O drama é a tragédia acovardada?


“Sem saber, [meus amigos e eu] herdamos a incapacidade para a tragédia e a predestinação para a forma menor do drama: porque nas nossas casas não se aceita a realidade do mal, e isso adia ao infinito qualquer desdobramento trágico, deflagrando a longa onda de um drama comedido e permanente _o pântano em que crescemos. É um habitat absurdo, feito de dor reprimida e censuras diárias. Mas nós não podemos perceber o quanto é absurdo, porque, como répteis de pântano, conhecemos apenas aquele mundo, e o pântano para nós é a normalidade. Por isso somos aptos a metabolizar doses inacreditáveis de infelicidade, tomando-as pelo curso devido das coisas: nem sequer desconfiamos que escondem feridas a ser curadas e fraturas a recompor. Da mesma maneira ignoramos o que é escândalo, pois aceitamos instintivamente cada eventual desvio revelado por quem está à nossa volta como uma integração apenas inesperada ao protocolo da normalidade. Assim, por exemplo, na escuridão dos cinemas paroquiais, sentimos a mão do padre se apoiar no interior das nossas coxas, sem sentir raiva, mas procurando deduzir depressa que evidentemente as coisas eram assim, os padres apoiavam a mão ali _nem era o caso de comentar em casa. Tínhamos 12, 13 anos. Não tirávamos a mão do padre. Tomávamos a eucaristia da mesma mão, no domingo seguinte. Éramos capazes de fazer isso, ainda somos _por que, então, não deveríamos ser capazes de confundir a depressão com uma forma de elegância, e a infelicidade com uma coloração apropriada da vida?”

Trecho de A Paixão de A., romance de Alessandro Baricco  

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