez desabar uma caixa-d’água coletiva de 25 mil litros, destruiu barracos e causou pelo menos dezessete mortes. O governador Leonel Brizola reagiu à catástrofe com um projeto que pretendia reurbanizar o Pavão-Pavãozinho. Assim, no final de 1985, o morro ganhou uma série de benfeitorias: o bondinho elétrico, iluminação pública e sistema de esgoto mais eficientes, calçamento das principais vielas, dois prédios para acolher as vítimas do desastre e inúmeras escadas de concreto, que substituíram as de barro, madeira ou pedra. A revitalização animou vários moradores, que decidiram investir em edificações melhores. Casas de tijolo se disseminaram, então, pelo maciço do Cantagalo.
Hoje o Pavão-Pavãozinho alastra-se por 65 mil metros quadrados. É pequeno em comparação com a maior das 1 018 comunidades cariocas. Localizada na Zona Oeste, a Fazenda Coqueiro soma 1,1 milhão de metros quadrados.
O Censo de 2010 indicava que a favela de Copacabana reunia 5 567 pessoas em 1 840 domicílios. A associação de moradores não reconhece as cifras. Diz que, na ocasião, o Pavão-Pavãozinho juntava bem mais gente e que, agora, tem cerca de 20 mil habitantes, acomodados em 6 mil residências. Todos os imóveis, inclusive os comerciais, usufruem de energia elétrica. Dez por cento deles, no entanto, ainda não contam com saneamento básico e despejam o esgoto em valas que deveriam escoar apenas a água da chuva. Quase a totalidade das casas atuais é de alvenaria. Somente no topo do morro se veem domicílios de tábuas ou de pau a pique.
A prefeitura recolhe o lixo do Pavão-Pavãozinho diariamente. Existem cinco locais de coleta – quatro na Saint Roman e um na última estação do bonde. “Acontece que o pessoal nem sempre leva os detritos para um daqueles pontos. Em vez de descer as escadarias, prefere jogá-los mais perto de onde vive. O resultado é que apareceram lixões informais na favela”, lamenta Fernanda Faustino, presidente da associação de moradores. Não raro, conduzidos por enxurradas, os rejeitos descartados irregularmente entopem as valas. “Percebe como o Rocky fazia um trabalho essencial? Ele identificava os entupimentos e os resolvia sem ninguém pedir.”
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva previu a construção de uma via carroçável dentro da comunidade. A rua cortaria o morro longitudinalmente e desembocaria na Saint Roman. Caminhões de bombeiro ou de lixo, ambulâncias, viaturas policiais, táxis, lotações, automóveis particulares e motos poderiam, enfim, cruzar a favela. Lançado em 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) responderia pela empreitada. A obra, porém, jamais se concretizou.

Voo
ex-jogador de futebol Michael Bridges figurava entre os 75 turistas que visitaram o Pavão-Pavãozinho durante a Copa de 2014. Ele se destacara como atacante na Inglaterra, especialmente quando defendeu o Sunderland e o Leeds United, mas terminou a carreira em times australianos. Encantado com a solidariedade e a força de Roque Ferreira, o britânico lhe ofereceu um presente: assistir à partida da Austrália contra a Espanha. O confronto, válido pela fase inicial da Copa, iria ocorrer às 13 horas do dia 23 de junho, em Curitiba. Bridges cederia o ingresso e, de quebra, daria carona no voo fretado que transportaria o grupo de estrangeiros até a capital paranaense. Seria a primeira vez que Hércules viajaria de avião.
“Marcamos de nos encontrar na data do jogo, às 5h45, diante de um hotel. Seguiríamos dali para o aeroporto”, recorda a guia Ceci Maciel, que acompanharia os turistas. “O Rocky baixou no ponto combinado bem mais cedo, lá pelas quatro e meia. ‘Pulei da cama com as galinhas. Não consegui pregar o olho de tão ansioso’, me explicou.” O carregador trajava calça jeans, tênis, jaqueta e uma camisa com as cores da Austrália que ganhara de Bridges. “Ué, cadê o manto do Vasco?”, perguntou a guia. Discretamente, Ferreira levantou um pedaço da jaqueta e da camisa alienígena. Embaixo de ambas, escondia-se o uniforme vascaíno. “Não conte para ninguém, Ceci! Promete?”
