O público tem sempre razão?

“Há alguns anos, participei de um debate na França, com um escritor canadense e um colombiano. A certa altura, o mediador quis saber o que a literatura francesa significava para cada um de nós. Lembrei-me na mesma hora das imagens de arquivo de uma entrevista que o editor Jerôme Lindon, das edições de Minuit, concedera à televisão francesa, no final dos anos 50, depois de lançar Samuel Beckett e os primeiros autores do Nouveau Roman. O entrevistador perguntava o que pretendia a Minuit, e Lindon respondia, sem hesitar, com um sorriso jovial, orgulhoso e realizado: ‘Publicar os livros que ninguém quer ler’. Eu disse ao mediador que, para mim, quando comecei a escrever décadas depois, a literatura francesa teve o significado dessa liberdade. (…)
Ir ‘contra o leitor’ pode significar escrever que a Terra é redonda para gente acostumada a ouvir que a Terra é chata. É claro que é muito mais fácil (e moralmente justificável) defender uma literatura ‘contra o leitor’ depois da ocupação e do nazismo do que num mundo medido por likes. Que moral pode ter um leitorado de ex-colaboradores arrependidos na França ou na Áustria? A literatura ‘contra o leitor’ é também a literatura de (e por) um novo leitor. (…)
Esse projeto civilizatório se perde (a ponto de se tornar inconcebível) quando a literatura é sequestrada pelo gosto. E aí não resta espaço para alargar a consciência e a compreensão do mundo para além daquilo que já é apreciado e conhecido. A novidade passa a ser uma palavra vazia, no máximo um eufemismo para pretensão. Dizer hoje que se escreve ‘contra o leitor’ é imediatamente associado à suposta arrogância e à presunção de quem diz. É uma heresia e um paradoxo, uma contradição em termos, além de ser considerado uma ofensa. Porque o leitor é um cliente e, como mandam as regras do bom comércio, o cliente vem em primeiro lugar.”

Trecho de Contra o leitor, artigo de Bernardo Carvalho

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