“Os caras ganham bem demais para você ter pena deles.” Foi o que escutei de um amigo na terça-feira, quando a seleção alemã marcou o sétimo gol contra a assombrada equipe de Felipão. Senti pena, sim. Presenciar a impotência e a perplexidade de Júlio César, David Luiz, Marcelo, Fernandinho, Hulk e companhia no Mineirão me inundou de uma piedade inesperada pelos jogadores que assistiam à própria derrocada enquanto a provocavam de modo quase surreal. Pobres meninos ricos… Em que momento da história recente, o dinheiro se tornou a régua de tudo? Por que a dor profunda e legítima de um milionário deveria gerar menos compaixão que a de um mendigo? Quantos milhões de dólares compensariam a humilhação de atletas que se revelaram patéticos diante do mundo inteiro? Quantas maletas de euros amenizariam o suplício de ver um deslize terrível relembrado infinitas vezes em manchetes, posts e tuítes? Quantas moedas de prata arrancariam da memória coletiva a sucessão de erros que transformou um dia banal num dia infame? Quantos potes de ouro anulariam a gigantesca decepção de rapazes vigorosos que se surpreenderam imensamente frágeis?
Embora conheça pouco de futebol, moro aqui há tempo suficiente para constatar que nós, brasileiros, vivemos tanto no século 21 como no período pré-republicano. Por um lado, usufruímos dos inúmeros avanços tecnológicos, comportamentais e econômicos que a contemporaneidade nos oferece. Mas, por outro, continuamos exibindo traços inequivocamente escravocratas e monárquicos. O futebol – não à toa, considerado o símbolo máximo da alma nacional – reflete muitíssimo bem esse viés passadista. É um dos únicos terrenos onde negros, cafuzos e mulatos conseguem ascender socialmente de maneira significativa, exceção que apenas joga luz sobre a hedionda persistência das senzalas nos quatro cantos do país. É também uma atividade que se guia francamente por códigos imperiais. Prevalecem, sobretudo em nossa seleção, as ideias de predestinação e messianismo, tão características dos reinados. Desde os anos 50, o Brasil se enxerga proprietário natural e genuíno da coroa que o referendaria na posição mais nobre do ranking futebolístico. Quando conquistamos uma Copa, estamos somente cumprindo nossa tarefa grandiosa e nos reafirmando como a “pátria de chuteiras”. Quando perdemos o torneio, estamos cedendo o trono à revelia e temporariamente para os plebeus. Não importam táticas, preparo físico nem organização extracampo – a taça nos pertence a priori, do mesmo jeito que o cetro pertence à dinastia Windsor no Reino Unido. A camisa amarela adquire, assim, a força mágica de um manto aristocrático. Frente à canarinho, os inimigos (ou usurpadores) tremeriam de medo e respeito. Não é de se estranhar, portanto, que Pelé aceitou sem maiores questionamentos o título de Rei e vem lutando arduamente para mantê-lo. Afinal, à semelhança de qualquer majestade, o craque julga a honraria vitalícia. Não bastasse, ainda se arvora o direito de indicar os príncipes herdeiros – figuras que, aliás, a mídia e o povo não se cansam igualmente de procurar. Às vezes, a opinião de Pelé coincide com a dos súditos e o país brada, em uníssono, o nome do jovem eleito. O caso mais recente é o de Neymar Jr. Ele sabe perfeitamente o que representa incorporar destino tão altaneiro. Cobre-se de luxo e prestígio, mas também de obrigações e expectativas sobre-humanas – como, de resto, toda a corte de 22 convocados que o rodeia. Segundo o jargão dos gramados, os príncipes herdeiros “chamam a responsabilidade para si”. Ou melhor: assumem o fardo de liderar o time e de salvá-lo se estiver à beira do precipício. Convertem-se, de esportistas talentosos, em super-heróis – a versão moderna e pop do bíblico Messias.
Lógico que meios de comunicação, políticos, comerciantes, publicitários e cartolas não abdicam de explorar gananciosamente tal mitologia. A comissão técnica da CBF tampouco se esquiva de invocá-la. Em geral, lança mão de platitudes (as detestáveis frases motivacionais) que, despejadas sobre a nação e os jogadores, buscam reacender a adesão massificada, acrítica e dionisíaca à lenda dos 23 ungidos.
Das equipes brasileiras que acompanhei ao longo das últimas onze Copas, nenhuma me pareceu acreditar tanto na predestinação e no messianismo quanto a de 2014. Vale dizer que, aqui, uso o verbo “acreditar” em sua acepção mais infantil. Papai Noel, Coelhinho da Páscoa, Cinderela, Boi da Cara Preta, Loira do Banheiro. Crianças precisam cultivar fantasias muito elementares para conseguir lidar com o mundo recém-descoberto, que as fascina e apavora em igual proporção. Os adultos frequentemente se apegam às crenças de modo idêntico. Simplificam o complexo na esperança de que tudo faça sentido, como se a existência não fosse um quebra-cabeça absurdo, repleto de peças que dificilmente se encaixarão. Agarrados à fé, imaginam-se protegidos dos perigos, das injustiças, das perdas e das próprias fraquezas – do caos, enfim. Os atletas da seleção, por se exibirem em casa, abraçaram incondicionalmente a missão de vencer ou vencer, mantra que Felipão e Parreira não se cansavam de repetir antes mesmo de o torneio começar. Mais do que nunca, o mito da infalibilidade, da sina abençoada tinha de se materializar.
