Um ano depois de a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo demitir o maestro John Neschling, as feridas que o episódio provocou ainda não cicatrizaram
De pé, comungando uma tortuosa fila com dezenas de pessoas, o homem de óculos, cabelos brancos e ar circunspecto aguarda pacientemente enquanto folheia o livro que acabou de comprar, Música Mundana. Poucos ali o reconhecem, mas se trata de Alberto Dines, um jornalista de peso, que dirigiu importantes publicações do país e de Portugal. São quase 20h15 de uma segunda-feira, dia 9 de novembro de 2009. Os três andares da Livraria Cultura, no Conjunto Nacional, em plena avenida Paulista, ainda fervilham. O calor, úmido, incomoda.
No térreo, diante da fila, o maestro carioca John Neschling autografa justamente Música Mundana, relato memorialístico de 190 páginas que está lançando pela Rocco. Cerca de 200 admiradores irão lhe pedir uma dedicatória àquela noite. Na maioria das vezes, o regente os atenderá de modo sóbrio, sem se levantar da cadeira. Entretanto, tão logo Dines se aproxima com um exemplar do livro, Neschling muda completamente de postura. Limpa o suor da testa, ergue-se e olha o jornalista por uns segundos. Beija-o no rosto, sussurra-lhe palavras gentis e finalmente o abraça. Um abraço íntimo, efusivo.
Já na saída da megastore, Dines explica-se: “Não podia deixar de prestigiar o meu amigo. Não podia… Em especial, depois do que aconteceu. Precisava ficar com minha consciência tranquila”. Os dois se conheceram em 1974, quando o maestro dava aulas para o filho mais velho do jornalista. “Não recordo direito o que Neschling lecionava. Piano? Teoria musical?”, indaga-se Dines. “Só lembro que rapidamente estreitamos os laços afetivos.” Em janeiro de 2009, porém, a amizade sofreu um golpe terrível.
À época, o regente dirigia a Osesp, Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Assumira o cargo em 1997 e, após sucessivos mandatos, firmara o compromisso de abandoná-lo no começo de 2011. Encabeçando uma legião de 121 músicos, naturais de 15 países, fazia um trabalho exemplar, incensado dentro e fora do Brasil. Pegou uma instituição enfraquecida e provinciana, embora quase cinquentenária, e a converteu num dos melhores conjuntos eruditos do mundo, de acordo com a influente publicação britânica Gramophone. Exigiu que os instrumentistas enfrentassem avaliações técnicas rigorosas, aumentou-lhes o salário, arregimentou 180 mil espectadores na temporada de 2008, capitaneou uma série de turnês internacionais e gravou 33 discos à frente do grupo, que lhe renderam o Grammy Latino e cinco Diapason d’Or, a cotação máxima da revista francesa Diapason. Não bastasse, também participou intensamente das articulações que determinaram a construção da Sala São Paulo, a majestosa sede da Osesp.
Mesmo assim, nos últimos tempos, desgastava-se cada vez mais com o governo estadual, que desembolsa 70% dos R$ 63 milhões anuais necessários à manutenção da orquestra. Os atritos resultavam sobretudo de duas particularidades: o temperamento forte do maestro, um “linha dura”, e o grande poder de que desfrutava. Ele ostentava não só a insígnia de regente titular como a de diretor artístico da Osesp. Seus adversários insinuavam que chegara a hora de trocar a guarda. Devia-se implantar uma gestão descentralizada e menos personalista, de tal modo que o futuro regente titular não acumulasse a função de diretor artístico.
Neschling achava-se, então, numa encruzilhada — o público e boa parte da crítica o aplaudiam; o governador José Serra e o secretário da Cultura, João Sayad, pretendiam substituí-lo. No cabo de guerra, terminou levando a pior e lhe sobrou apenas a alternativa de negociar o próprio afastamento. Em junho de 2008, procurou o conselho administrativo da Fundação Osesp, entidade de direito privado que gere a orquestra, e sugeriu uma transição lenta: abriria mão de ambas as funções no dia 31 de janeiro de 2011, mas seguiria regendo pelo menos cinco séries de concertos por ano até 2015. Recebeu sinal verde.
Ocorre que, em 20 de janeiro de 2009, os 11 conselheiros resolveram subverter o acordo. Por unanimidade, demitiram o maestro, que se encontrava na Suíça. Um e-mail e uma carta o informaram da decisão. O motivo da ruptura: entrevistas incisivas de Neschling à mídia paulistana e de Curitiba em que reclamava do processo sucessório. As farpas miravam principalmente a contratação pela Osesp de consultores estrangeiros que iriam auxiliar no desenho da nova governança. Entre os 11 conselheiros, figuravam notáveis como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o banqueiro Pedro Moreira Salles, o jurista Celso Lafer, o editor Luiz Schwarcz, o economista Pedro Malan, o empresário Horacio Lafer Piva e… Alberto Dines. O amigo de três décadas se juntara àqueles que desferiram o tiro mortal no regente.