Mal entrou no aeroporto, Hércules se viu rodeado por torcedores ingleses que não pertenciam à turma do ex-jogador. “Are you Rocky?”, questionaram, surpresos. “The king of the stairs?” Em maio daquele ano, a BBC Two lançou no Reino Unido a série Welcome to Rio, do diretor Edward Watts. O documentário narra o cotidiano de algumas favelas cariocas. No primeiro dos três episódios, o carregador é um dos protagonistas. O material que divulgava a atração o apresentava justamente como “o rei das escadas” (the king of the stairs). Ferreira gostou tanto do resultado que providenciou duzentas cópias em DVD do documentário e as distribuiu no morro.
Depois de tirar fotos com os improváveis fãs britânicos, Rocky Balboa pegou o avião. No voo, pediu a palavra e agradeceu pela viagem. “Ceci, diga uma coisa importante para os gringos: agora entendo o que significa estar nas nuvens.” A Austrália acabou derrotada por 3 a 0.

Prêmio
E
m junho de 2016, o carregador experimentou de novo a glória televisiva. Ele apareceu na Rede Globo – mais especificamente, no Caldeirão do Huck, programa que a emissora exibe todo sábado à tarde. Com uma fantasia dourada de Hércules, que lembrava a roupa de um gladiador, participou do quadro “Agora ou Nunca”. Caso superasse os desafios que o apresentador Luciano Huck propunha, embolsaria 30 mil reais. Primeiro, teria de erguer simultaneamente e por meio minuto duas assistentes de palco sentadas em cadeiras metálicas. Depois, lhe caberia arremessar três botijões vazios de gás acima de uma linha vermelha, esticada a 3 metros de altura. Finalmente, precisaria arrastar um caminhão de 5 toneladas ao longo de 12 metros em 45 segundos.
Foi com o empurrão de um conhecido que Ferreira chegou à Globo. Também morador do Pavão-Pavãozinho, Sócrates Santana – bicampeão mundial júnior de bodyboard – já enfrentara as provas do “Agora ou Nunca”, elaboradas conforme o perfil de cada participante. Um dia, compartilhou no Facebook uma foto do carregador em plena atividade. A equipe de Huck se impressionou com a imagem e procurou o fortão.
Contratado pela emissora, o levantador de peso Marcos Ferrari treinou Rocky Balboa para os desafios. “Passamos a véspera da gravação juntos. Eu lhe ensinei posturas que potencializam a força e evitam lesões. Logo notei que ele trabalhava de modo bem intuitivo. Ignorava técnicas fundamentais para quem vive de pegar literalmente no pesado.” Se desejamos alçar muitos quilos do chão, por exemplo, o ideal é que nos agachemos. O carregador, entretanto, desempenhava a tarefa sem flexionar as pernas e colocava o próprio corpo em risco, além de desperdiçar energia. “Embora não sentisse dores”, prossegue o atleta, “o Rocky tinha problemas visíveis na coluna, como escolioses e lordoses, todos decorrentes dos erros que cometia quando se esforçava.”
Cumprindo à risca as dicas do levantador, Ferreira abocanhou os 30 mil reais. Usou o prêmio para comprar armários e um fogão, saldar dívidas e reformar a casa que ainda dividia com os filhos.

Boato
Pavão-Pavãozinho amanheceu horrorizado no último dia 10 de fevereiro, um domingo. Por volta das 7 horas, enquanto recolhia o lixo da comunidade, um gari avistou o corpo de um recém-nascido. O garoto, nu, jazia numa caixa de papelão. Estava com o cordão umbilical e aparentava pelo menos 8 meses de gestação. Alguém o depositara na lixeira sem nem mesmo se preocupar em cobri-lo.
