Sobre a pretensão de enganar a morte com palavras

“- Você acredita mesmo nisso?, ele perguntou. Que livros dão sentido às nossas vidas?
– Acredito, eu respondi. Um livro deve ser um machado para abrir o mar congelado dentro de nós. O que mais ele seria?
– Um gesto de recusa diante da época. Uma aposta na imortalidade.
– Ninguém é imortal. Livros não são imortais. O globo todo em que pisamos vai ser sugado pelo sol e queimado até virar cinzas. E depois disso o próprio universo vai implodir e desaparecer num buraco negro. Nada vai sobreviver, nem eu, nem você, e com toda a certeza nem a minoria interessada em livros sobre homens da fronteira imaginários da África do Sul do século 18.
– Eu não quis dizer imortal no sentido de existir fora do tempo. Quis dizer sobreviver além da própria morte física.
– Quer que as pessoas leiam seus livros depois que você morrer?
– Me dá alguma consolação contar com essa perspectiva.
– Mesmo você não estando mais aqui para saber?
– Mesmo eu não estando mais aqui para saber.
– Mas por que as pessoas do futuro deveriam se dar ao trabalho de ler o livro que você escreve se ele não disser nada a elas, se não ajudar as pessoas a encontrar um sentido para a vida delas?
– Talvez elas ainda gostem de ler livros que são bem escritos.
– Isso é bobagem. É a mesma coisa que dizer que se eu fizer uma radiovitrola muito boa ela ainda vai estar sendo usada pelas pessoas no século 25. Mas não vai. Porque uma radiovitrola, por melhor que seja, vai estar obsoleta. Não vai significar nada para as pessoas do século 25.
– Talvez no século 25 ainda exista uma minoria com curiosidade para saber como soava uma radiovitrola no final do século 20.
– Colecionadores. Gente que tem hobby. É assim que você pretende passar a sua vida: sentado na sua mesa manufaturando um objeto que pode ou não ser preservado como curiosidade?
Ele deu de ombros:
– Tem alguma ideia melhor?”

Trecho de Verão, romance de J.M.Coetzee

1 Comentário para “Sobre a pretensão de enganar a morte com palavras”

  1. Gresiela disse:

    Acho que perguntas como “Para que serve?” ou “Qual o sentido?” são excelentes versões paralisantes do maldito superego. Adorei a última frase: “- Tem alguma ideia melhor?”

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