“Hoje me tornei oficialmente cidadão de Portugal. Eles não dizem isso quando lhe entregam os documentos: ‘Você é oficialmente cidadão da República Portuguesa’. Os funcionários do consulado estão ocupados, além do mais veem portugueses repentinos como eu o tempo todo. Não têm tempo para palavras ritualísticas. Deram-me o cartão de cidadão e já está: sou português.
Não me perguntaram se um dia pensei que viraria português. Não, nunca tinha pensado nisso. Um dia acordei e já está. Do mesmo modo, um dia nasci e era carioca. Do mesmo modo, um dia meus pais resolveram ir viver no Chile e virei chileno.
Outras coisas que não me perguntaram no consulado:
1. O que você é agora? Sou, desde antes, um hahai. Este é o nome que os nômades Afar, do Chifre Africano, dão aos migrantes que atravessam o continente em direção ao Mar Vermelho. Hahai quer dizer ‘povo do vento’ – um nome bonito a ser dado por povos nômades. Mais vento que um nômade.
2. Você já viveu em Portugal? Nunca, mas meu tempo aqui em São Paulo se aproxima do fim. Ouço os anseios do mar, como o d. Dinis do Pessoa, já plantei as naus a haver.
3. Promessas feitas por poetas lhe parecem o bastante para migrar? Não, eu mesmo invento minhas promessas. Eu mesmo as nego. Só gosto desse poema.
4. O que você pretende fazer em Portugal? Tornar-me português. Reaprender as ênclises. Andar os 1.230 km de costa a ver se, no final da caminhada, fiquei português propriamente. Tenho fome de identidade.
5. Não tem medo do desemprego? Sou formado em Letras. Graduei-me com medo. Só estou apto a trabalhar como tradutor de português para português.
6. Não tem medo da situação política? Não.
7. Tem um plano sólido? Não.
8. Tem todos os documentos? Tenho documentos demais. Pick a card, any card. Os documentos são a parte mais pesada da minha mala.
9. Brios o bastante para ser correspondente de guerra? Sim.
10. Trabalhar na colheita com os romenos? Sim.
11. Dinheiro? Nenhum.
12. Não lhe parece uma empreitada natimorta? Sim.
13. Não lhe parece melhor ficar onde está? Sim.
14. Você pode só passar as férias? Sim.
15. Você vai do mesmo jeito? Sim.
16. E o amor às raízes? Aos botânicos.”
Do escritor e artista visual Victor Heringer
Publicado
sexta-feira, 4 de setembro de 2015 às 5:47 pm e categorizado como Blog.
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Um migrante
“Hoje me tornei oficialmente cidadão de Portugal. Eles não dizem isso quando lhe entregam os documentos: ‘Você é oficialmente cidadão da República Portuguesa’. Os funcionários do consulado estão ocupados, além do mais veem portugueses repentinos como eu o tempo todo. Não têm tempo para palavras ritualísticas. Deram-me o cartão de cidadão e já está: sou português.
Não me perguntaram se um dia pensei que viraria português. Não, nunca tinha pensado nisso. Um dia acordei e já está. Do mesmo modo, um dia nasci e era carioca. Do mesmo modo, um dia meus pais resolveram ir viver no Chile e virei chileno.
Outras coisas que não me perguntaram no consulado:
1. O que você é agora? Sou, desde antes, um hahai. Este é o nome que os nômades Afar, do Chifre Africano, dão aos migrantes que atravessam o continente em direção ao Mar Vermelho. Hahai quer dizer ‘povo do vento’ – um nome bonito a ser dado por povos nômades. Mais vento que um nômade.
2. Você já viveu em Portugal? Nunca, mas meu tempo aqui em São Paulo se aproxima do fim. Ouço os anseios do mar, como o d. Dinis do Pessoa, já plantei as naus a haver.
3. Promessas feitas por poetas lhe parecem o bastante para migrar? Não, eu mesmo invento minhas promessas. Eu mesmo as nego. Só gosto desse poema.
4. O que você pretende fazer em Portugal? Tornar-me português. Reaprender as ênclises. Andar os 1.230 km de costa a ver se, no final da caminhada, fiquei português propriamente. Tenho fome de identidade.
5. Não tem medo do desemprego? Sou formado em Letras. Graduei-me com medo. Só estou apto a trabalhar como tradutor de português para português.
6. Não tem medo da situação política? Não.
7. Tem um plano sólido? Não.
8. Tem todos os documentos? Tenho documentos demais. Pick a card, any card. Os documentos são a parte mais pesada da minha mala.
9. Brios o bastante para ser correspondente de guerra? Sim.
10. Trabalhar na colheita com os romenos? Sim.
11. Dinheiro? Nenhum.
12. Não lhe parece uma empreitada natimorta? Sim.
13. Não lhe parece melhor ficar onde está? Sim.
14. Você pode só passar as férias? Sim.
15. Você vai do mesmo jeito? Sim.
16. E o amor às raízes? Aos botânicos.”
Do escritor e artista visual Victor Heringer
Publicado sexta-feira, 4 de setembro de 2015 às 5:47 pm e categorizado como Blog. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.