Olhos emprestados

Duas irmãs unidas pela literatura (e pelo telefone)

Elas nasceram em março e convivem há nove décadas. A mais velha é carioca. A mais nova, paulistana. Na infância, brincavam de roda, pulavam corda e andavam de bicicleta em ruas de terra. Otimistas incuráveis, gostam de mesas bem-postas, festas, praia, flores e moda. Na juventude, assinaram a revista francesa L’Officiel, bíblia da alta costura que impulsionou a carreira de Yves St. Laurent, Christian Dior e Pierre Balmain. Também estudaram ciências sociais, um atrevimento para as moças da época, que dificilmente cursavam faculdade. Casaram-se em 1956 com homens que ainda consideram muito gentis. Viraram mães e avós, mas não tiveram bisnetos. Depois de viúvas, descartaram outras uniões conjugais. Embora sejam irmãs – as primeiras numa família de cinco filhos –, juram que nunca brigaram. Quem as vê juntas, sempre tão entrosadas e risonhas, não duvida.
Com 96 anos, Rilda Machado Lorch desconhece as benesses e os incômodos da fama. Em contrapartida, Ruth Machado Lousada Rocha, de 94, está sob os holofotes desde a meia-idade, já que se tornou um mito da literatura infantojuvenil no país. De 1976 para cá, publicou 218 livros, que venderam 40 milhões de exemplares. O reizinho mandãoNicolau tinha uma ideia e Marcelo, marmelo, martelo figuram entre seus clássicos. Traduzida em 25 idiomas e integrante da Academia Paulista de Letras, Ruth Rocha – nome que adota profissionalmente – recebeu várias honrarias, incluindo oito prêmios Jabuti e a Comenda da Ordem do Mérito Cultural, entregue pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. No primeiro semestre de 2024, renovou o vínculo com a Salamandra, editora do grupo espanhol Santillana. O acordo despertou a atenção da mídia por se estender até 2039, quando a escritora completará 108 anos. Numa entrevista para o Fantástico, da TV Globo, Ruth declarou que negociou a renovação sem se preocupar em fazer cálculos sobre a passagem do tempo. Ela própria estranhou a displicência matemática, que classificou de engraçada, e ponderou: “Evidentemente, não vou cumprir o contrato.”
O envelhecimento, insensível como de hábito, trouxe danos oculares à autora. Um glaucoma lhe causou sérios prejuízos numa das vistas e diminuiu a capacidade da outra. Em consequência, Ruth deixou de ler com desenvoltura. As palavras agora perdem a nitidez e os olhos se cansam depressa. Lógico que o problema a chateou. A escritora, afinal, descobriu o prazer da leitura ainda menina e o cultivou sem tréguas pela vida afora.
Assim que soube da dificuldade, Rilda propôs uma compensação à irmã. Ruth a visitaria todos os sábados. As duas bateriam papo e, depois, almoçariam. Quando terminassem a refeição, a mais velha leria para a mais nova. “Escolha qualquer livro. Minhas predileções não estão em jogo”, salientou Rilda. O esquema funcionou às mil maravilhas, apesar dos trinta e tantos quilômetros que separam a dupla. Ruth mora nos Jardins, bairro rico de São Paulo, enquanto a irmã se refugia em Aldeia da Serra, um condomínio arborizado, fora da capital. “Costumo usar os serviços de um taxista bastante prestativo”, diz a autora. “Ele me leva para onde preciso, aguarda na porta e me traz de volta.”
Em 2020, porém, a pandemia azedou o arranjo fraterno. O isolamento social impediu as irmãs de se encontrarem. Rilda não recuou e decidiu continuar as leituras por telefone. Detalhe: em vez de emprestar os olhos à irmã mais nova apenas no sábado, iria fazê-lo com uma frequência bem maior. Desde então, diariamente, às 16 horas, liga para Ruth e lê o que a escritora quiser até as 17. “Telefono inclusive nos fins de semana”, frisa Rilda. “Não me dá trabalho nenhum. Pelo contrário: sinto imensa alegria. Eu também amo literatura. E sou uma desocupada, né?”, ironiza. “A Ruth, não. Está sempre cheia de compromissos. O que me custa ajudá-la?”
As duas só abdicam da reunião literária se houver imprevistos. Tamanha regularidade já permitiu que compartilhassem 65 livros, entre biografias, reportagens, ensaios, ficções e relatos de divulgação científica. “Se não me falha a memória, começamos com um romance russo”, afirma Rilda. “Talvez Os irmãos Karamazov, do Dostoiévski, ou Guerra e paz, do Tolstói. Não importa… Certo mesmo é que a gente leu os dois.” Na contramão do século XXI, as leituras jamais ocorrem por celular. A dupla prefere aparelhos fixos.