“Vivemos todos um momento dramático. Uma tragédia shakespeariana, em que cada personagem não conseguia abdicar de suas paixões e convicções”, resume o jornalista na porta da Livraria Cultura. “Antevi o desastre e quis impedi-lo, mas… Quando John criticou publicamente o processo sucessório, colocou-se numa situação intrincada, desastrosa. Que atitude nos restava tomar? Ele atacou um conselho que sempre se esforçou para ajudá-lo, inclusive nos impasses com o governo. Eu mesmo o defendi inúmeras vezes. É só ler meus comentários na internet. Demiti-lo me feriu muitíssimo.”
De fato, o Observatório da Imprensa, site coordenado por Dines, exibe no mínimo dois artigos que avalizam o maestro: um de 2006 e outro de 2007. Os textos do jornalista sustentam que uma parcela dos meios de comunicação ecoava as aspirações dos opositores de Neschling e tornava-se cúmplice de um “sórdido esquema”, de uma “maratona de perversidades” contra o regente — um cruel “espetáculo canibalesco”.
Depois da demissão, o maestro e Dines não se falaram mais pessoalmente. Trocaram uns poucos e-mails, em que tentaram esclarecer as próprias ações, e se distanciaram por nove meses. Reencontram-se apenas na livraria. “Estou feliz”, admite Neschling. “Alberto demonstrou grandeza em vir aqui.” Àquela altura, o jornalista já não é conselheiro da fundação. Solicitou que o desligassem em meados de 2009, alegando falta de tempo para se dedicar à atividade.
Como uma fratura Hoje a Osesp conta com um regente titular, o francês Yan Pascal Tortelier, e com um diretor artístico, o violonista e crítico musical Arthur Nestrovski, recém-nomeado. Consolidou, assim, a divisão do poder. Neschling, igualmente, desbrava novos territórios. Escreveu o livro de memórias, que narra a passagem pela orquestra em tom sereno, e anunciou a criação da Companhia Brasileira de Ópera. Sob o apoio do Ministério da Cultura e ainda sem dispor de uma sede, a trupe itinerante almeja levar encenações de O Barbeiro de Sevilha, clássico do italiano Gioacchino Rossini, para 20 cidades do país a partir de abril. O maestro acompanhará de perto todas as fases do projeto: seleção do elenco, escolha dos músicos, concepção cenográfica, ensaios. Também vai reger os instrumentistas em algumas apresentações.
As aparências indicam, portanto, que o episódio da demissão é página virada. Mas um olhar menos afoito revelará que as feridas não cicatrizaram e que o tema continua despertando reações passionais nos diferentes protagonistas da trama. Vários nem sequer aceitam conversar. Procurados por BRAVO!, membros do conselho avisam que preferem não se manifestar. O secretário João Sayad segue a mesma trilha. A assessoria do governador José Serra afirma que não existem brechas na agenda para uma entrevista. Entre os raros funcionários da Osesp que se pronunciam, uns se arrependem e reivindicam, acanhados: “Tire-me da reportagem, por favor”. Dizem que pensaram melhor e que não julgam prudente ressuscitar um assunto tão melindroso.
“Que engraçado… Virei uma espécie de assombração”, ironiza o maestro, bebericando guaraná diet. Ele agora está no apartamento que divide com sua mulher, a romancista Patrícia Melo. O imóvel ocupa todo o andar de um prédio construído durante a década de 1960 em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo. A sala, bem ampla, abriga pinturas abstratas e um reluzente piano meia cauda, de origem americana. Em cima do instrumento, sobressaem-se os prêmios que os discos da Osesp abocanharam no exterior e diversos portarretratos. Uma das fotografias mostra o ator Pedro Neschling, filho do regente com a atriz Lucélia Santos.
