Como a ascensão social de Maxwell Alexandre mudou seu modo de pintar
Picasso, mané? Não é tão brabo quanto dizem. Consigo pintar de boa uns quadros como os do maluco. Velázquez, Botticelli, Van Gogh? Molezinha. Posso reproduzir os bagulhos dos caras também. Eu pensava mais ou menos desse jeito até pouco tempo. Imaginava à vera que daria conta de imitar os fodões da pintura, tá ligado? Não enxergava tantas qualidades na maioria da velha guarda que ocupa o panteão da arte. Considerava os sujeitos ruins, chatos, um negócio sem graça mesmo. Visitava museus famosos da Europa, tipo o Louvre, e passava rapidinho por aquela massa de obras antigas. Mano, que preguiça! Eu não prestava atenção em quase nada. As pinturas simplesmente não me emocionavam – sobretudo as realistas, que lembravam bolos de noiva em casamento de grã-fino. Sabe quando o bolo é tão perfeitinho que se torna cafona? Nem as feras vanguardistas, responsáveis por subverter o realismo a partir do século XIX, me animavam muito. Para mim, todos os elementos que costumam mobilizar os pintores – a cor, a luz, a textura, a forma e o caralho – soavam como papo de playboy. Coisa de quem tem a vida ganha e o privilégio de se preocupar com detalhes. Uma parada distante da minha realidade. Preto, carioca e flamenguista de coração, nasci e me criei na favela da Rocinha. Sentia falta de mestres negros entre os medalhões que servem de farol para a pintura do Ocidente. Não satisfeito em desprezar a tradição, me julgava capaz de fazer o que os bambambãs fizeram. Era uma indiferença soberba, tá ligado? Não se tratava de ignorância. Estudei sociologia da arte, história da arte e filosofia da arte quando cursei design na puc do Rio de Janeiro. Conhecia bem os códigos do universo artístico. Minha postura marrenta diante do cânone resultava mais de um espírito bastante competitivo e provocador, alguma ingenuidade, muito recalque e certa resistência para aceitar meus limites. Me recordo de colegas que, mesmo jovens, reverenciavam a pintura a óleo como se cultuassem uma santa. Eles pareciam beatos de novela. Acreditavam que é preciso ficar de joelhos antes de pintar e se entregavam fervorosamente àquele ritual de preparar a tela, iluminar a cena, combinar pigmentos e gerar uma paleta original de cores. Eu nunca me comportava assim. Caso não arranjasse telas, usava outros suportes. Se não descolava tinta a óleo, dava meus pulos com materiais alternativos: caneta esferográfica, graxa de sapato, carvão, betume… Caso quisesse um vermelho, aproveitava o que encontrava pela frente em vez de buscar o vermelho mais foda de toda a galáxia. Não à toa, evitava me chamar de pintor, embora pinte desde que iniciei a carreira, há quase dez anos. Preferia definir meus trabalhos como anotações, taquigrafias. De que modo tu, um repórter, toma nota? Escrevendo, não é? Eu anotava por meio da pintura. Na hora de pintar, não apenas cagava para cor, luz, textura e forma. Também dispensava objetos de referência e modelos vivos. Pintava tudo de memória ou baseado na imaginação. Pá pum! Era um lance mais ligeiro, irreverente e descontraído. Mas, de 2023 para cá, sinto que minha cabeça está mudando. Baixei as armas e compreendo cada vez melhor os “gênios dos pincéis”, o que acabou por alterar a maneira como pinto. Agora já não tenho pudores de admirar Cézanne ou Monet e me dizer pintor. Acho que minha percepção se transformou principalmente depois que vi as Pinturas negras, do espanhol Francisco de Goya, no Museu do Prado, em Madri. São catorze quadros sinistros! As obras fogem do realismo e exibem umas figuras esquisitas – ora fantasmagóricas, ora caricatas ou depressivas. Um troço impactante, que me remete à arte contemporânea. Goya produziu a série entre 1819 e 1823, com a técnica óleo a seco, nas paredes da casa onde morava, a Quinta del Sordo. Mais tarde, um restaurador tirou as imagens de lá e transferiu para as telas que o Museu do Prado se encarrega de preservar e expor. Meses depois da viagem à Espanha, minha mulher, Raíssa Freire, engravidou de uma menina. Cogitamos batizar a criança de Sofia, mas desistimos. “Vamos procurar um nome menos comum. Que tal Magnólia?”, propôs Raíssa. Não… “E Pedra?”, sugeri. Também não… Um dia, me ocorreu chamar a bebê de Goia, justamente por causa do pintor. Só que, no lugar do y, pensei em botar um i. Raíssa não se empolgou. Decidimos, então, fazer uma brincadeira. Coloquei a mão no ventre de Raíssa e falei: “Tu vai escolher o teu nome, filha.” Apresentei as várias possibilidades – Sofia, Magnólia, Pedra – e nada. Assim que mencionei Goia, a garota meteu um chutão na barriga de Raíssa. Pronto! Ficou Goia. Ela é nossa primeira filha e comemorou 1 aninho em junho.
