Travessia

“Uma vez li que um dos transes mais traumáticos que acomete o ser humano é a passagem da vigília para o sono. É por isso que, na infância, esse momento é repleto de rituais. Canções, histórias, ambientes à meia-luz, a voz da mamãe e do papai. A passagem de um estado para o outro não é imediata, leva um tempo, é como se caíssemos lentamente em outra dimensão – penso como é acertada a expressão em inglês fall asleep. E para que essa queda seja o menos brusca possível, especialistas do sono recomendam apoiar-se nos chamados ‘objetos de transição’. (…)
‘Dormiu?’, pergunta meu namorado, seus olhos exaustos no espelho retrovisor do carro.
‘Quase.’
Quando chegamos ao rio, os olhos de Vicente, nosso filho, começam a se fechar, mas ele não cede. Agarra meu polegar e o aperta.
Eu me aproximo novamente do bebê-conforto.
‘Sabe quem eu sou?’, digo. ‘Sou teu objeto de transição.’
E depois o verso de uma canção quase esquecida: ‘O pouco que eu tenho é teu, minha vida/e se eu tivesse muito, também te daria’. E outra vez, até que ele dorme.”

Trecho de Leite, relato da escritora colombiana Margarita García Robayo

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