O apego das irmãs pelas palavras se deve, em parte, às habilidades narrativas de um ferroviário calvo e baixinho que lhes marcou a infância: o Vovô Ioiô. Paraense de raízes baianas e primo distante do poeta Castro Alves, o avô materno de Rilda e Ruth vivia na Zona Norte do Rio de Janeiro, idolatrava Getúlio Vargas e não dispensava cigarro forte nem feijão preto, pimenta muito ardida e cerveja gelada. Ele deslumbrava as crianças da família com uma porção de histórias intrigantes, ora extraídas do folclore nacional, ora de contos populares europeus ou árabes.
O curioso é que o carismático narrador alterava as tramas originais para ambientá-las numa Bahia fantasiosa, onde existiam lugarejos como um tal Caixa-Pregos. Vovô Ioiô sempre dava um jeito de os casos acabarem em festas magníficas, normalmente de casamento, que esbanjavam babas de moça, cocadas, pés de moleque, brigadeiros e paçocas. “Imaginem uma farra das boas”, sugeria o ferroviário à garotada. “Havia tanto doce por lá que resolvi trazer alguns para vocês. Botei os mais deliciosos numa bandeja e saí de fininho. Só que, descendo a Ladeira do Escorrega, tropecei e… perdi tudo!”
O pai de Rilda e Ruth, o proctologista carioca Álvaro de Faria Machado, também gostava de contar histórias, às vezes fictícias, outras vezes reais. Nos sábados e domingos, logo depois do almoço, fazia questão de permanecer à mesa com os cinco filhos e a mulher, a dona de casa Esther Sampaio Machado, igualmente carioca. “A gente gastava horas ali, conversando sobre os mais diversos temas”, recorda a escritora. Durante os papos, o médico relatava de maneira serena e didática o que estava acontecendo no Brasil e no exterior. Um dia, por exemplo, abriu o mapa-múndi e explicou a Segunda Guerra, ainda em curso.
Leitor compulsivo, Álvaro adorava romances de capa e espada, cujos enredos se passavam na Europa, entre o final do Renascimento e o período napoleônico. Traições, vinganças, suspense, intrigas políticas e duelos de esgrima temperavam as aventuras. “Meu pai apreciava sobretudo a série Les Pardaillan, do Michel Zévaco”, lembra Ruth. O jornalista, escritor, cineasta e anarquista corso lançou os dez livros da coleção no começo do século XX, de início como folhetins, e atingiu um tremendo sucesso. Os episódios, que se desenrolam de 1553 até 1614, abordam inúmeros fatos históricos da França e da Espanha. Na autobiografia As palavras, o filósofo Jean-Paul Sartre revelou que, quando menino, venerava “o talentoso” Zévaco: “Seus heróis representavam o povo; construíam e desfaziam impérios, anteviam a Revolução Francesa […], protegiam por bondade d’alma reis infantes ou reis loucos […] e esbofeteavam os reis perversos.”
Atualmente fora de catálogo, as traduções em português de Les Pardaillan seduziram algumas gerações de brasileiros. Álvaro comprava os volumes da série assim que chegavam às lojas e, depois de saboreá-los, os emprestava para os filhos. O status de primogênitas garantia que Rilda e Ruth devorassem as aventuras antes dos irmãos, bem mais jovens.
Graças à mãe, as duas conheceram Monteiro Lobato e o Sítio do Picapau Amarelo na primeira infância. Embora não se interessasse tanto por literatura quanto o marido, Esther mantinha a rotina de ler em voz alta as peripécias de Dona Benta, Tia Nastácia e companhia. “Nós ouvíamos aquilo absolutamente fascinadas”, afirma a escritora, que virou fã de Emília, a boneca tagarela. “O bom humor da personagem influenciou muito o meu estilo.” As leituras maternas se mostraram tão cativantes que Reinações de Narizinho continua sendo o livro infantil preferido de Ruth.
“Tivemos pais disciplinadores, mas nada controladores. Eles nunca censuravam o que a gente lia. Podíamos explorar qualquer título nas estantes da sala – uma liberdade que contribuiu para aguçar nossa afeição pela literatura”, avalia Rilda. Como Álvaro e Esther valorizavam o estudo, toda a prole concluiu o ensino superior. O casal proporcionou às três filhas as mesmas oportunidades que os dois filhos receberam. “Crescemos num lar afetuoso e democrático. Lá o preconceito não prosperava”, diz Ruth.

Ainda bebê, Rilda deixou o Rio e desembarcou em São Paulo, onde a família acabou se enraizando. Pouco depois dos 15 anos, a adolescente visitou a recém-inaugurada Seção Circulante da Biblioteca Municipal (hoje Biblioteca Mário de Andrade). Localizado no Centro paulistano, o acervo reunia milhares de livros que os usuários consultavam in loco ou pegavam emprestados. “Fui por recomendação de um professor e carreguei a Ruth, que não desgrudava de mim.” Mal avistou o mundaréu de volumes, a futura escritora de somente 13 anos se empolgou: “Vou ler todos!”
Não leu, claro, mas se transformou em frequentadora da seção e fisgou ali preciosidades inexistentes nas prateleiras domésticas dos Machado. Primeiro, enveredou pelas ficções históricas e crônicas de Paulo Setúbal – àquela altura, um autor de renome. Em seguida, desbravou As vinhas da ira e os demais romances do americano John Steinbeck, repletos de críticas sociais. Descobriu, ainda, os versos de Olavo Bilac e outros “poetas antiguinhos”.
Na mesma época, “levou uma trombada” de As cidades e as serras. O colégio lhe solicitou um arrazoado sobre o clássico do português Eça de Queirós, lançado em 1901. A trajetória de Jacinto, o protagonista do romance que se desilude com a modernidade urbana, impactou Ruth profundamente e consolidou a paixão da jovem pelo universo literário.
Rilda também usufruiu um bocado da Seção Circulante. “Li Casa-grande & senzala, do Gilberto Freyre, quando tinha 16 ou 17 anos. Salvo engano, garimpei a obra na Biblioteca Municipal.” Em paralelo às leituras densas, a adolescente se permitia desfrutar de “uns livros tontos”, como os de M. Delly, pseudônimo dos irmãos Frédéric Henri e Jeanne Marie Henriette Petitjean de la Rosiére. O duo francês, católico fervoroso, encantou zilhões de mocinhas com quase 180 dramas de amor em que a coragem, a honra e a virtude sempre venciam. Entre as décadas de 1930 e 1960, a Companhia Editora Nacional, fundada por Monteiro Lobato, publicou traduções de parte da coleção.
Logo que terminou o ensino médio, Rilda tomou a decisão de estudar letras, mas rapidamente se decepcionou com a faculdade. Não suspeitava que iria detestar o aprendizado minucioso da gramática luso-brasileira. Enquanto a irmã penava, Ruth frequentava a Escola de Sociologia e Política, na USP. Certa manhã, chamou a mais velha para ver uma aula do professor Mauro Brandão Lopes sobre parlamentarismo inglês. “Fiquei tão envolvida pelo assunto que resolvi mandar a gramática às favas”, diz Rilda. Abandonou as letras e ingressou na mesma escola de Ruth. Por tabela, abraçou o movimento estudantil. Nacionalista, proclamava-se de esquerda, embora rejeitasse o comunismo (“nenhum regime ditatorial me agrada”). No auge do ativismo, se elegeu vice-presidente do centro acadêmico, vaiou Carlos Lacerda – o inimigo número um de Getúlio Vargas – e militou ao lado de rapazes que mais adiante iriam ocupar cargos significativos, caso de Almino Afonso (ministro do Trabalho no governo de João Goulart), Rubens Paiva (deputado federal pelo antigo PTB) e José Gregori (ministro da Justiça na gestão de FHC).
Depois de fazer ciências sociais, Rilda começou uma especialização em economia, que interrompeu para se casar com um químico e empresário de origem judaico-alemã. “No fim das contas, não exerci a profissão de socióloga nem a de economista. Como gerei três filhas, uma atrás da outra, cuidei exclusivamente das meninas por uns dez anos. Só então decidi trabalhar na fábrica do meu marido. Ele produzia extintores de incêndio.” No princípio, Rilda executava serviços de escritório. Assim que se inteirou melhor dos processos industriais, criou um “puxadinho” dentro da fábrica, onde manufaturava cachepôs cromados.
As empreitadas do casal floresceram até a década de 1980, quando as coisas desandaram em decorrência da hiperinflação. O país derreteu, e a fábrica fechou. O marido de Rilda abriu outros negócios, mas nenhum decolou. Ela acabou arrumando um emprego administrativo na Fepasa, estatal que controlava o sistema ferroviário de São Paulo. “Também me dediquei à tradução de livros em inglês. Eram sempre romances água com açúcar, daqueles de arrancar lágrimas. Eu não me sentia capaz de enfrentar textos muito complicados.”
Rilda afirma que, ao contrário da irmã, jamais cogitou escrever ficção. Nem por isso se esquivava de fantasiar diante das crianças nos encontros familiares. “Ela narrava histórias divertidas para a gente”, diz a sobrinha Mariana Rocha, filha única de Ruth. As tramas giravam em torno de Lúcia, uma garota com superpoderes. Além de voar, a personagem tinha o dom da invisibilidade e chupava um sorvete que nunca terminava.
“Por ser a primeira dos cinco irmãos, Rilda adotava uma postura matriarcal quando jovem”, relata o jornalista Alexandre Machado, o caçula do quinteto, que festejou 80 anos em outubro. “A gente costumava viajar para o litoral sem os nossos pais e ficar sob a responsabilidade dela. Numa das viagens, Rilda ordenou que comêssemos verdura. Pronto: nós a apelidamos de Mamãe Bronquinha, e o apelido permanece até hoje.”