O gari, diante da criança morta, não pôde conter os gritos. O sobressalto dele atraiu moradores, que acionaram a polícia. Uma adolescente sacou o celular, retratou o bebê dentro da caixa e mandou a imagem para um grupo no WhatsApp. Em pouco tempo, a foto se espalhou pelo morro, desencadeando uma série de perguntas. Quem se livrara do menino? Por quê? Havia cúmplices? Em meio às especulações virtuais, pipocou a notícia (verdadeira) de que uma gestante da vizinhança se encontrava no hospital. Era Fernanda da Silva Ferreira, filha do carregador. Com uma gravidez avançada, a jovem de 27 anos buscara auxílio médico exatamente naquele domingo.
Surgiu, assim, o boato: Fernanda rejeitara o bebê porque engravidou de um homem casado. Sozinha, provocou o aborto na própria favela e jogou a criança fora. Depois, por causa de uma hemorragia, correu para o hospital.
Claro que a fofoca não fazia pleno sentido. Existiam pontas soltas na história: uma mulher à beira de parir seria mesmo capaz de interromper a gestação? Se fosse, levaria o procedimento adiante sem a ajuda de ninguém e em casa?
Ainda internada, Fernanda ouviu e leu as acusações nas redes sociais. Também sofreu ameaças. Os narcotraficantes que atuam no Pavão-Pavãozinho e pertencem à facção Comando Vermelho estariam indignados com o gesto dela. Por isso, teriam proibido a jovem de regressar à comunidade. “Se tu der as caras, vão te matar”, avisavam as mensagens digitais. Independentemente do que argumentasse, a moça já recebera uma sentença. Era culpada. Sem alternativas, não pisou mais no morro.

Ratos
O
s moradores da favela relatam que, após o episódio, Ferreira “perdeu completamente a alegria”. Deixou de escutar Michael Jackson, parou de mexer com os frequentadores da rua Saint Roman e abdicou da cervejinha rotineira. No princípio de março, reclamou de dores pelo corpo. “Estranhei, porque o Rocky dificilmente adoecia, mas não liguei muito. Imaginei ser apenas um resfriado”, me contou Meri, a parceira dele, naquela conversa telefônica. Como não melhorava, o carregador procurou uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) em Copacabana. Foi desacompanhado e voltou com o diagnóstico de gripe.
No dia 15 de março, estava pior. Sentia-se alquebrado, um tanto zonzo e ainda mais dolorido. Agora preocupada, Meri o levou à Coordenação de Emergência Regional Professor Nova Monteiro. O hospital público se localiza no Leblon, outro bairro da Zona Sul. O médico examinou Rocky Balboa e receitou um coquetel que incluía analgésico, relaxante muscular e anti-inflamatório. Era gripe ou virose, atestou.
Na madrugada do dia 20, quarta-feira, Hércules sofreu uma convulsão em casa. Àquela altura, já não conseguia mover as pernas, tinha febre e exibia os olhos bem amarelados. Retornou com Meri para o hospital do Leblon, onde deu entrada às 6h12. Dessa vez, colheu sangue e urina. Antes que soubesse os resultados de todos os exames, recebeu alta. “É infecção urinária”, lhe disseram. O casal aguardava um Uber quando uma médica, esbaforida, despontou no saguão: “Esperem! O exame de sangue acabou de ficar pronto. Não gostei nada do que vi…” A doutora indagou se Ferreira mantivera contato com xixi de rato. “Provavelmente”, respondeu Meri. “Ele não toma cuidado. Costuma limpar os esgotos e as valas do morro sem luva nem bota.”
Leptospirose. O carregador tinha a doença infecciosa, provocada por uma bactéria do gênero Leptospira. Normalmente, o microrganismo se aloja nos rins de cães, suínos, equinos, bovinos ou roedores e não lhes traz malefícios. Excretado pela urina dos animais, pode invadir o organismo humano via pele ou mucosas. Os sintomas iniciais da enfermidade realmente se confundem com os da gripe.
