Quem protege os direitos das crianças que não se adequam à norma heterossexual?
“A hegemonia da heterossexualidade sempre se baseou no direito de oprimir as minorias sexuais e de gênero. Os heterocratas têm o hábito de levantar o facão. Mas o que é problemático é que forçam as crianças a carregar esse facão patriarcal. A criança que Frigide Barjot [humorista conservadora francesa] diz proteger não existe. Os defensores da infância e da família apelam à família que eles mesmos constroem politicamente e a uma criança que se considera de antemão heterossexual e submetida à norma de gênero. Uma criança que privam de qualquer forma de resistência, de qualquer possibilidade de usar seu corpo livremente, usar seus órgãos e fluidos sexuais. Essa infância que eles afirmam proteger exige o terror, a opressão e a morte. Frigide Barjot, a musa deles, se aproveita do fato de que é impossível para uma criança se rebelar politicamente contra o discurso dos adultos: a criança é sempre um corpo ao qual não se reconhece o direito de governar-se. Permitam-me (…) uma réplica em nome da criança governada que eu fui, permitam-me defender outra ‘forma de governo’ das crianças que não são como as demais.
Em algum momento, fui a criança que Frigide Barjot se orgulha de proteger. E hoje me revolto em nome das crianças que esses discursos falaciosos esperam preservar. Quem defende o direito das crianças diferentes? Os direitos do menino que adora se vestir de rosa? Da menina que sonha em se casar com a sua melhor amiga? Os direitos da criança queer, bicha, sapatão, transexual ou transgênero? Quem defende o direito de a criança mudar de gênero, se for vontade dela? Os direitos das crianças à livre autodeterminação de gênero e sexualidade? Quem defende os direitos da criança a crescer num mundo sem violência sexual ou de gênero?
O discurso onipresente de Frigide Barjot e dos protetores do ‘direito de a criança ter um pai e uma mãe’ me faz lembrar da linguagem do catolicismo nacional de minha infância. Nasci na Espanha franquista, onde cresci com uma família heterossexual católica de direita. Uma família exemplar, para quem se poderia erigir uma estátua como emblema da virtude moral. Tive um pai e uma mãe que cumpriram escrupulosamente a sua função de garantir a ordem heterossexual. (…) Na intimidade do lar, meu pai usava um silogismo que evocava a natureza e a lei moral com a intenção de justificar a exclusão, a violência e inclusive o assassinato dos homossexuais, travestis e transexuais. Começava com ‘um homem deve ser um homem e uma mulher, uma mulher, como Deus quis’, continuava com ‘o que é natural é a união entre um homem e uma mulher, é por isso que os homossexuais são estéreis’, até a conclusão implacável: ‘Se meu filho é homossexual, prefiro matá-lo’. E esse filho era eu. (…)
Lembro o dia em que, na minha escola de freiras, a madre Pilar nos pediu para desenhar nossa futura família. Eu tinha 7 anos. Desenhei-me casada com a minha melhor amiga, Marta, três crianças e vários cachorros e gatas. Eu tinha imaginado uma utopia sexual, na qual existia casamento para todos… Alguns dias depois, a escola enviou uma carta à minha casa, aconselhando os meus pais a me levarem a um psiquiatra para consertar o mais rápido possível o problema de identificação sexual. Depois dessa visita, vieram várias represálias. O desprezo e a rejeição do meu pai, a vergonha e a culpa da minha mãe. Na escola, espalhou-se o rumor de que eu era lésbica. (…) ‘Sai daí, sapatão’, diziam, ‘você vai ser violada para aprender a beijar como Deus ensinou’. Eu tinha um pai e uma mãe, mas eles foram incapazes de me proteger da depressão, da exclusão, da violência.O que o meu pai e minha mãe protegiam não eram os meus direitos de criança, mas as normas sexuais e de gênero que dolorosamente eles mesmos tinham internalizado, através de um sistema educativo e social que castigava todas as formas de dissidência com a ameaça, a intimidação, o castigo e a morte. Eu tinha um pai e uma mãe, mas nenhum dos dois pôde proteger o meu direito à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade.
Eu fugi desse pai e dessa mãe que Frigide Barjot exige para mim, a minha sobrevivência dependia disso. Assim, ainda que tivesse um pai e uma mãe, a ideologia da diferença sexual e a heterossexualidade normativa os roubaram de mim. O meu pai foi reduzido ao papel de representante repressivo da lei de gênero. A minha mãe foi privada de tudo o que podia ir além da sua função de útero, de reprodutora da norma sexual. A ideologia de Frigide Barjot (que está ligada ao franquismo católico nacional daquela época) impediu àquela criança que eu era ter um pai e uma mãe que poderiam me amar e cuidar de mim.”
Da filósofa Beatriz Preciado
Publicado
quarta-feira, 21 de outubro de 2015 às 2:48 pm e categorizado como Blog.