Enquanto cursava a Escola de Sociologia e Política, Ruth teve aulas com a psicanalista Virgínia Bicudo, pioneira entre as professoras universitárias negras do país, e com o historiador Sérgio Buarque de Holanda. O autor de Raízes do Brasil, ensaio obrigatório sobre a formação da identidade nacional, impressionou a aluna não só dentro da classe. Em 1949, alguns estudantes fizeram uma excursão por Belo Horizonte e Ouro Preto. Buarque de Holanda se encarregou de acompanhá-­los. Mais de seis décadas depois, em janeiro de 2012, Ruth – que participou do passeio – o evocou num artigo publicado pela Folha de S.Paulo. Contou que, ao longo da jornada, o professor se revelou “alegre, informal, um ótimo companheiro”. “Ele cantava conosco e jogava nossos jogos.” No hotel de Belo Horizonte em que todos se alojaram, havia um piano. Para surpresa dos jovens, o historiador não o deixou passar em branco. Tocou com descontração, ainda que precariamente.
Da capital mineira, pupilos e mestre viajaram de trem até Ouro Preto, aonde chegaram à noitinha. No dia seguinte, Ruth e duas colegas encontraram Buarque de Holanda tomando café da manhã sozinho. Ele sugeriu ciceroneá-las pela cidade. “Foi uma maravilha!”, resumiu a autora na Folha. O professor apanhou o Guia de Ouro Preto – que o poeta Manuel Bandeira escrevera em 1938 –, alugou um carro e percorreu lugares marcantes do município: as igrejas de Santa Ifigênia e São Francisco de Assis, a Basílica de Nossa Senhora do Pilar, a Ponte dos Suspiros, o Largo do Rosário, o Chafariz de Marília… À medida que visitava os pontos turísticos, Buarque de Holanda chamava a atenção para detalhes que as três moças não notariam por conta própria.
Na excursão, durante as cantorias dos alunos, o historiador se espantou com o fato de Ruth conhecer modinhas do período imperial. “Eu também sabia um monte de marchas carnavalescas”, diz a escritora. Uma tia e a avó Neném, mulher do Vovô Ioiô, lhe ensinaram o repertório. “Sempre gostei de cantar”, prossegue Ruth. “Quando criança, me apresentei em programas infantis de rádio.” Depois, já adulta e por mero hobby, interpretava hits de Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Billie Holiday no Café Piu Piu, casa noturna do Bixiga, o bairro paulistano de influência afro-italiana. Os espetáculos, semanais, ocorriam às segundas-feiras. Em família ou rodas de amigos, a autora ainda se arriscava no violão. Dedilhava principalmente o cancioneiro de Noel Rosa. Agora não toca nem canta mais. “Sofro de artrose nas mãos e perdi a voz.”
A maternidade nunca a impediu de trabalhar fora. O marido da escritora, um industrial e desenhista, confeccionava artefatos de couro. Entre as décadas de 1950 e 1970, Ruth engrossou o orçamento doméstico como funcionária do tradicional Colégio Rio Branco, em que estudou na adolescência. Exerceu primeiro a tarefa de bibliotecária, apesar de já ter o diploma de ciências sociais. “Criei um elo muito forte com os alunos menores. Eles viviam no meu pé: ‘Dona, quero um livro engraçado! Dona, me arranje uma história de aventura!’ Eu amava.” Mais tarde, se tornou orientadora educacional e fez uma pós-graduação na área.
Em 1965, virou colaboradora da Claudia. A revista feminina, editada pela Abril, procurava alguém que redigisse artigos sobre educação. Por estar se destacando no Rio Branco, Ruth ocupou o espaço. Passaram-se quatro anos, e a orientadora educacional recebeu outra missão da Abril: bolar, também como freelancer, exercícios que desenvolvessem o raciocínio e a psicomotricidade das crianças. Uma nova revista da editora, voltada para meninos e meninas, iria divulgá-los. Assim, Ruth integrou a equipe precursora da Recreio, projeto que nasceu quinzenal e, após onze números, se converteu em semanal. Rapidamente, a publicação atingiu a tiragem de 800 mil exemplares mensais.
Com a máxima “Leia e pinte, corte e brinque”, a revista oferecia um cardápio sortido: desde reportagens, contos e poemas até brindes, quadrinhos e os tais exercícios – passatempos, adivinhações e testes. A Abril retirou o produto do mercado na década de 1980 e o ressuscitou no início do século XXI. Em 2014, vendeu a marca para a Editora Caras (atual Grupo Perfil), que hoje a explora sobretudo via internet.
Durante a primeira encarnação, a Recreio lançou e alavancou nomes essenciais da literatura infantojuvenil, como Joel Rufino dos Santos, Ana Maria Machado, Sylvia Orthof e Marina Colasanti. Todos assinavam narrativas coloquiais, que geralmente espelhavam o cotidiano dos pequenos leitores. Certos textos, porém, mergulhavam no fantástico e retratavam manifestações do folclore brasileiro. De maneira um tanto enviesada, Ruth logo ingressou no time de autores.

