“Até anteontem, a figura de uma pessoa negra etiquetava um escravo; agora, uma consciência maior da nossa alergia à igualdade faz o uniforme branco das babás virar um problema (…). E, no entanto, o branco é uma representação do limpo e do transparente. Símbolo da paz, não deixa de ser curioso como o branco se relaciona com os fantasmas envoltos em névoa. Esse nevoeiro de um Brasil escravocrata que escondemos, no qual o branco figurava como uma personificação da propriedade de pessoas. Uniformizar, como disse Max Weber, faz parte do mundo moderno onde médicos, garçons, policiais, engenheiros, cientistas e operários estão uniformizados. A questão é o uso obrigatório e simbólico da roupa para distinguir as babás nesses clubes de elite. Ser de elite dispensa para cima; já o uso obrigatório do uniforme distingue para baixo. Uma presumida superioridade dada pela riqueza, pelo poder ou pela celebrização extingue a culpa, do mesmo modo que o emprego doméstico deve lembrar – pela roupa usada como cicatriz ou estigma – a origem escravocrata do serviço que promove a intimidade, mas (e aí está o ponto) não pode conduzir à igualdade. Ora, uma intimidade (o dar a mão) sem igualdade (o não tomar o braço) tem sido o princípio estruturante de toda a nossa vida social. Uma das babás diz ao jornal (O Globo) que elas não têm nome. São ‘babás’: o papel social de anjos da guarda dos filhinhos amados de suas bem-postas patroas promove o sumiço de suas cidadanias. Sempre foi assim. Façamos um teste – responda rápido: qual é o nome completo de sua empregada doméstica? Entre a escravidão na casa e o pseudomoderno emprego doméstico quase não há hiato. A continuidade foi feita abafando a igualdade, mas mantendo a intimidade que humaniza a todos, não liquidando, porém, as subordinações. No fundo, os problemas não são somente das babás, mas das patroas receosas de serem confundidas com suas ‘criadas’, na medida em que esses serviços se profissionalizam e trazem à tona esses dilemas.”
Trecho de Figuras, artigo do antropólogo Roberto Damatta
Publicado
segunda-feira, 28 de janeiro de 2013 às 12:18 pm e categorizado como Blog.
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Raimunda de quê?
“Até anteontem, a figura de uma pessoa negra etiquetava um escravo; agora, uma consciência maior da nossa alergia à igualdade faz o uniforme branco das babás virar um problema (…). E, no entanto, o branco é uma representação do limpo e do transparente. Símbolo da paz, não deixa de ser curioso como o branco se relaciona com os fantasmas envoltos em névoa. Esse nevoeiro de um Brasil escravocrata que escondemos, no qual o branco figurava como uma personificação da propriedade de pessoas. Uniformizar, como disse Max Weber, faz parte do mundo moderno onde médicos, garçons, policiais, engenheiros, cientistas e operários estão uniformizados. A questão é o uso obrigatório e simbólico da roupa para distinguir as babás nesses clubes de elite. Ser de elite dispensa para cima; já o uso obrigatório do uniforme distingue para baixo. Uma presumida superioridade dada pela riqueza, pelo poder ou pela celebrização extingue a culpa, do mesmo modo que o emprego doméstico deve lembrar – pela roupa usada como cicatriz ou estigma – a origem escravocrata do serviço que promove a intimidade, mas (e aí está o ponto) não pode conduzir à igualdade. Ora, uma intimidade (o dar a mão) sem igualdade (o não tomar o braço) tem sido o princípio estruturante de toda a nossa vida social. Uma das babás diz ao jornal (O Globo) que elas não têm nome. São ‘babás’: o papel social de anjos da guarda dos filhinhos amados de suas bem-postas patroas promove o sumiço de suas cidadanias. Sempre foi assim. Façamos um teste – responda rápido: qual é o nome completo de sua empregada doméstica? Entre a escravidão na casa e o pseudomoderno emprego doméstico quase não há hiato. A continuidade foi feita abafando a igualdade, mas mantendo a intimidade que humaniza a todos, não liquidando, porém, as subordinações. No fundo, os problemas não são somente das babás, mas das patroas receosas de serem confundidas com suas ‘criadas’, na medida em que esses serviços se profissionalizam e trazem à tona esses dilemas.”
Trecho de Figuras, artigo do antropólogo Roberto Damatta
Publicado segunda-feira, 28 de janeiro de 2013 às 12:18 pm e categorizado como Blog. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.