“Certa vez, num Carnaval, quebrei a perna. Foi uma experiência horrorosa”, evoca o maestro, próximo à foto. “O Pedrinho devia ter 4 anos. Nós passeávamos por uma praia deserta de Ubatuba quando cismei de subir numa rocha. Infelizmente, acabei escorregando. Um mísero tropeço e, pimba!, tudo mudou. De uma hora para a outra, vi meus planos naufragarem. Amarguei uma cirurgia e passei seis meses com gesso. Seis meses caminhando de muleta. Naquela ocasião, percebi a imprevisibilidade das coisas e mergulhei em interrogações do tipo: mereço quebrar a perna? Qual a minha compensação por sofrer uma fratura? Ao me dispensarem da Osesp, vivenciei algo parecido. Um frio, um branco, um vazio… De repente, meu mundo se espatifou: o que vou fazer? Suportarei o baque? Mereço ‘quebrar a perna’ novamente? Em nenhum momento, alimentei o rancor ou o ódio. A mágoa, no entanto, não consegui evitar. A mágoa dificilmente sumirá. Depois que li a carta de demissão, nunca mais tive ânimo de pisar na Sala São Paulo. Sinto que me transformaram em persona non grata e que desejam me riscar do mapa, me apagar da história.”
Considerando-se traído, o regente logo preparou a revanche. O contrato que assinara com a Fundação Osesp o definia como um prestador de serviços. Assim, em vez de embolsar a remuneração mensal de R$ 125 mil na condição de funcionário, o maestro a recebia por meio de sua empresa, a Colchea Produções Artísticas Ltda. Ele aproveitou a deixa e moveu um processo vultoso contra os antigos empregadores. Requeria tanto o pagamento de direitos trabalhistas (FGTS, férias, aviso prévio) quanto indenização “pela truculência” com que o demitiram. Uma sentença proferida há dois meses o favoreceu e estipulou a reparação em R$ 4,3 milhões. Os advogados da fundação já recorreram.
“Sabe como os conselheiros da Osesp me trataram quando decidiram por meu afastamento repentino, sem honrar nosso acordo? Como uma faxineira! Posam de democratas, de defensores da lei, e se comportaram à semelhança de um Micheletti”, prossegue Neschling, citando Roberto Micheletti, o presidente interino de Honduras, classificado de golpista pela oposição. “Muitas daquelas pessoas frequentavam o meu camarim e a minha casa. Imaginei que pudesse chamá-las de amigas, que existisse carinho entre nós. Mas, à exceção de Alberto Dines, ninguém me procurou depois que saí da orquestra. Ninguém! Não perdi apenas um cargo. Perdi todo um círculo de amizades, toda uma convivência.”
Se recuasse no tempo, o maestro não amenizaria as declarações que deu à imprensa sobre o processo sucessório da Osesp. “Examinei e reexaminei o texto do Estadão. O que há de ofensivo ali? Expressei somente as minhas discordâncias.” Refere-se à matéria de João Luiz Sampaio, publicada no jornal O Estado de S.Paulo em 9 de dezembro de 2008. Os conselheiros a apontaram como pivô da demissão. Pouco antes, em 16 de novembro de 2008, Neschling afirmou para a Gazeta do Povo, de Curitiba: “Vejo uma inconsequência total, uma falta de lucidez, por parte dos responsáveis [pela minha sucessão]”.
“Seria tolice acreditar que um punhado de frases me derrubou”, avalia. “Não creio nem mesmo na tese de que Serra pediu meu pescoço. Nós tínhamos um relacionamento amistoso? Não, não tínhamos. Mas o homem é o governador! Você acha que um camarada com tantos problemas iria se preocupar em interferir diretamente num grupo de músicos? Atribuo minha queda, acima de tudo, à vontade dos conselheiros. Eles me demitiram pela ânsia de exercer o poder. Não estavam lá para dizer amém sempre, para aceitar as ponderações de um maestro, do sujeito que realmente conferia glamour à Osesp. Figuras daquela envergadura prezam pelo poder, não se contentam com o papel de coadjuvantes, de bibelôs.”
A demissão significou também uma reviravolta política. Ao iniciar a reestruturação da orquestra, em 1997, o regente atendia a demanda de um dos pilares do PSDB: o então governador Mario Covas. Não à toa, o conselho administrativo da Fundação Osesp é presidido por Fernando Henrique Cardoso e agrega outros nomes que cultivam elos sólidos com o tucanato. Sem as bênçãos peessedebistas, o maestro tratou de namorar a “concorrência”, o governo Lula. Neschling, aliás, já participara do PT durante os anos 80, quando militava pela causa ecológica. Em agosto de 2009, voou até Brasília, bateu à porta do Ministério da Cultura e expôs a ideia da Companhia Brasileira de Ópera para o ministro Juca Ferreira, que a acolheu de imediato. A empreitada se sustentará exclusivamente por intermédio de patrocínios captados com incentivo da Lei Rouanet. A primeira etapa da iniciativa, que engloba as 105 récitas de O Barbeiro de Sevilha, deverá custar R$ 14 milhões. Uma parte das 20 cidades em que a companhia atuará não costuma abrigar montagens eruditas.