Já na fase inaugural da Copa, podia-se notar que o time estava à flor da pele. Bastava observar o fervor com que os jogadores cantavam o hino, as lágrimas excessivas e fora de lugar, o desempenho irregular em campo, os abraços aliviados que trocavam entre si mal as disputas terminavam. Havia algo de muito esquisito e desconcertante naquilo. Não se tratava, afinal, de novatos. Cada membro da seleção enfrentara diversas e terríveis batalhas durante a carreira. Entretanto, quando adentravam as novíssimas arenas do Brasil, me lembravam invariavelmente garotos assustados. O fato de se perfilarem apoiando a mão direita sobre o ombro do companheiro à frente, como meninos disciplinados num colégio de freiras, reforçava meu desconforto. Veio, então, a partida contra a Alemanha. O que divisamos no Mineirão merece menos a análise de comentaristas esportivos e mais a de psicólogos. Em seis minutos, o time protagonizou um apagão sem precedentes. Levou inacreditáveis quatro gols. De repente, atletas hiperqualificados se converteram em zumbis. Mergulharam num transe coletivo que os aniquilou. Vivenciaram um inquestionável colapso emocional. O mito que deveria engrandecê-los e ampará-los agora os oprimia impiedosamente, exagerando as debilidades de uma equipe nem brilhante, nem tão medíocre. A camisa amarela provocava medo, sim, mas nos próprios atletas que a envergavam.
Como não se compadecer diante do que ocorreu ali? Como não se solidarizar com os atônitos desportistas, certamente o elo mais fraco (ainda que bem remunerado) de uma cultura paternalista, delirante e perversa? Sempre nutri alguma simpatia por jogadores rebeldes – aqueles que, a exemplo de Romário, “desestabilizam o grupo”. Eles, no fundo, zombam das mitologias e, assim, se protegem delas. Não baixam a cabeça para o gênio de Pelé, não ecoam os bordões triunfalistas dos técnicos, não se preocupam em salvaguardar a honra de uma nação. Sabem que fantasias são importantes, mas que a realidade nunca deixará de ter a última palavra.
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quinta-feira, 10 de julho de 2014 às 5:07 pm e categorizado como Blog.
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A seleção brasileira, a monarquia e a compaixão
“Os caras ganham bem demais para você ter pena deles.” Foi o que escutei de um amigo na terça-feira, quando a seleção alemã marcou o sétimo gol contra a assombrada equipe de Felipão. Senti pena, sim. Presenciar a impotência e a perplexidade de Júlio César, David Luiz, Marcelo, Fernandinho, Hulk e companhia no Mineirão me inundou de uma piedade inesperada pelos jogadores que assistiam à própria derrocada enquanto a provocavam de modo quase surreal. Pobres meninos ricos… Em que momento da história recente, o dinheiro se tornou a régua de tudo? Por que a dor profunda e legítima de um milionário deveria gerar menos compaixão que a de um mendigo? Quantos milhões de dólares compensariam a humilhação de atletas que se revelaram patéticos diante do mundo inteiro? Quantas maletas de euros amenizariam o suplício de ver um deslize terrível relembrado infinitas vezes em manchetes, posts e tuítes? Quantas moedas de prata arrancariam da memória coletiva a sucessão de erros que transformou um dia banal num dia infame? Quantos potes de ouro anulariam a gigantesca decepção de rapazes vigorosos que se surpreenderam imensamente frágeis?
Embora conheça pouco de futebol, moro aqui há tempo suficiente para constatar que nós, brasileiros, vivemos tanto no século 21 como no período pré-republicano. Por um lado, usufruímos dos inúmeros avanços tecnológicos, comportamentais e econômicos que a contemporaneidade nos oferece. Mas, por outro, continuamos exibindo traços inequivocamente escravocratas e monárquicos. O futebol – não à toa, considerado o símbolo máximo da alma nacional – reflete muitíssimo bem esse viés passadista. É um dos únicos terrenos onde negros, cafuzos e mulatos conseguem ascender socialmente de maneira significativa, exceção que apenas joga luz sobre a hedionda persistência das senzalas nos quatro cantos do país. É também uma atividade que se guia francamente por códigos imperiais. Prevalecem, sobretudo em nossa seleção, as ideias de predestinação e messianismo, tão características dos reinados. Desde os anos 50, o Brasil se enxerga proprietário natural e genuíno da coroa que o referendaria na posição mais nobre do ranking futebolístico. Quando conquistamos uma Copa, estamos somente cumprindo nossa tarefa grandiosa e nos reafirmando como a “pátria de chuteiras”. Quando perdemos o torneio, estamos cedendo o trono à revelia e temporariamente para os plebeus. Não importam táticas, preparo físico nem organização extracampo – a taça nos pertence a priori, do mesmo jeito que o cetro pertence à dinastia Windsor no Reino Unido. A camisa amarela adquire, assim, a força mágica de um manto aristocrático. Frente à canarinho, os inimigos (ou usurpadores) tremeriam de medo e respeito. Não é de se estranhar, portanto, que Pelé aceitou sem maiores questionamentos o título de Rei e vem lutando arduamente para mantê-lo. Afinal, à semelhança de qualquer majestade, o craque julga a honraria vitalícia. Não bastasse, ainda se arvora o direito de indicar os príncipes herdeiros – figuras que, aliás, a mídia e o povo não se cansam igualmente de procurar. Às vezes, a opinião de Pelé coincide com a dos súditos e o país brada, em uníssono, o nome do jovem eleito. O caso mais recente é o de Neymar Jr. Ele sabe perfeitamente o que representa incorporar destino tão altaneiro. Cobre-se de luxo e prestígio, mas também de obrigações e expectativas sobre-humanas – como, de resto, toda a corte de 22 convocados que o rodeia. Segundo o jargão dos gramados, os príncipes herdeiros “chamam a responsabilidade para si”. Ou melhor: assumem o fardo de liderar o time e de salvá-lo se estiver à beira do precipício. Convertem-se, de esportistas talentosos, em super-heróis – a versão moderna e pop do bíblico Messias.