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Quem protege os direitos das crianças que não se adequam à norma heterossexual?
“A hegemonia da heterossexualidade sempre se baseou no direito de oprimir as minorias sexuais e de gênero. Os heterocratas têm o hábito de levantar o facão. Mas o que é problemático é que forçam as crianças a carregar esse facão patriarcal. A criança que Frigide Barjot [humorista conservadora francesa] diz proteger não existe. Os defensores da infância e da família apelam à família que eles mesmos constroem politicamente e a uma criança que se considera de antemão heterossexual e submetida à norma de gênero. Uma criança que privam de qualquer forma de resistência, de qualquer possibilidade de usar seu corpo livremente, usar seus órgãos e fluidos sexuais. Essa infância que eles afirmam proteger exige o terror, a opressão e a morte. Frigide Barjot, a musa deles, se aproveita do fato de que é impossível para uma criança se rebelar politicamente contra o discurso dos adultos: a criança é sempre um corpo ao qual não se reconhece o direito de governar-se. Permitam-me (…) uma réplica em nome da criança governada que eu fui, permitam-me defender outra ‘forma de governo’ das crianças que não são como as demais.
Em algum momento, fui a criança que Frigide Barjot se orgulha de proteger. E hoje me revolto em nome das crianças que esses discursos falaciosos esperam preservar. Quem defende o direito das crianças diferentes? Os direitos do menino que adora se vestir de rosa? Da menina que sonha em se casar com a sua melhor amiga? Os direitos da criança queer, bicha, sapatão, transexual ou transgênero? Quem defende o direito de a criança mudar de gênero, se for vontade dela? Os direitos das crianças à livre autodeterminação de gênero e sexualidade? Quem defende os direitos da criança a crescer num mundo sem violência sexual ou de gênero?
O discurso onipresente de Frigide Barjot e dos protetores do ‘direito de a criança ter um pai e uma mãe’ me faz lembrar da linguagem do catolicismo nacional de minha infância. Nasci na Espanha franquista, onde cresci com uma família heterossexual católica de direita. Uma família exemplar, para quem se poderia erigir uma estátua como emblema da virtude moral. Tive um pai e uma mãe que cumpriram escrupulosamente a sua função de garantir a ordem heterossexual. (…) Na intimidade do lar, meu pai usava um silogismo que evocava a natureza e a lei moral com a intenção de justificar a exclusão, a violência e inclusive o assassinato dos homossexuais, travestis e transexuais. Começava com ‘um homem deve ser um homem e uma mulher, uma mulher, como Deus quis’, continuava com ‘o que é natural é a união entre um homem e uma mulher, é por isso que os homossexuais são estéreis’, até a conclusão implacável: ‘Se meu filho é homossexual, prefiro matá-lo’. E esse filho era eu. (…)
Lembro o dia em que, na minha escola de freiras, a madre Pilar nos pediu para desenhar nossa futura família. Eu tinha 7 anos. Desenhei-me casada com a minha melhor amiga, Marta, três crianças e vários cachorros e gatas. Eu tinha imaginado uma utopia sexual, na qual existia casamento para todos… Alguns dias depois, a escola enviou uma carta à minha casa, aconselhando os meus pais a me levarem a um psiquiatra para consertar o mais rápido possível o problema de identificação sexual. Depois dessa visita, vieram várias represálias. O desprezo e a rejeição do meu pai, a vergonha e a culpa da minha mãe. Na escola, espalhou-se o rumor de que eu era lésbica. (…) ‘Sai daí, sapatão’, diziam, ‘você vai ser violada para aprender a beijar como Deus ensinou’. Eu tinha um pai e uma mãe, mas eles foram incapazes de me proteger da depressão, da exclusão, da violência.O que o meu pai e minha mãe protegiam não eram os meus direitos de criança, mas as normas sexuais e de gênero que dolorosamente eles mesmos tinham internalizado, através de um sistema educativo e social que castigava todas as formas de dissidência com a ameaça, a intimidação, o castigo e a morte. Eu tinha um pai e uma mãe, mas nenhum dos dois pôde proteger o meu direito à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade.
Eu fugi desse pai e dessa mãe que Frigide Barjot exige para mim, a minha sobrevivência dependia disso. Assim, ainda que tivesse um pai e uma mãe, a ideologia da diferença sexual e a heterossexualidade normativa os roubaram de mim. O meu pai foi reduzido ao papel de representante repressivo da lei de gênero. A minha mãe foi privada de tudo o que podia ir além da sua função de útero, de reprodutora da norma sexual. A ideologia de Frigide Barjot (que está ligada ao franquismo católico nacional daquela época) impediu àquela criança que eu era ter um pai e uma mãe que poderiam me amar e cuidar de mim.”
Da filósofa Beatriz Preciado
Publicado quarta-feira, 21 de outubro de 2015 às 2:48 pm e categorizado como Blog. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.