“A proposta do maestro nos interessou exatamente porque busca a democratização do acesso à ópera. Se um artista tão experiente pretende incrementar uma área que o governo julga desassistida, não há como lhe virar as costas”, argumenta José Herencia, secretário de políticas culturais do ministério. O MinC recomendará que a Petrobras, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e outras empresas públicas invistam no projeto. “Juca Ferreira é hoje o nosso Mario Covas”, festeja o publicitário José Roberto Walker, sócio do regente na companhia.
Mão que afaga, mão que apedreja “Sim, nós chamávamos Neschling de papai.” A violoncelista Maria Luísa Cameron tem um jeito despachado de falar. “Papai não quer, papai não gosta.” Ela comanda, desde o fim de 2008, a Associação dos Músicos Profissionais da Osesp. “Recorríamos à brincadeira para provocar o maestro, que jamais se chateou.” A piada nasceu enquanto a orquestra gravava um disco. O regente solicitava que os instrumentistas agissem de determinada maneira, e o grupo não o acatava. “Tentávamos cumprir a ordem, só que a ficha não caía. Uma, duas, três vezes e nada.” Neschling, sem paciência, desistiu. Às tantas, porém, um técnico reivindicou algo similar e a orquestra, como por mágica, conseguiu realizar o pedido. Agora de bom humor, o maestro disparou: “Se o titio manda, vocês obedecem. Se o papai manda, vocês bancam os surdos”. Pronto: o apelido grudou.
“Conhece aquele verso do Augusto dos Anjos, ‘a mão que afaga é a mesma que apedreja’?”, pergunta Maria Luísa. “Pois então: Neschling nos tratava assim — ora com doçura, ora com rispidez. No começo, tamanhas oscilações não nos afetavam profundamente, em especial por causa das inegáveis qualidades do maestro: o entusiasmo, a sensibilidade estética, a erudição. Mas, à medida que os anos passavam, a barra ia pesando e o clima se deteriorava. Em dezembro de 2008, protagonizávamos um casamento de aparências. A orquestra tocava sem garra, apática.” Foi quando o regente, na entrevista para o Estadão, atirou também contra os músicos: os acusou de corporativismo e de defenderem a mediocridade. “Justo nós, que encaramos repertórios dificílimos. Aquilo nos soou como um murro na boca. Comunicamos nossa indignação ao conselho e… Com uma frase, o maestro destruiu o que mais amava. A orquestra nunca o perdoaria.”
“Ele sabotou a própria criação”, reitera o trombonista Darrin Milling, representante dos funcionários no conselho administrativo. “Formou um time excelente e, depois, o desestabilizou por exibir uma baixa capacidade de mediar conflitos. Muito triste…”
Campeão mundial Neschling completou 62 anos em maio e ainda se lembra nitidamente de uma cena da infância. “Eu participava de uma corrida de velocípedes na praia de Copacabana. Estava em primeiro lugar, contentíssimo. Só que, faltando poucos metros para o término da disputa, um menino me ultrapassou. Fiquei desolado. Como deixei escapar a medalha de ouro? Como?! No fundo, aquela criança tão rigorosa e avessa à derrota continua morando em mim. Há um lado meu que sempre almejou ser o melhor, o número 1, o campeão mundial. E por quê? Talvez por obra de uma tremenda insegurança. Possuo um ego esburacado… Necessito de aplausos para me afiançar de minhas aptidões. Preciso de reconhecimento. Daí o meu perfeccionismo e a minha intransigência diante do que me parece inconsistente, precário, meia boca. É possível que ambos os aspectos — a insegurança e o anseio de ocupar o topo do pódio — decorram de minha história familiar. Meus pais, judeus austríacos, fugiram da Europa em razão do nazismo. Você consegue imaginar o que significa perder tudo por conta de perseguições racistas? Consegue imaginar a revolta, o inconformismo daquele casal? E o receio de que, no Brasil, a tragédia se repetisse? Sou filho único. Provavelmente, a nuvem de insegurança que pairava sobre meus pais me contaminou. Também sinto que a trajetória deles me legou o impulso de provar seguidamente que os Neschling não merecem o rótulo de inferiores, que os judeus podem e devem brilhar.”
Não por acaso, e como um ato de desagravo, o maestro elegeu o dia 9 de novembro para lançar Música Mundana na Livraria Cultura. É a data da Kristallnacht, a Noite dos Cristais. O abominável episódio aconteceu numa madrugada de 1938. O Terceiro Reich disseminou uma série de investidas antissemitas pela Áustria e Alemanha, que matou 91 pessoas, incendiou sinagogas, provocou 25 mil detenções e marcou o início do Holocausto.