Na maioria dos casos, a leptospirose – que não dispõe de vacina – evolui bem e vai embora após uma semana. Em 15% das ocorrências, se não tratada rapidamente, desencadeia problemas graves: hemorragia generalizada, distúrbios neurológicos e insuficiência renal aguda.
Pouco depois de a médica abordá-lo, Rocky Balboa sofreu uma segunda convulsão. O estado dele exigia que o internassem. Às 10h19 daquela quarta-feira, o carregador deu nova entrada no hospital e não saiu mais. Morreu às 12h10 do dia 28 de março. Passou boa parte do tempo no Centro de Terapia Intensiva, em coma induzido.
O velório de Hércules lotou a associação de moradores. Banida do Pavão-Pavãozinho, Fernanda não pôde participar da cerimônia, mas apareceu no Cemitério São João Batista, em Botafogo, e acompanhou o enterro do pai mesmo sob os protestos de alguns presentes. Ferreira levou para o túmulo a camisa e uma bandeira do Vasco. No dia em que morreu, o time ganhou do Bangu por 1 a 0 e se tornou finalista da Taça Rio. Disputou o título contra o Flamengo, que se sagrou campeão.

Herói
C
om muito custo, arranjei o telefone de Fernanda em meados de abril. Ela me atendeu educadamente e demonstrou grande indignação quando mencionei o boato. “É tudo mentira! Não interrompi a gravidez. Eu perdi o bebê.” A moça contou que, no dia 8 de fevereiro, sexta-feira, teve a impressão de que a criança não se mexia. Sábado de madrugada, sentiu dores abdominais intensas e algumas contrações. “Não me alarmei. Pensei que estivesse chegando a hora do parto.” No domingo de manhã, as dores aumentaram e, em casa, com quase nove meses de gestação, Fernanda deu à luz um natimorto. Como sangrava demais, procurou socorro.
Em que hospital se internou? Onde sepultou o bebê? A jovem preferiu não responder. “Vou consultar um advogado antes de passar mais informações.” Com a voz embargada, elogiou bastante o carregador: “Me faltam palavras para descrevê-lo. Era um pai maravilhoso, exemplar, diferenciado. Ele me amparou o tempo inteiro depois que a fofoca se espalhou. Eu ligava direto para saber da doença. Perguntava: ‘Já tomou os remédios? Já comeu?’ E adivinha o que escutava dele? ‘Não se preocupe comigo. Cuide de você. Seja forte. Não vou te abandonar.’ A mulherada da favela inventou histórias por me achar metida. Eu não escondia de ninguém que queria sair do morro. Também não gostava de ver meu pai ajudar tanta gente por lá. Ele pensava nos outros e se esquecia de si mesmo. Para quê? Valeu a pena?”
Sugeri um encontro com Fernanda. Ela não aceitou nem quis revelar onde estava morando. Telefonei nos dias seguintes, mas a jovem nunca mais atendeu.
Por ainda investigar o caso, a Delegacia de Homicídios da Capital evita fornecer detalhes sobre o que apurou. Diz somente que a filha do carregador não provocou um aborto e que é “suspeita de ocultar cadáver”. O crime, definido pelo artigo 211 do Código Penal, prevê entre um e três anos de reclusão.
Hoje, na rua Saint Roman, já não existem vestígios das Casas Bahia. Parentes de Ferreira venderam parte das mercadorias e doaram o resto. No ponto onde ficava a lojinha, o grafiteiro Acme – cria do Pavão-Pavãozinho – elaborou um mural que homenageia Hércules. O rosto gigante do carregador e o distintivo do Vasco, igualmente enorme, aparecem em primeiro plano. No fundo, há um monte de barracos vermelhos, amarelos, cor de laranja e marrons. Uma inscrição se sobrepõe à cena: “Rocky Balboa, eterno herói.”
(revista piauí)

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