Por que o modo como encaro a pintura se modificou tanto? O que estava rolando comigo quando visitei Madri e me liguei na grandeza do Goya? Para responder às perguntas, tenho que contar mais da minha história. Eu nunca quis bater ponto, mané. Já na infância, rejeitava a ideia de levar uma vida banal. Não sonhava em arrumar um bom emprego, usar gravata, financiar apartamento e nananã. Questionava tudo: a desigualdade social, a truculência da polícia, a via-crúcis dos negros. Observava a rotina árdua da minha mãe, uma carioca com antepassados mineiros, e me entristecia. A coitada trabalhava de empregada doméstica para as madames da Zona Sul enquanto cuidava de três filhos. Hoje vive relativamente tranquila em Cachoeiras de Macacu, na Região Metropolitana do Rio. O corre do meu pai também não me encantava. Pernambucano, o velho trampava como pintor automotivo na Rocinha. Depois, arranjou outra família e se mudou para São Paulo, onde abriu uma funilaria. Morreu de câncer em 2016. Meu cotidiano se parecia com o de trocentos moleques da favela. Eu frequentava cultos da igreja evangélica, estudava em colégio público, jogava muito videogame e passava horas diante da tevê. Era fã de animes, os desenhos animados japoneses. Para faturar uma grana, pegava o lixo de estabelecimentos comerciais e descartava nas lixeiras da Rocinha ou tomava conta de carros em volta do shopping Fashion Mall, vizinho à comunidade. Levava, portanto, a vida banal que desejava evitar. Sorte que minha imaginação voava longe e me convertia num super-herói, num guerreiro sempre à caça de aventuras. Eu criava os meus próprios desafios, tá ligado? Vou pular mais alto que toda a galera da rua, vou ganhar de geral na corrida, vou trocar soco com sei lá quem. Por isso, levantava bem cedo e malhava sem dó. Não tinha papo de judô, caratê ou jiu-jítsu. Ninguém me matriculou nessas porras, não. Eu treinava sozinho. Até que consegui entrar na capoeira e aprendi golpes alucinantes. Girava rapidão, saltava como gato e distribuía pernadas de responsa. Um tempinho depois, à beira dos 14 anos, virei patinador por influência do Shadow. Conhece o Shadow, né? O personagem do videogame Sonic. Ele é um ouriço preto e vermelho que se locomove com patins-foguetes. Bicho doido dos infernos! Na patinação, logo me interessei pelo street, modalidade em que os atletas realizam um punhado de manobras radicais. Praticar esporte se tornou uma válvula de escape, sacou? O jeito que encontrei de driblar um pouco o banal. Eu também gostava de desenhar. Não podia ver lápis e papel que já saía rabiscando. “Tu ganhou um presente de Deus: a mão boa para o desenho”, elogiava minha mãe. A Turma da Mônica me fascinava tanto que resolvi bancar o Mauricio de Sousa e inventei a Turma do Pedrinho. Meus colegas de escola se amarravam na parada. Eu fazia HQs com a Turma do Pedrinho e vendia durante o recreio. Mó sucesso! Desenhar se transformou em outra válvula de escape, além de me garantir uns trocos.
Assim que completei 18 anos, precisei servir nas Forças Armadas. Os milicos me enviaram para o Forte de Copacabana, onde ralei por dez meses. Ali funciona o Museu Histórico do Exército, tá ligado? Chuta qual atribuição recebi dos comandantes. Zelar pela reserva técnica do museu! Ou melhor: catalogar, higienizar e transladar os bagulhos. Eram os verbos que os oficiais costumavam empregar quando me ordenavam algo. Em vez de falarem “limpe aquele quadro” ou “mude aquela espada de lugar”, diziam “higienize o quadro” e “translade a espada”. Comédia demais… Pajear o acervo acabou se revelando uma experiência importante. Foi meu primeiro contato com o rolê museológico. Na adolescência, por incrível que pareça, considerei a possibilidade de seguir carreira militar. Eu desconfiava da polícia, mas curtia o Exército. Queria guerrear, defender a nação, aterrorizar os inimigos. Um troço bem masculino, bem macho alfa, que casava com minha ânsia de afugentar o banal. No Forte de Copacabana, porém, a realidade se impôs e atropelou a fantasia. A lida de recruta não tinha nada de aventuresca. Nem tiro me deixavam dar, mané. Se não me engano, disparei apenas três, de calibre 12. Lógico que abandonei depressinha a hipótese de, um dia, vestir casaco de general. Frustrações à parte, ainda hoje aprecio certos valores do Exército. O lance da disciplina, por exemplo. No quartel, tu acorda às cinco da manhã, faz a barba, mete o uniforme e já vai para o pátio. O comandante inspeciona a tropa com lupa. Se tu não estiver impecável, toma esculacho. Se tu vacilar numa atividade em grupo, todo mundo paga vinte flexões de braço gritando teu nome: “Obrigado, Maxwell!” Confesso que tamanho rigor me agradava. Na favela, a gente cresce muito solto, muito sem hierarquia. A desordem impera: menorzinho em boca de fumo, som alto madrugada afora, moto zunindo pelas vielas. Beleza, é a cultura da quebrada e há uma porção de coisas maneiras que derivam de tanta anarquia. Pena que também haja um monte de coisas horríveis… O Exército põe os recos nos trilhos, sacou? Conheço uma porrada de jovem zoado que lucraria bastante se passasse uma temporada dentro de um quartel. O que estou dizendo talvez soe bizarro para um playboy de esquerda. Mas o fato é que só me tornei um sujeito disciplinado por causa do esporte, da religião e do Exército, os três pilares em que me apoiei quando moleque.