(revista Bravo!)
Publicado
sexta-feira, 1 de janeiro de 2010 às 7:53 pm e categorizado como Reportagens.
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Veias Abertas
Um ano depois de a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo demitir o maestro John Neschling, as feridas que o episódio provocou ainda não cicatrizaram
No térreo, diante da fila, o maestro carioca John Neschling autografa justamente Música Mundana, relato memorialístico de 190 páginas que está lançando pela Rocco. Cerca de 200 admiradores irão lhe pedir uma dedicatória àquela noite. Na maioria das vezes, o regente os atenderá de modo sóbrio, sem se levantar da cadeira. Entretanto, tão logo Dines se aproxima com um exemplar do livro, Neschling muda completamente de postura. Limpa o suor da testa, ergue-se e olha o jornalista por uns segundos. Beija-o no rosto, sussurra-lhe palavras gentis e finalmente o abraça. Um abraço íntimo, efusivo.
Já na saída da megastore, Dines explica-se: “Não podia deixar de prestigiar o meu amigo. Não podia… Em especial, depois do que aconteceu. Precisava ficar com minha consciência tranquila”. Os dois se conheceram em 1974, quando o maestro dava aulas para o filho mais velho do jornalista. “Não recordo direito o que Neschling lecionava. Piano? Teoria musical?”, indaga-se Dines. “Só lembro que rapidamente estreitamos os laços afetivos.” Em janeiro de 2009, porém, a amizade sofreu um golpe terrível.
À época, o regente dirigia a Osesp, Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Assumira o cargo em 1997 e, após sucessivos mandatos, firmara o compromisso de abandoná-lo no começo de 2011. Encabeçando uma legião de 121 músicos, naturais de 15 países, fazia um trabalho exemplar, incensado dentro e fora do Brasil. Pegou uma instituição enfraquecida e provinciana, embora quase cinquentenária, e a converteu num dos melhores conjuntos eruditos do mundo, de acordo com a influente publicação britânica Gramophone. Exigiu que os instrumentistas enfrentassem avaliações técnicas rigorosas, aumentou-lhes o salário, arregimentou 180 mil espectadores na temporada de 2008, capitaneou uma série de turnês internacionais e gravou 33 discos à frente do grupo, que lhe renderam o Grammy Latino e cinco Diapason d’Or, a cotação máxima da revista francesa Diapason. Não bastasse, também participou intensamente das articulações que determinaram a construção da Sala São Paulo, a majestosa sede da Osesp.
Mesmo assim, nos últimos tempos, desgastava-se cada vez mais com o governo estadual, que desembolsa 70% dos R$ 63 milhões anuais necessários à manutenção da orquestra. Os atritos resultavam sobretudo de duas particularidades: o temperamento forte do maestro, um “linha dura”, e o grande poder de que desfrutava. Ele ostentava não só a insígnia de regente titular como a de diretor artístico da Osesp. Seus adversários insinuavam que chegara a hora de trocar a guarda. Devia-se implantar uma gestão descentralizada e menos personalista, de tal modo que o futuro regente titular não acumulasse a função de diretor artístico.
Neschling achava-se, então, numa encruzilhada — o público e boa parte da crítica o aplaudiam; o governador José Serra e o secretário da Cultura, João Sayad, pretendiam substituí-lo. No cabo de guerra, terminou levando a pior e lhe sobrou apenas a alternativa de negociar o próprio afastamento. Em junho de 2008, procurou o conselho administrativo da Fundação Osesp, entidade de direito privado que gere a orquestra, e sugeriu uma transição lenta: abriria mão de ambas as funções no dia 31 de janeiro de 2011, mas seguiria regendo pelo menos cinco séries de concertos por ano até 2015. Recebeu sinal verde.
Ocorre que, em 20 de janeiro de 2009, os 11 conselheiros resolveram subverter o acordo. Por unanimidade, demitiram o maestro, que se encontrava na Suíça. Um e-mail e uma carta o informaram da decisão. O motivo da ruptura: entrevistas incisivas de Neschling à mídia paulistana e de Curitiba em que reclamava do processo sucessório. As farpas miravam principalmente a contratação pela Osesp de consultores estrangeiros que iriam auxiliar no desenho da nova governança. Entre os 11 conselheiros, figuravam notáveis como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o banqueiro Pedro Moreira Salles, o jurista Celso Lafer, o editor Luiz Schwarcz, o economista Pedro Malan, o empresário Horacio Lafer Piva e… Alberto Dines. O amigo de três décadas se juntara àqueles que desferiram o tiro mortal no regente.