Ela nunca havia escrito ficção antes de chegar à revista. Quer dizer: havia, sim – nas longínquas redações escolares. Depois que se tornou mãe, resolveu criar histórias outra vez, mas somente para distrair a filha. Não cogitava botá-las no papel. “Mariana se interessava demais pela realidade. Ficava intrigada com objetos corriqueiros e me fazia perguntas do tipo: ‘Qual a origem do garfo? E da mesa? E do cinzeiro?’ Eu nem sempre sabia a resposta”, conta Ruth. Por isso, disparava umas explicações amalucadas, que atiçavam a imaginação da garota.
“Verdade!”, reitera a filha, de 63 anos. “Minha mãe também lia bastante para mim.” Entre as obras prediletas da menina, sobressaiam as de Monteiro Lobato e Flicts, o best-seller de Ziraldo. Mariana se recorda, ainda, de um livrinho do poeta Jacques Prévert, L’opéra de la lune, que Ruth traduzia do francês no decorrer da leitura em voz alta. “Tão bonito… As ilustrações de Jacqueline Duhême me tiravam o fôlego. Pareciam telas do pintor Marc Chagall”, compara a filha.
A atriz e jornalista Sônia Robatto, que idealizou e dirigia a Recreio, costumava ouvir as respostas mirabolantes de Ruth para Mariana. “Você é uma excelente contadora de histórias! Por que não escreve?”, indagava. Ruth desconversava: “De jeito nenhum! Não consigo…” Um dia, meio de gozação, meio a sério, Robatto trancou a subordinada (e amiga) numa sala com uma máquina de datilografia: “Você só vai sair daqui quando escrever alguma coisa.” Ruth concebeu, então, Romeu e Julieta. A trama, baseada na tragédia de William Shakespeare, tratava de duas borboletas – uma azul, outra amarela – que não podiam se divertir juntas porque tinham cores diferentes. “Logo de cara, quis me posicionar contra o preconceito, um assunto que debati muito na Escola de Sociologia e Política.” A Recreio publicou o texto em 1969 e inaugurou a carreira literária da colaboradora. “Eu já estava com 38 anos. Comecei tarde.”
A partir daí, a revista abrigou tanto os exercícios quanto diversas ficções de Ruth, que se transformariam em livros no futuro: Teresinha e GabrielaO dono da bolaO nosso amigo Ventinho, Marcelo, marmelo, martelo… “Perdi a inibição de escrever à medida que escrevia. A profissão escolhe a gente, e a gente inventa a profissão”, diz a autora. Ela abraçou as novas atribuições com tamanho entusiasmo que, em 1972, decidiu largar o Colégio Rio Branco e se dedicar apenas à indústria cultural. Depois de uma breve passagem pela revista infantil Bloquinho, da Bloch Editores, voltou para a Recreio, agora como funcionária. Subiu degraus e alcançou o cargo de redatora-chefe. Em seguida, fez um estágio sobre editoração nos Estados Unidos e comandou o departamento de publicações infantojuvenis da Abril.  
A escritora desempenhou outras atividades executivas dentro da empresa até 1981, quando a deixou. Continuou atuando na mesma área por onze anos e fundou, inclusive, uma editora, a Quinteto, da qual acabou se desligando. Hoje o negócio pertence à FTD Educação. Ruth ainda trabalhou como comentarista política. Integrava a bancada fixa de um telejornal vespertino na TV Gazeta, de São Paulo. Em 1995, se aposentou de tudo, menos da literatura. Desde então, reserva todos os esforços à escrita. Seu primeiro livro – Palavras, muitas palavras… – é uma cartilha com rimas e saiu em 1976: C de casa/de cola/De coruja e de cartola/de cobra/E de chinelo/De camelo e de castelo. Já a obra mais recente, de 2023, reúne vários gêneros de textos (poemas, fábulas, provérbios) para discorrer sobre os primatas e o evolucionismo. Chama-se O grande livro dos macacos.
Além dos títulos originais, a bibliografia de Ruth abrange traduções do inglês e releituras de contos populares estrangeiros, a exemplo de O patinho feioAli Babá e os quarenta ladrõesChapeuzinho VermelhoA Pequena Polegar e Cachinhos Dourados. A autora também adaptou a Ilíada e a Odisseia, épicos do grego Homero. O marido dela, Eduardo Rocha, ilustrou ambas as versões. Com um pé no lúdico e outro no reflexivo, as produções da escritora inspiraram músicas, peças teatrais e uma série da Paramount+ (Marcelo, marmelo, martelo).

