“O que é ‘privilégio’? E como ele se reproduz? Em todas as sociedades modernas, como a brasileira, os privilégios que asseguram acesso diferencial aos bens ou recursos que todos desejamos, sejam materiais, como carro e casa, sejam imateriais, como o prestígio e o charme que asseguram a conquista de um parceiro erótico, são explicados a partir da apropriação diferencial de certos ‘capitais’ – que vão pré-decidir toda a competição social por todos os bens escassos, materiais e imateriais, que todos desejamos as 24 horas do dia. Esses ‘capitais impessoais’, antes de tudo o capital econômico e o capital cultural, são, portanto, o fundamento opaco e nunca assumido de toda a dominação social injusta. A regra básica da cegueira na qual todos vivemos é que percebemos o ‘capital econômico’, mas nunca percebemos o ‘capital cultural’. É que o ‘capital cultural’ não são apenas os títulos escolares de prestígio que garantem à classe média seus empregos bem pagos e reconhecidos. Capital cultural é também e principalmente toda a herança imaterial e invisível, tanto emocional quanto cognitiva e moral, que recebemos desde tenra idade, sem esforço, no convívio familiar, como a habilidade para o pensamento abstrato, o estímulo à concentração – que falta às classes populares e a condenam ao fracasso escolar -, a capacidade de perceber o futuro como mais importante que o presente etc. Isso tudo somado constrói o indivíduo das classes alta e média como ‘vencedor’ na escola e depois no mercado de trabalho, não por seu ‘mérito individual’, como os indivíduos dessas classes gostam de pensar, mas por uma ‘vantagem de sangue’, familiar e de classe, como em qualquer outra sociedade tradicional do passado.
Como a herança do capital cultural, enquanto pressuposto emocional, cognitivo e moral de todo privilégio, é invisível e opaca à consciência cotidiana, a falácia do ‘milagre’ do mérito individual pode campear à vontade. Esse falso milagre é o fundamento que legitima todo tipo de apropriação injusta de privilégios permanentes, condenando os indivíduos que tiveram o azar de nascer na família e na classe errada à miséria e à humilhação, como se alguém pudesse ‘escolher’ ser pobre e desprezado. A dominação social moderna é produzida por um engodo, uma fraude, uma mentira compartilhada por todos os privilegiados. Isso acontece exatamente do mesmo modo nas sociedades que admiramos e imitamos, como França, Alemanha ou Estados Unidos. Mas o que há de especificamente perverso nas classes dominantes brasileiras que não existe nessas outras sociedades? É que no Brasil as classes média e alta não apenas repetem a distorção da realidade que permite perceber o privilégio herdado como se tivesse nascido do próprio esforço, mas também ‘tiram onda’ de que são generosas e críticas. Essa é uma fraude que um republicano americano típico jamais faria.”
Trecho de Pensamento mediano, artigo do sociólogo Jessé de Souza
Publicado
terça-feira, 28 de maio de 2013 às 7:15 pm e categorizado como Blog.
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Honremos o mérito?
“O que é ‘privilégio’? E como ele se reproduz? Em todas as sociedades modernas, como a brasileira, os privilégios que asseguram acesso diferencial aos bens ou recursos que todos desejamos, sejam materiais, como carro e casa, sejam imateriais, como o prestígio e o charme que asseguram a conquista de um parceiro erótico, são explicados a partir da apropriação diferencial de certos ‘capitais’ – que vão pré-decidir toda a competição social por todos os bens escassos, materiais e imateriais, que todos desejamos as 24 horas do dia. Esses ‘capitais impessoais’, antes de tudo o capital econômico e o capital cultural, são, portanto, o fundamento opaco e nunca assumido de toda a dominação social injusta. A regra básica da cegueira na qual todos vivemos é que percebemos o ‘capital econômico’, mas nunca percebemos o ‘capital cultural’. É que o ‘capital cultural’ não são apenas os títulos escolares de prestígio que garantem à classe média seus empregos bem pagos e reconhecidos. Capital cultural é também e principalmente toda a herança imaterial e invisível, tanto emocional quanto cognitiva e moral, que recebemos desde tenra idade, sem esforço, no convívio familiar, como a habilidade para o pensamento abstrato, o estímulo à concentração – que falta às classes populares e a condenam ao fracasso escolar -, a capacidade de perceber o futuro como mais importante que o presente etc. Isso tudo somado constrói o indivíduo das classes alta e média como ‘vencedor’ na escola e depois no mercado de trabalho, não por seu ‘mérito individual’, como os indivíduos dessas classes gostam de pensar, mas por uma ‘vantagem de sangue’, familiar e de classe, como em qualquer outra sociedade tradicional do passado.
Como a herança do capital cultural, enquanto pressuposto emocional, cognitivo e moral de todo privilégio, é invisível e opaca à consciência cotidiana, a falácia do ‘milagre’ do mérito individual pode campear à vontade. Esse falso milagre é o fundamento que legitima todo tipo de apropriação injusta de privilégios permanentes, condenando os indivíduos que tiveram o azar de nascer na família e na classe errada à miséria e à humilhação, como se alguém pudesse ‘escolher’ ser pobre e desprezado. A dominação social moderna é produzida por um engodo, uma fraude, uma mentira compartilhada por todos os privilegiados. Isso acontece exatamente do mesmo modo nas sociedades que admiramos e imitamos, como França, Alemanha ou Estados Unidos. Mas o que há de especificamente perverso nas classes dominantes brasileiras que não existe nessas outras sociedades? É que no Brasil as classes média e alta não apenas repetem a distorção da realidade que permite perceber o privilégio herdado como se tivesse nascido do próprio esforço, mas também ‘tiram onda’ de que são generosas e críticas. Essa é uma fraude que um republicano americano típico jamais faria.”
Trecho de Pensamento mediano, artigo do sociólogo Jessé de Souza
Publicado terça-feira, 28 de maio de 2013 às 7:15 pm e categorizado como Blog. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.