“Vivemos todos um momento dramático. Uma tragédia shakespeariana, em que cada personagem não conseguia abdicar de suas paixões e convicções”, resume o jornalista na porta da Livraria Cultura. “Antevi o desastre e quis impedi-lo, mas… Quando John criticou publicamente o processo sucessório, colocou-se numa situação intrincada, desastrosa. Que atitude nos restava tomar? Ele atacou um conselho que sempre se esforçou para ajudá-lo, inclusive nos impasses com o governo. Eu mesmo o defendi inúmeras vezes. É só ler meus comentários na internet. Demiti-lo me feriu muitíssimo.”
De fato, o Observatório da Imprensa, site coordenado por Dines, exibe no mínimo dois artigos que avalizam o maestro: um de 2006 e outro de 2007. Os textos do jornalista sustentam que uma parcela dos meios de comunicação ecoava as aspirações dos opositores de Neschling e tornava-se cúmplice de um “sórdido esquema”, de uma “maratona de perversidades” contra o regente — um cruel “espetáculo canibalesco”.
Depois da demissão, o maestro e Dines não se falaram mais pessoalmente. Trocaram uns poucos e-mails, em que tentaram esclarecer as próprias ações, e se distanciaram por nove meses. Reencontram-se apenas na livraria. “Estou feliz”, admite Neschling. “Alberto demonstrou grandeza em vir aqui.” Àquela altura, o jornalista já não é conselheiro da fundação. Solicitou que o desligassem em meados de 2009, alegando falta de tempo para se dedicar à atividade.
Como uma fratura
Hoje a Osesp conta com um regente titular, o francês Yan Pascal Tortelier, e com um diretor artístico, o violonista e crítico musical Arthur Nestrovski, recém-nomeado. Consolidou, assim, a divisão do poder. Neschling, igualmente, desbrava novos territórios. Escreveu o livro de memórias, que narra a passagem pela orquestra em tom sereno, e anunciou a criação da Companhia Brasileira de Ópera. Sob o apoio do Ministério da Cultura e ainda sem dispor de uma sede, a trupe itinerante almeja levar encenações de O Barbeiro de Sevilha, clássico do italiano Gioacchino Rossini, para 20 cidades do país a partir de abril. O maestro acompanhará de perto todas as fases do projeto: seleção do elenco, escolha dos músicos, concepção cenográfica, ensaios. Também vai reger os instrumentistas em algumas apresentações.
As aparências indicam, portanto, que o episódio da demissão é página virada. Mas um olhar menos afoito revelará que as feridas não cicatrizaram e que o tema continua despertando reações passionais nos diferentes protagonistas da trama. Vários nem sequer aceitam conversar. Procurados por BRAVO!, membros do conselho avisam que preferem não se manifestar. O secretário João Sayad segue a mesma trilha. A assessoria do governador José Serra afirma que não existem brechas na agenda para uma entrevista. Entre os raros funcionários da Osesp que se pronunciam, uns se arrependem e reivindicam, acanhados: “Tire-me da reportagem, por favor”. Dizem que pensaram melhor e que não julgam prudente ressuscitar um assunto tão melindroso.
“Que engraçado… Virei uma espécie de assombração”, ironiza o maestro, bebericando guaraná diet. Ele agora está no apartamento que divide com sua mulher, a romancista Patrícia Melo. O imóvel ocupa todo o andar de um prédio construído durante a década de 1960 em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo. A sala, bem ampla, abriga pinturas abstratas e um reluzente piano meia cauda, de origem americana. Em cima do instrumento, sobressaem-se os prêmios que os discos da Osesp abocanharam no exterior e diversos portarretratos. Uma das fotografias mostra o ator Pedro Neschling, filho do regente com a atriz Lucélia Santos.
“Certa vez, num Carnaval, quebrei a perna. Foi uma experiência horrorosa”, evoca o maestro, próximo à foto. “O Pedrinho devia ter 4 anos. Nós passeávamos por uma praia deserta de Ubatuba quando cismei de subir numa rocha. Infelizmente, acabei escorregando. Um mísero tropeço e, pimba!, tudo mudou. De uma hora para a outra, vi meus planos naufragarem. Amarguei uma cirurgia e passei seis meses com gesso. Seis meses caminhando de muleta. Naquela ocasião, percebi a imprevisibilidade das coisas e mergulhei em interrogações do tipo: mereço quebrar a perna? Qual a minha compensação por sofrer uma fratura? Ao me dispensarem da Osesp, vivenciei algo parecido. Um frio, um branco, um vazio… De repente, meu mundo se espatifou: o que vou fazer? Suportarei o baque? Mereço ‘quebrar a perna’ novamente? Em nenhum momento, alimentei o rancor ou o ódio. A mágoa, no entanto, não consegui evitar. A mágoa dificilmente sumirá. Depois que li a carta de demissão, nunca mais tive ânimo de pisar na Sala São Paulo. Sinto que me transformaram em persona non grata e que desejam me riscar do mapa, me apagar da história.”