A literatura infantojuvenil brasileira vivia uma reviravolta quando a Recreio despontou. Até as duas últimas décadas do século XIX, a maioria das ficções para crianças e adolescentes do país vinha da Europa, principalmente da França e da Alemanha. As editoras que mais as ofereciam ficavam no Rio de Janeiro: a Garnier, do francês Baptiste Louis Garnier, e a Laemmert, dos irmãos alemães Henrique e Eduardo Laemmert. Quase sempre, as tramas chegavam aqui em português lusitano, repletas de termos como “mariola” (patife), “treita” (pegada) e “caçoula” (caçarola). A disparidade linguística dificultava a compreensão da meninada e tornava os livros enfadonhos. Havia poucas exceções à regra – caso da coletânea João Felpudo, best-seller que o psiquiatra alemão Heinrich Hoffmann redigiu em 1844 para o filho. As dez narrativas curtas, rimadas e ilustradas ainda estão no mercado e têm um claro viés moralizante por demonstrar o quanto garotos desrespeitosos, esnobes ou travessos podem quebrar a cara. Conforme anunciou o Jornal do Commercio em dezembro de 1860, a edição que a Laemmert acabava de lançar se distinguia pelo português mais palatável, fruto da tradução de um desembargador brasileiro, Henrique Velloso de Oliveira.
A partir de 1880, o panorama mudou. Na época, a tipografia se encontrava em franca expansão. Novas técnicas de impressão reduziam os custos de produção e barateavam os livros. Os ideais republicanos avançavam, as populações urbanas cresciam, e a escola ganhava força como instituição encarregada de transmitir conhecimentos e valores às futuras gerações. Sob a ótica dos editores, o cenário em ebulição convertia os leitores mirins numa oportunidade lucrativa de negócio, ainda que o índice nacional de analfabetismo continuasse altíssimo. Ultrapassava os 85%, segundo o censo de 1890.
A Laemmert encomendou, assim, uma adaptação de As mil e uma noites para o militar, jornalista e professor Carl Jansen. Ele nasceu em Colônia, na Alemanha, e lutou como mercenário durante um dos conflitos que sacudiram o Cone Sul da América: a Guerra do Prata (1851-52). Quando deixou o campo de batalha, decidiu não voltar à terra natal. Casou-se em Porto Alegre e, mais tarde, trocou a capital gaúcha pelo Rio, onde ensinou alemão no prestigioso Colégio Pedro II. Por dominar o português, aceitou pinçar alguns contos do clássico oriental e traduzi-los para os jovens brasileiros. Ninguém menos que Machado de Assis prefaciou a antologia, publicada em 1882. De acordo com os editores, Jansen extraiu das histórias os trechos que julgou imorais (“as escabrosidades”). Também resumiu as tramas, abdicou de frases na ordem indireta, fugiu de palavras complicadas e substituiu a primeira pessoa do narrador pela terceira.
O êxito do lançamento possibilitou que o professor vertesse e adaptasse para a garotada outros quatro clássicos da literatura adulta, agora europeus: Robinson CrusoéDom Quixote de la ManchaAs viagens de Gulliver e Aventuras do Barão de Münchhausen. Como ocorreu com As mil e uma noites, três dos livros continham prefácio de escritores famosos – Silvio Romero, Ferreira de Araújo e Rui Barbosa. A estratégia buscava legitimar os títulos diante dos pais que os comprariam. Na apresentação de Robinson Crusoé, o sergipano Romero lamentou que, quando pequeno, se alfabetizou “em velhos autos, velhas sentenças fornecidas pelos cartórios dos escrivães forenses”. Os estudantes careciam, afinal, de leituras mais apropriadas à idade deles. O prefaciador comparou aqueles documentos maçantes com “clavas” que lhe esmagavam “o senso estético”, embruteciam “o raciocínio” e estragavam “o caráter”.
No rastro da Laemmert, o fluminense Pedro da Silva Quaresma – que enveredou pelo mercado livreiro em 1879 – publicou uma coleção infantojuvenil de enorme sucesso. Os oito volumes tinham preço acessível, quase nenhum apuro estilístico e uma linguagem que reproduzia a das ruas cariocas. O editor se valeu desses recursos para atrair um público que a concorrência mal atingia: as famílias de baixa renda. O volume inaugural, Contos da carochinha, apareceu em abril de 1894. Com 5 mil exemplares, a primeira edição se esgotou num piscar de olhos. Entre os títulos seguintes, lançados em 1896, havia coletâneas de prosa (Histórias da avozinhaHistórias da baratinha Histórias do arco da velha), de peças (Teatrinho infantil), de poemas (Álbum das crianças) e de brincadeiras tradicionais (Os meus brinquedos). O castigo de um anjo, adaptação de um conto do russo Liev Tolstói (Do que vivem os homens), completava a série.
O jornalista Alberto Figueiredo Pimentel escolheu e retrabalhou boa parte dos textos. As coletâneas de prosa reuniam narrativas populares da Europa e causos do folclore nacional. Além de entreter, as obras estimulavam sentimentos e práticas edificantes: o respeito pelos familiares, a caridade e a rotina de exercícios físicos. Ironicamente, Figueiredo Pimentel escrevia romances naturalistas, como O aborto e Suicida!, que os críticos tachavam de pornográficos.
