Os realmente grandes nunca se esquecem do quanto são pequenos?
“Em determinado momento de 1973, a flautista e professora Odette Ernest Dias, francesa radicada no Brasil, reuniu quatro de seus alunos para formar o Quarteto Pixinguinha: Kim Ribeiro, aluno mais adiantado do que os demais, Ronaldo Alvarenga, eu e o quarto membro do grupo, de cujo nome já não me lembro. Um belo dia, lá fomos nós quatro, com Odette à frente, ao Bar Gouveia, na Travessa do Ouvir, segunda morada do mestre Pixinguinha. Era mais ou menos uma hora da tarde, o bar fervilhava com garçons passando entre as mesas, equilibrando bandejas, gente falando alto, enfim, a balbúrdia comum nos bares do centro do Rio no horário de almoço. Pixinguinha estava sentado à sua mesa cativa, bebericando sua água (naquela altura, o álcool estava cortado da vida do mestre). Odette se aproximou dele e, com seu sotaque carregado, disse:
– Pixinguinha, gostarrria de aprrresentar a você meus alunos e pedirrr sua autorrrização parrra que eles coloquem o seu nome no quarteto que estão formando. Eles vão tocarrr Ingênuo parrra você.
Bom, tocamos essa música linda composta por ele no meio daquela confusão toda. ‘Fecha a mesa seis!’, ‘Sai um filé com fritas!’, ‘Mais dois chopes!’. Quando terminamos, Pixinguinha, sorrindo largo, autorizou o batismo do quarteto com o seu nome. Comentou que ficava feliz de ver jovens cabeludos tocando a música dele, principalmente Ingênuo, uma de suas preferidas, e ainda corrigiu uma nota:
— Bonito, meninos, mas a segunda flauta tocou uma notinha errada. Na segunda parte, é um mi bemol em vez de um ré bemol.
Ficamos felizes da vida com aquela bênção do mestre. Aí Odette, que tinha levado a flauta dela, disse:
– Pixinguinha, gostaria de tocarrr prrra você Syrinx (uma peça de Debussy para flauta solo).
O velho mestre se levantou da cadeira com certa dificuldade, bateu palmas e, se dirigindo para o povo que conversava alto, disse:
— Gente, silêncio porque agora a música é séria!
Não conheço lição de humildade maior do que esta dada por uma dos grandes gênios da música.”
Trecho de Música de gênios, artigo de Mauro Senise
Publicado
quarta-feira, 3 de julho de 2013 às 9:02 pm e categorizado como Blog.
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Os realmente grandes nunca se esquecem do quanto são pequenos?
“Em determinado momento de 1973, a flautista e professora Odette Ernest Dias, francesa radicada no Brasil, reuniu quatro de seus alunos para formar o Quarteto Pixinguinha: Kim Ribeiro, aluno mais adiantado do que os demais, Ronaldo Alvarenga, eu e o quarto membro do grupo, de cujo nome já não me lembro. Um belo dia, lá fomos nós quatro, com Odette à frente, ao Bar Gouveia, na Travessa do Ouvir, segunda morada do mestre Pixinguinha. Era mais ou menos uma hora da tarde, o bar fervilhava com garçons passando entre as mesas, equilibrando bandejas, gente falando alto, enfim, a balbúrdia comum nos bares do centro do Rio no horário de almoço. Pixinguinha estava sentado à sua mesa cativa, bebericando sua água (naquela altura, o álcool estava cortado da vida do mestre). Odette se aproximou dele e, com seu sotaque carregado, disse:
– Pixinguinha, gostarrria de aprrresentar a você meus alunos e pedirrr sua autorrrização parrra que eles coloquem o seu nome no quarteto que estão formando. Eles vão tocarrr Ingênuo parrra você.
Bom, tocamos essa música linda composta por ele no meio daquela confusão toda. ‘Fecha a mesa seis!’, ‘Sai um filé com fritas!’, ‘Mais dois chopes!’. Quando terminamos, Pixinguinha, sorrindo largo, autorizou o batismo do quarteto com o seu nome. Comentou que ficava feliz de ver jovens cabeludos tocando a música dele, principalmente Ingênuo, uma de suas preferidas, e ainda corrigiu uma nota:
— Bonito, meninos, mas a segunda flauta tocou uma notinha errada. Na segunda parte, é um mi bemol em vez de um ré bemol.
Ficamos felizes da vida com aquela bênção do mestre. Aí Odette, que tinha levado a flauta dela, disse:
– Pixinguinha, gostaria de tocarrr prrra você Syrinx (uma peça de Debussy para flauta solo).
O velho mestre se levantou da cadeira com certa dificuldade, bateu palmas e, se dirigindo para o povo que conversava alto, disse:
— Gente, silêncio porque agora a música é séria!
Não conheço lição de humildade maior do que esta dada por uma dos grandes gênios da música.”
Trecho de Música de gênios, artigo de Mauro Senise
Publicado quarta-feira, 3 de julho de 2013 às 9:02 pm e categorizado como Blog. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.