Considerando-se traído, o regente logo preparou a revanche. O contrato que assinara com a Fundação Osesp o definia como um prestador de serviços. Assim, em vez de embolsar a remuneração mensal de R$ 125 mil na condição de funcionário, o maestro a recebia por meio de sua empresa, a Colchea Produções Artísticas Ltda. Ele aproveitou a deixa e moveu um processo vultoso contra os antigos empregadores. Requeria tanto o pagamento de direitos trabalhistas (FGTS, férias, aviso prévio) quanto indenização “pela truculência” com que o demitiram. Uma sentença proferida há dois meses o favoreceu e estipulou a reparação em R$ 4,3 milhões. Os advogados da fundação já recorreram.
“Sabe como os conselheiros da Osesp me trataram quando decidiram por meu afastamento repentino, sem honrar nosso acordo? Como uma faxineira! Posam de democratas, de defensores da lei, e se comportaram à semelhança de um Micheletti”, prossegue Neschling, citando Roberto Micheletti, o presidente interino de Honduras, classificado de golpista pela oposição. “Muitas daquelas pessoas frequentavam o meu camarim e a minha casa. Imaginei que pudesse chamá-las de amigas, que existisse carinho entre nós. Mas, à exceção de Alberto Dines, ninguém me procurou depois que saí da orquestra. Ninguém! Não perdi apenas um cargo. Perdi todo um círculo de amizades, toda uma convivência.”
Se recuasse no tempo, o maestro não amenizaria as declarações que deu à imprensa sobre o processo sucessório da Osesp. “Examinei e reexaminei o texto do Estadão. O que há de ofensivo ali? Expressei somente as minhas discordâncias.” Refere-se à matéria de João Luiz Sampaio, publicada no jornal O Estado de S.Paulo em 9 de dezembro de 2008. Os conselheiros a apontaram como pivô da demissão. Pouco antes, em 16 de novembro de 2008, Neschling afirmou para a Gazeta do Povo, de Curitiba: “Vejo uma inconsequência total, uma falta de lucidez, por parte dos responsáveis [pela minha sucessão]”.
“Seria tolice acreditar que um punhado de frases me derrubou”, avalia. “Não creio nem mesmo na tese de que Serra pediu meu pescoço. Nós tínhamos um relacionamento amistoso? Não, não tínhamos. Mas o homem é o governador! Você acha que um camarada com tantos problemas iria se preocupar em interferir diretamente num grupo de músicos? Atribuo minha queda, acima de tudo, à vontade dos conselheiros. Eles me demitiram pela ânsia de exercer o poder. Não estavam lá para dizer amém sempre, para aceitar as ponderações de um maestro, do sujeito que realmente conferia glamour à Osesp. Figuras daquela envergadura prezam pelo poder, não se contentam com o papel de coadjuvantes, de bibelôs.”
A demissão significou também uma reviravolta política. Ao iniciar a reestruturação da orquestra, em 1997, o regente atendia a demanda de um dos pilares do PSDB: o então governador Mario Covas. Não à toa, o conselho administrativo da Fundação Osesp é presidido por Fernando Henrique Cardoso e agrega outros nomes que cultivam elos sólidos com o tucanato. Sem as bênçãos peessedebistas, o maestro tratou de namorar a “concorrência”, o governo Lula. Neschling, aliás, já participara do PT durante os anos 80, quando militava pela causa ecológica. Em agosto de 2009, voou até Brasília, bateu à porta do Ministério da Cultura e expôs a ideia da Companhia Brasileira de Ópera para o ministro Juca Ferreira, que a acolheu de imediato. A empreitada se sustentará exclusivamente por intermédio de patrocínios captados com incentivo da Lei Rouanet. A primeira etapa da iniciativa, que engloba as 105 récitas de O Barbeiro de Sevilha, deverá custar R$ 14 milhões. Uma parte das 20 cidades em que a companhia atuará não costuma abrigar montagens eruditas.