Nas décadas finais do século XIX e nas duas primeiras do XX, as crianças e os moços também dispunham de ficções criadas por brasileiros. Os cariocas Olavo Bilac e Júlia Lopes de Almeida, o mineiro Afonso Celso, o sergipano Manuel Bomfim e o maranhense Coelho Neto engrossavam a turma dos raros escritores que se dedicavam àquele público. Eles usavam a literatura não apenas para louvar os estudos, o trabalho, a honestidade e a disciplina, mas sobretudo para enaltecer as belezas naturais do país e o patriotismo. Estetas de carteirinha, reverenciavam as normas cultas da gramática e, sempre que possível, exaltavam as singularidades do português. Em 1907, num conto do livro Histórias de nossa terra, Júlia Lopes de Almeida decretou: “Nenhuma outra língua há de tão nobre estrutura! De sonoridades variadíssimas, opulenta nos seus vocábulos, maleável como a cera ou dura como o diamante, a língua portuguesa é a mais bela expressão da inteligência humana. Defendei-a!”
Na terceira década do século passado, Monteiro Lobato entrou em cena e revolucionou o mercado editorial destinado à criançada. De 1920 a 1947, o paulista de Taubaté – que já escrevia para adultos – concebeu todos os enredos da bem-sucedida coleção Sítio do Picapau Amarelo. Irreverentes e engenhosos, os 22 títulos da série inovaram por tratar os pequenos sem paternalismo excessivo e representá-los de maneira pouco estereotipada. Até então, nas ficções brasileiras, meninos e meninas agiam como seres puros e virtuosos ou negligentes, levados e cruéis. Lobato preferiu deixá-los mais complexos.
Ora sagazes, ora ingênuos, os protagonistas mirins do Sítio – Pedrinho e Narizinho – questionam, aprendem e ensinam. Conversam com qualquer um em pé de igualdade e não são meros receptores de preceitos morais. As tramas normalmente se desenvolvem no interior de um Brasil ainda bastante agrário. Ali não existe grande diferença entre o real e o fantástico. Humanos convivem em harmonia com um rinoceronte, um burro e um porco falantes, uma espiga de milho pertencente à nobreza (o Visconde de Sabugosa) e uma boneca de pano rebelde (a tagarela Emília). A personagem contesta, inclusive, as decisões do próprio autor e introduz a metalinguagem na literatura infantojuvenil do país.
Escritas em português informal, muito próximo da oralidade, as histórias agregam elementos que não costumavam se misturar, como a mitologia greco-romana, as fábulas europeias, as lendas indígenas, os saberes caipiras, o cinema americano e os quadrinhos. Também propõem discussões sobre ciência, ética, filosofia, economia e política, mas sem abusarem do tom professoral. Hoje, Lobato enfrenta uma avalanche de ressalvas em razão do apreço que nutria por teorias eugenistas e racistas. Mesmo assim, é impossível negar o pioneirismo e a inventividade de seus livros.
O triunfo do Sítio, aliado à maior escolarização dos brasileiros e à consolidação das classes médias urbanas, fortaleceu a literatura infantojuvenil e fez brotar uma nova leva de autores na década de 1930. Parte deles compunha a segunda geração do modernismo. Enquanto seguiam os princípios de ruptura linguística e temática na prosa adulta, figuras como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Érico Veríssimo se aventuravam em ficções para a garotada. Os dois primeiros exploraram o filão apenas pontualmente. Já Verissimo assinou doze títulos do gênero e recebeu aplausos tanto dos leitores quanto da crítica. Escritores que não participaram do movimento modernista também prosperaram naquela ocasião. O cronista e dramaturgo Viriato Corrêa, por exemplo, publicava obras de teor cívico-patriótico para os jovens desde o começo do século XX. Desfrutava de certa reputação, mas só se consagrou em 1938 com o romance de formação Cazuza. A narrativa confessional, de inspiração autobiográfica, une o regionalismo à nostalgia sem arriscar experimentações. Transformou-se em best-seller e frequentou colégios do país inteiro durante cinquenta anos.
Entre as décadas de 1940 e 1960, a ficção para crianças e adolescentes atravessou uma fase ambígua, conforme o livro Literatura infantil brasileira – História & histórias, das ensaístas e professoras Marisa Lajolo e Regina Zilberman. Por um lado, autores e editoras aproveitaram o crescimento do mercado e se especializaram no nicho, o que elevou a quantidade de lançamentos. Por outro, quase nada digno de nota surgiu em termos de estilo e conteúdo. Os escritores, menos preocupados com questões artísticas e mais com as demandas da indústria cultural, sucumbiram às fórmulas gastas e não honraram o legado inquieto de Lobato. Os assuntos se repetiam, a linguagem não ousava, o maniqueísmo dava as cartas e o tom doutrinário imperava. As tramas ignoravam o avanço da urbanização e deslocavam as ações para o campo ou a selva. Os enredos teimavam em retratar os pequenos como criaturas desprotegidas que exigem tutela e amparo constantes. Projetava-se na infância e na adolescência uma imagem que ratificava as expectativas dos adultos e rebaixava a meninada “à condição pueril e à indigência afetiva e intelectual”, de acordo com Lajolo e Zilberman. Três autores marcaram o período: Maria José Dupré, Francisco Marins e Lúcia Machado de Almeida.
Na segunda metade dos anos 1960, a literatura infantojuvenil recuperou gradativamente o ímpeto transgressor. A tendência se prolongou durante as décadas de 1970 e 1980, que equivalem à “era dourada” do gênero. Ruth e a Recreio contribuíram para o fenômeno. Com a expansão da tevê, a juventude da época lia cada vez menos. O Instituto Nacional do Livro, órgão já extinto, tentou combater o problema e coeditou um número expressivo de títulos que buscavam seduzir a população escolar. Fundações privadas trilharam o mesmo caminho e implantaram programas de incentivo à leitura.

