Pensa que é fácil ganhar o pão com o suor da imaginação?

“Há uma historinha que já contei algumas vezes, mas repito porque me parece de uma clareza luminosa. Na verdade, foi inicialmente contada por outro escritor, o saudoso Fernando Sabino. Se não me engano, quem contou a ele foi sua filha, a cantora Verônica Sabino. Não lembro bem o personagem original. Faz tanto tempo que esqueci. Mas sei que era outro escritor. Mais exatamente, um letrista – alguém bem no meio do caminho entre a literatura de Fernando e a música de Verônica. Tenho quase certeza de que foi o Vítor Martins, letrista e parceiro do compositor Ivan Lins. Pois que seja ele, então. Pelo menos como personagem, para efeitos narrativos. O que importa é que o caso me chegou assim, numa linha de criadores que foram passando adiante. E ajuda muito a explicar a criação. Literária ou musical.
Um dia o poeta e letrista acordou meio pensativo. O parceiro lhe mandara uma melodia uns dias antes. No primeiro momento não lhe ocorrera nada como letra, estava cismado com isso já havia algum tempo. Mas agora estava parecendo que vinham umas palavras, na boa métrica, com um ritmo bom, talvez alguma coisa pudesse sair dali. Resolveu ouvir a fita de novo. Deitou no sofá, fechou os olhos, ficou escutando com atenção. A empregada chegou para arrumar a sala, viu a cena e não resistiu a fazer um comentário:
– Vida boa, hein, seu Vítor… De papo pro ar, descansando até essa hora…
– Nada disso, estou trabalhando.
Pela cara dela, dava para ver a descrença. Mas não havia como explicar. O artista fechou os olhos de novo e continuou, tentando captar as palavras e frases que se ofereciam e fugiam. Daí a algumas semanas, estava às voltas com a situação inversa. Precisava aprontar uma letra, mas estava completamente sem ideia. Desistiu de forçar e tratou de se distrair com outra coisa. Começou a andar pela casa, resolveu arrumar umas pastas e gavetas, se ocupar manualmente, consertar coisinhas que havia um tempão esperavam por uma folga disponível. A empregada passou, olhou, não estava acostumada com aquilo, e comentou admirada:
– Aí, hein, seu Vítor… Tô gostando de ver. Hoje o senhor amanheceu com disposição para trabalhar…
– Que nada, eu estou é vadiando.”

Trecho de O tênue sopro da inspiração, artigo de Ana Maria Machado

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