“A proposta do maestro nos interessou exatamente porque busca a democratização do acesso à ópera. Se um artista tão experiente pretende incrementar uma área que o governo julga desassistida, não há como lhe virar as costas”, argumenta José Herencia, secretário de políticas culturais do ministério. O MinC recomendará que a Petrobras, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e outras empresas públicas invistam no projeto. “Juca Ferreira é hoje o nosso Mario Covas”, festeja o publicitário José Roberto Walker, sócio do regente na companhia.
Mão que afaga, mão que apedreja
“Sim, nós chamávamos Neschling de papai.” A violoncelista Maria Luísa Cameron tem um jeito despachado de falar. “Papai não quer, papai não gosta.” Ela comanda, desde o fim de 2008, a Associação dos Músicos Profissionais da Osesp. “Recorríamos à brincadeira para provocar o maestro, que jamais se chateou.” A piada nasceu enquanto a orquestra gravava um disco. O regente solicitava que os instrumentistas agissem de determinada maneira, e o grupo não o acatava. “Tentávamos cumprir a ordem, só que a ficha não caía. Uma, duas, três vezes e nada.” Neschling, sem paciência, desistiu. Às tantas, porém, um técnico reivindicou algo similar e a orquestra, como por mágica, conseguiu realizar o pedido. Agora de bom humor, o maestro disparou: “Se o titio manda, vocês obedecem. Se o papai manda, vocês bancam os surdos”. Pronto: o apelido grudou.
“Conhece aquele verso do Augusto dos Anjos, ‘a mão que afaga é a mesma que apedreja’?”, pergunta Maria Luísa. “Pois então: Neschling nos tratava assim — ora com doçura, ora com rispidez. No começo, tamanhas oscilações não nos afetavam profundamente, em especial por causa das inegáveis qualidades do maestro: o entusiasmo, a sensibilidade estética, a erudição. Mas, à medida que os anos passavam, a barra ia pesando e o clima se deteriorava. Em dezembro de 2008, protagonizávamos um casamento de aparências. A orquestra tocava sem garra, apática.” Foi quando o regente, na entrevista para o Estadão, atirou também contra os músicos: os acusou de corporativismo e de defenderem a mediocridade. “Justo nós, que encaramos repertórios dificílimos. Aquilo nos soou como um murro na boca. Comunicamos nossa indignação ao conselho e… Com uma frase, o maestro destruiu o que mais amava. A orquestra nunca o perdoaria.”
“Ele sabotou a própria criação”, reitera o trombonista Darrin Milling, representante dos funcionários no conselho administrativo. “Formou um time excelente e, depois, o desestabilizou por exibir uma baixa capacidade de mediar conflitos. Muito triste…”
Campeão mundial
Neschling completou 62 anos em maio e ainda se lembra nitidamente de uma cena da infância. “Eu participava de uma corrida de velocípedes na praia de Copacabana. Estava em primeiro lugar, contentíssimo. Só que, faltando poucos metros para o término da disputa, um menino me ultrapassou. Fiquei desolado. Como deixei escapar a medalha de ouro? Como?! No fundo, aquela criança tão rigorosa e avessa à derrota continua morando em mim. Há um lado meu que sempre almejou ser o melhor, o número 1, o campeão mundial. E por quê? Talvez por obra de uma tremenda insegurança. Possuo um ego esburacado… Necessito de aplausos para me afiançar de minhas aptidões. Preciso de reconhecimento. Daí o meu perfeccionismo e a minha intransigência diante do que me parece inconsistente, precário, meia boca. É possível que ambos os aspectos — a insegurança e o anseio de ocupar o topo do pódio — decorram de minha história familiar. Meus pais, judeus austríacos, fugiram da Europa em razão do nazismo. Você consegue imaginar o que significa perder tudo por conta de perseguições racistas? Consegue imaginar a revolta, o inconformismo daquele casal? E o receio de que, no Brasil, a tragédia se repetisse? Sou filho único. Provavelmente, a nuvem de insegurança que pairava sobre meus pais me contaminou. Também sinto que a trajetória deles me legou o impulso de provar seguidamente que os Neschling não merecem o rótulo de inferiores, que os judeus podem e devem brilhar.”
Não por acaso, e como um ato de desagravo, o maestro elegeu o dia 9 de novembro para lançar Música Mundana na Livraria Cultura. É a data da Kristallnacht, a Noite dos Cristais. O abominável episódio aconteceu numa madrugada de 1938. O Terceiro Reich disseminou uma série de investidas antissemitas pela Áustria e Alemanha, que matou 91 pessoas, incendiou sinagogas, provocou 25 mil detenções e marcou o início do Holocausto.
(revista Bravo!)
Publicado sexta-feira, 1 de janeiro de 2010 às 7:53 pm e categorizado como Reportagens. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.