Vários especialistas colocam Ruth Rocha entre os principais representantes da “era dourada”. Junto da autora, se encontram Lygia Bojunga Nunes, Ana Maria Machado, Bartolomeu Campos de Queirós, Pedro Bandeira, João Carlos Marinho e Ziraldo. Os sete assimilaram as lições de Monteiro Lobato sem nunca abrirem mão de um estilo próprio. No caso das ficções de Ruth, os aspectos que mais as caracterizam são:

  • A escritora brinca com o idioma. Repete palavras de modo divertido e cria rimas inesperadas em meio à prosa. “Como diria o Conselheiro Furtado, quero deixar consignado que está tudo errado…”, protesta o Senhor Caracol num trecho de A primavera da lagarta. Às vezes, Ruth literaliza expressões de origem metafórica para causar efeitos cômicos. “Professora, céu da boca tem estrelas? Barriga da perna tem umbigo? Pé de alface tem calos?”, indaga uma personagem de Teresinha e Gabriela. Já em Marcelo, marmelo, martelo, a autora questiona o sentido e a etimologia de vocábulos corriqueiros. O protagonista rejeita os nomes das coisas, que lhe parecem tremendamente inadequados. Decide, então, rebatizar o mundo. Travesseiro e cachorro se tornam cabeceiro e latildo. Colher vira mexedor, e casa, moradeira.
  • A ironia sutil ou a piada rasgada sempre eclode nos livros da escritora, incluindo os que abordam situações amargas. “Menina, como você se chama?”, alguém pergunta em Teresinha e Gabriela. “Eu não me chamo, não, os outros é que me chamam”, responde a garota.
  • Ruth instiga a imaginação dos leitores e os convida a interferir nos enredos (“Vou parar por aqui a história que estou contando. O que se seguiu depois, cada um vá inventando”).
  • A autora resgata ditados populares – “sua alma, sua palma”, “cala boca já morreu” – para manter viva a tradição oral, mas também para lhe conferir novos significados.
  • Os cenários rurais perdem relevância nas tramas, que frequentemente se passam em cidades médias ou grandes.
  • Os livros expõem e discutem mazelas contemporâneas. A relação é longa: machismo, preconceito racial, avanço tecnológico desenfreado, consumismo, desigualdade social, individualismo excessivo, desrespeito à natureza…
  • As narrativas valorizam as mulheres e minorias. Injetam nelas o bom senso e o vigor necessários para a solução de problemas coletivos.
  • As crianças retratadas pela escritora têm voz ativa. Pensam, opinam, escolhem e contestam. “Se você dobra a criança, vai gerar um adulto passivo”, adverte Ruth.
  • A autora considera que o aprendizado resulta da convivência. Seus personagens se transformam porque interagem entre si. A sociabilidade os ensina mais que lições de moral ou discursos pedagógicos.

A escritora se notabilizou, ainda, por histórias que satirizam a figura do monarca. Nos contos de fadas, os soberanos geralmente se mostram éticos, sensatos e generosos, atributos bem distantes das altezas que protagonizam quatro elogiadas obras de Ruth: O reizinho mandão (1978), O rei que não sabia de nada (1980), O que os olhos não veem (1981) e Sapo vira rei vira sapo ou “A volta do reizinho mandão” (1982). As tramas constituem a “tetralogia real” da autora, em que os governantes são truculentos, arbitrários, incompetentes e mimados. Um deles não só determina a prisão de todas as verdades como proíbe os cidadãos de adotarem o nome Arthur. Outro briga com qualquer um que arrisque criticá-lo. Para não levar mais broncas, o povo se cala por tanto tempo que perde a capacidade de falar. Há também o monarca relapso que é ludibriado pelos ministros preguiçosos e o que manifesta um estranho distúrbio óptico. Ele consegue enxergar os súditos grandalhões, mas não os pequeninos. Nos quatro livros, os reis acabam vencidos ou modificados graças à união dos plebeus. A população dos reinos encabeça revoluções que derivam de estratégias inteligentes. O soberano enxerga apenas os grandalhões? Os pequeninos tratam de subir em pernas de pau e se fazem avistar. O monarca ordena que prendam todas as verdades? Os súditos insistem em alardeá-las para que a prisão encha e desmorone de tão superlotada.
Ruth publicou a “tetralogia real” no período da ditadura militar. Os livros, portanto, soam como alegorias do autoritarismo que oprimia os brasileiros e reiteram o apoio da autora à democracia. Em 1989, pouco depois da redemocratização, a escritora lançou nova trama provocativa: Uma história de rabos presos. O enredo se desenrola num lugarejo bem remoto, a Egolândia, onde os ricos e os políticos comungam de interesses escusos. O prefeito favorece o coronel, que favorece o vereador, que favorece o secretário, que… Os corruptos trazem sempre a palavra “eu” no nome: Egomeu, Euclides, Eulália, Euler, Eurico, Filisteu, Irineu, Neuza, Romeu e Tadeu. Um dia, nascem caudas em todos os que promovem o “toma lá dá cá”. São tantos os rabos emaranhados que, durante a campanha eleitoral, fica impossível desatá-los.
Em março passado, numa reportagem do site PublishNews, Ruth mencionou a influência que sofreu (e ainda sofre) de Lobato. “Continuo a maior fã dele”, ressaltou logo antes de informar que não presenteia mais ninguém com os títulos do Sítio. Decidiu vetá-los depois de dar seu livro infantil favorito, Reinações de Narizinho, para uma garota negra. “A menina voltou e disse: ‘Não gostei. Tem coisas muito feias ali. Tem negro beiçudo, tem não sei o quê.’”

