Democracia linha-dura

“O coronel Migdonio se dignou a sair à varanda.
‘Então vocês querem criar um sindicato?’
‘Se o patrão permitir’, respondeu Félix.
‘Quantos estão de acordo?’
‘Treze, senhor.’
‘Vá buscá-los. Quero falar com todos.’
Na vastidão da memória, ninguém se lembrava de que peão algum tivesse penetrado na casa grande. Cobertos por seus ponchos, os camponeses sentiam que se excediam, mas não tiveram remédio senão entrar.
‘Que desejam, meus filhos?’, perguntou Don Migdonio afavelmente.
Silêncio.
‘Não se constranjam. Não me oponho ao sindicato. Não, não me oponho. Pelo contrário, eu os felicito. Vivemos uma época de mudanças. Todos queremos o progresso. Brindemos ao sindicato!’
A um sinal do fazendeiro, um criado entrou na sala com uma garrafa e copos para todos.
‘Vou brindar com o copo vazio. É que ontem me excedi. Saúde, rapazes!’, bradou jovialmente Don Migdonio.
Jaramillo foi o primeiro a desabar. Tombaram outros três fulminados, e os demais revolveram-se na agonia de um retorcimento de tripas.
‘Filho da puta’, conseguiu dizer Félix, antes de borrar-se com as tripas queimadas pelo veneno. O juiz, doutor Francisco Montenegro, e o sargento Cabrera chegaram às seis horas da tarde escoltados por um piquete de guardas civis. Fecharam-se no escritório com Don Migdonio. O que o juiz, o fazendeiro e o sargento discutiram permanece até hoje em mistério. Para desmentir testemunhas que naquele distante ano de 1903 juraram ter visto os três saírem abraçados, rindo, os historiadores oficiais exibem uma prova irrefutável: um comunicado oficial das autoridades, informando que os catorze camponeses tinham sido fulminados por um ‘enfarte coletivo’.”

Trecho do romance Bom dia para os Defuntos, do peruano Manuel Scorza

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