Lógico que meios de comunicação, políticos, comerciantes, publicitários e cartolas não abdicam de explorar gananciosamente tal mitologia. A comissão técnica da CBF tampouco se esquiva de invocá-la. Em geral, lança mão de platitudes (as detestáveis frases motivacionais) que, despejadas sobre a nação e os jogadores, buscam reacender a adesão massificada, acrítica e dionisíaca à lenda dos 23 ungidos.
Das equipes brasileiras que acompanhei ao longo das últimas onze Copas, nenhuma me pareceu acreditar tanto na predestinação e no messianismo quanto a de 2014. Vale dizer que, aqui, uso o verbo “acreditar” em sua acepção mais infantil. Papai Noel, Coelhinho da Páscoa, Cinderela, Boi da Cara Preta, Loira do Banheiro. Crianças precisam cultivar fantasias muito elementares para conseguir lidar com o mundo recém-descoberto, que as fascina e apavora em igual proporção. Os adultos frequentemente se apegam às crenças de modo idêntico. Simplificam o complexo na esperança de que tudo faça sentido, como se a existência não fosse um quebra-cabeça absurdo, repleto de peças que dificilmente se encaixarão. Agarrados à fé, imaginam-se protegidos dos perigos, das injustiças, das perdas e das próprias fraquezas – do caos, enfim. Os atletas da seleção, por se exibirem em casa, abraçaram incondicionalmente a missão de vencer ou vencer, mantra que Felipão e Parreira não se cansavam de repetir antes mesmo de o torneio começar. Mais do que nunca, o mito da infalibilidade, da sina abençoada tinha de se materializar.
Já na fase inaugural da Copa, podia-se notar que o time estava à flor da pele. Bastava observar o fervor com que os jogadores cantavam o hino, as lágrimas excessivas e fora de lugar, o desempenho irregular em campo, os abraços aliviados que trocavam entre si mal as disputas terminavam. Havia algo de muito esquisito e desconcertante naquilo. Não se tratava, afinal, de novatos. Cada membro da seleção enfrentara diversas e terríveis batalhas durante a carreira. Entretanto, quando adentravam as novíssimas arenas do Brasil, me lembravam invariavelmente garotos assustados. O fato de se perfilarem apoiando a mão direita sobre o ombro do companheiro à frente, como meninos disciplinados num colégio de freiras, reforçava meu desconforto. Veio, então, a partida contra a Alemanha. O que divisamos no Mineirão merece menos a análise de comentaristas esportivos e mais a de psicólogos. Em seis minutos, o time protagonizou um apagão sem precedentes. Levou inacreditáveis quatro gols. De repente, atletas hiperqualificados se converteram em zumbis. Mergulharam num transe coletivo que os aniquilou. Vivenciaram um inquestionável colapso emocional. O mito que deveria engrandecê-los e ampará-los agora os oprimia impiedosamente, exagerando as debilidades de uma equipe nem brilhante, nem tão medíocre. A camisa amarela provocava medo, sim, mas nos próprios atletas que a envergavam.
Como não se compadecer diante do que ocorreu ali? Como não se solidarizar com os atônitos desportistas, certamente o elo mais fraco (ainda que bem remunerado) de uma cultura paternalista, delirante e perversa? Sempre nutri alguma simpatia por jogadores rebeldes – aqueles que, a exemplo de Romário, “desestabilizam o grupo”. Eles, no fundo, zombam das mitologias e, assim, se protegem delas. Não baixam a cabeça para o gênio de Pelé, não ecoam os bordões triunfalistas dos técnicos, não se preocupam em salvaguardar a honra de uma nação. Sabem que fantasias são importantes, mas que a realidade nunca deixará de ter a última palavra.
Publicado quinta-feira, 10 de julho de 2014 às 5:07 pm e categorizado como Blog. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.