Apesar do transtorno visual e da artrose nas mãos, a autora frisa que goza de “bastante saúde”. “Andei perdendo um pouco da audição e agora preciso de bengala. Nada grave, né? Completei 94 anos e me sinto como se estivesse com 93”, zomba. “Faço parte de uma família longeva. Meu pai alcançou os 91 anos. Minha mãe atingiu os 96, e minha avó, os 98.” Um quarteto de assistentes – “a Dalva, a Maria Rita, a Damares e a Maria Emília” – se reveza para cuidar da escritora, que mora sozinha num apartamento espaçoso. “São moças ótimas! Minhas amigonas.” Ruth conta que recebe visitas regulares dos dois netos e da filha. “Todos me tratam direitinho. Não posso reclamar.”
À semelhança da irmã, Rilda também se considera muito saudável. “Botei um marcapasso há um tempão e mal me recordo dele. Uso óculos, lógico, além de aparelho nos ouvidos por causa de uma surdez precoce. A cabeça permanece funcionando. Não tenho dores na coluna ou nos joelhos nem insônia. Se acordo de madrugada, pego o tablet, checo as notícias do Estadão e durmo outra vez.” Ela vive num sobrado com a filha do meio e uma vira-lata caramelo, a Havana. Preserva o hábito de costurar, jogar sudoku (“nível médio ou médio plus”) e acompanhar telejornais. “Admiro o William Waack, da CNN.”
Ruth já se dedicou à costura, mas largou as agulhas “séculos atrás”. Deixou igualmente de cozinhar. “Eu preparava uns pratos de sucesso: macarrão à primavera, coq au vin e pudim de leite.” Hoje conserva mesmo é o gosto por comer e beber. “Adoro sorvete e café.” A autora segue o noticiário sobretudo pela GloboNews e, desde 2023, não escreve com a frequência de antes. “Me faltam ideias, sabe? Espero que, uma hora, surja um bom lampejo.” Entre a escrita e a leitura, prefere a segunda. “Não existe nada melhor do que ler. A leitura aumenta a nossa percepção do mundo, o nosso vocabulário, a nossa alegria. Ler aumenta a vida.”
No quarto de onde Rilda liga para a irmã, veem-se três porta-retratos. Um exibe as duas, ainda crianças, com fantasias de Carnaval. Outro mostra as meninas no Parque Trianon, em São Paulo, perto de uma empregada doméstica. Ruth parece emburrada. “O vestido dela estava pinicando”, justifica a mais velha. Na terceira foto, a dupla já chegou à adolescência.
Para selecionar os livros que apreciam juntas, as irmãs se baseiam em indicações de parentes, da mídia ou de amigos. Rilda apoia o volume escolhido numa mesa robusta que herdou dos pais. Com a mão esquerda, segura o telefone. Com a direita, coloca uma régua sob a linha que vai ler. Ruth a escuta numa cadeira de balanço, próxima à luminária da sala. “Minha leitura não é tão profissional quanto a dos audiobooks. Leio devagar e sem bancar a atriz. Não interpreto os personagens, compreende? Priorizo o tom natural. Busco caprichar na dicção, mas acabo tropeçando aqui ou ali: ‘Desculpe, me atrapalhei. Vou recomeçar.’ Como nenhuma de nós prestará vestibular amanhã, não precisamos devorar os livros da noite para o dia. Podemos ir no nosso ritmo”, diz Rilda. “Ela lê perfeitamente”, elogia Ruth. “Tem um jeito expressivo e uma voz bem mais nítida que a dos audiobooks.”
Durante as leituras, as duas comentam trechos que as intrigam ou emocionam. Às vezes, dispersam e abordam outros assuntos. Logo, porém, retomam o fio da meada. “Somos muito conversadeiras…”, admite Rilda. “Falamos de tudo: do passado, do presente, das filhas, dos netos, dos sobrinhos, do país.” Quando não gostam de um livro, o abandonam antes do fim sem qualquer hesitação.
No rol dos 65 títulos que terminaram, não há só novidades. “Relemos umas coisinhas também, obras espetaculares de que a gente não se lembrava mais”, afirma Ruth. A lista reúne apenas prosa e é de um ecletismo fascinante. Alguns exemplos do que a dupla já compartilhou, por categoria:

  • Ficção brasileira – A muralha (Dinah Silveira de Queiroz); Bambino a Roma (Chico Buarque); Grande sertão: veredas (Guimarães Rosa); Sargento Getúlio (João Ubaldo Ribeiro); Solução de dois Estados (Michel Laub).
  • Ficção estrangeira – A metamorfose (Franz Kafka); Memorial do convento (José Saramago); Número zero (Umberto Eco); Nunca (Ken Follett); O avesso da vida (Philip Roth); O mesmo mar (Amós Oz); Submissão (Michel Houellebecq).
  • Biografia – A imperatriz de ferro: a concubina que criou a China moderna (Jung Chang).
  • Memórias – Uma terra prometida (Barack Obama).
  • Divulgação científica – Por que sonhamos (Dr. Rahul Jandial); Revolução das plantas (Stefano Mancuso); Sapiens (Yuval Noah Harari); Sete breves lições de física (Carlo Rovelli).
  • Antropologia – Encontros (Eduardo Viveiros de Castro).
  • História – Copacabana: a trajetória do samba-canção (Zuza Homem de Mello); Escravidão – Volume 1 (Laurentino Gomes).
  • Reportagem – Trágica e bela: uma viagem pelas 1001 faces da Pérsia e do Irã (Lúcia Araújo).
  • Sociologia – A dominação masculina (Pierre Bourdieu).

Um dos netos de Ruth, Pedro Rocha Colzani, também empresta os olhos à escritora, só que presencialmente. Duas vezes por semana, o rapaz lê durante uma hora para a avó. “Começamos as leituras uns três anos atrás e, até agora, concluímos dezoito livros. Cinco deles são do Ítalo Calvino, romancista que admiramos demais”, diz Pedro.

“Um monumento à amizade.” Alexandre Machado, o caçula dos irmãos, define assim as reuniões telefônicas de Rilda e Ruth. “A iniciativa de ambas me comove. Há tanto amor, tanta solidariedade, tanto carinho envolvidos… Elas selaram um compromisso diário e o respeitam desde 2020! Quantas pessoas honrariam um pacto do tipo? E justo num momento em que existe uma guerra aberta contra o hábito de ler.”
Condenado à morte por desvirtuar a juventude ateniense, Sócrates aguardava a execução quando avistou uma flauta de prata em cima de um banco. O filósofo resolveu apanhar o instrumento e explorá-lo. Um discípulo que lhe fazia companhia perguntou: “Eis que o carrasco já prepara o teu veneno. Vais desaparecer em breve e ficas tocando uma flauta? Por quê?” Sócrates respondeu: “Porque quero aprender uma ária.” Ruth diz que, como o filósofo, procura manter a curiosidade acesa. “Sempre acho que posso aprender mais uma ária.” Rilda assina embaixo. “Costumo brincar com a Ruth: ‘Veja lá, hein? Trate de não morrer. Nós ainda temos muitos livros para conhecer.’”
(revista piauí)

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