Na minha época de colégio público, não conseguia entender a brisa dos alunos que mal terminavam o ensino médio e já prestavam vestibular. Cursar faculdade para quê? Nenhum dos meus vizinhos ou familiares cursou. Eu não botava fé naquele blá-blá-blá de que diploma superior tira o pobre da merda. Foi um amigo que me abriu os olhos: “Não viaja, mano! Faculdade pode valer a pena, sim!” O cara, branco, estudava marketing na PUC e estava tranquilão. Eu, em contrapartida, me sentia à deriva. Embora tivesse desencanado da carreira militar, ainda servia no Forte de Copacabana. Para onde iria depois que me livrasse do quartel? “Faculdade, rapá! É o jeito. Tu devia tentar uma baratinha”, teimava o meu amigo. Ele buzinou tanto na minha orelha que me convenceu. “Demorô! Vou encarar a bucha, mas nada de faculdade barata, paizão! Quero entrar na PUC, como tu. Impossível?” Meu amigo explicou que a PUC oferecia bolsas para estudantes de baixa renda. “Só que o vestibular de lá é pedreira”, avisou. Mesmo assim, não me acovardei e, quando zarpei do Exército, procurei um cursinho social que rolava numa favela do Leblon, a Cruzada São Sebastião. Por gostar de desenhar, resolvi fazer design. Eu continuava patinando e me destacava nas competições de street. Venci diversas, inclusive. Virei uma referência naquele universo, tá ligado? Apareci em capa de jornal e programas de televisão, tipo Encontro com Fátima Bernardes. O problema é que a bagaça não rendia um puto. Faltavam premiações em dinheiro e mais patrocinadores. Me bateu, então, o desejo de fortalecer o street no Brasil – de agitar a cena para deixá-la tão pujante quanto a do skate. Eu pretendia, entre outras paradas, organizar novos campeonatos, criar marcas de patins ou roupas esportivas e divulgar toda a cultura que gira em torno da modalidade. O design certamente me ajudaria nessa tarefa. O cursinho social custava merreca. Uns 30 contos por mês. Como ninguém aliviava o meu lado, tratei de correr atrás do capital. Fui trampar com van nos fins de semana. Acordava às três da madruga e voava para o ponto. Minha função principal? Recolher a grana das passagens durante os trajetos. Eu também precisava berrar o itinerário na porta da van: “Copacabana – Leme!” Às vezes, o motorista ficava boladão e me pressionava: “Grita mais alto, pô! Vamos lotar a porra da van!” Outro bagulho que me atazanava, mané: o troco. Caraca! Que perrengue! Eu tinha que arrasar na matemática para não confundir o troco da rapaziada. Em 2011, com 20 anos, finalmente marquei o gol. Depois de enfrentar o temido vestibular, ingressei na PUC, mas não descolei bolsa logo de cara. Passei o primeiro semestre agoniado. Não paguei nenhum boleto e fiquei devendo mais de 12 mil reais para a faculdade. No segundo semestre, o sufoco diminuiu à vera. Recebi bolsa de 100%, e a PUC zerou minha dívida. De quebra, me concedeu vale-transporte e o direito de comer no bandejão sem desembolsar um centavo. Show de bola! Meu pai ainda me arrumou um mac usado. Computador bonzão! Um modelo foda de designer. Lembro que eu costumava levar marmita à faculdade antes de poder frequentar o bandejão de graça. Minha mãe preparava sempre a mesma comida: arroz, Miojo e tomate. De vez em quando, acrescentava um ovo, uma salsicha ou meia carne de hambúrguer. Eu morria de vergonha, filho! Receava que as gatinhas me flagrassem com um rango tão simplório. Por isso, preferia almoçar no bosque do campus, sozinho e longe da galera.
Embora me faltasse dinheiro, evitei trabalhar enquanto cursava a PUC. A maioria da playboyzada se dedicava integralmente à escola, correto? Então o cria da Rocinha iria se dedicar também. Eu sugava o máximo daquilo ali. Procurava não matar aula e fazer todas as atividades extraclasse. Mergulhei nos estudos como um herdeiro, tá ligado? Se bem que muito herdeiro mete o caô e apenas finge estudar… Só trampei durante o quarto semestre. Arranjei um estágio remunerado numa startup que fabricava cartões para presentes. Os caras me pagavam 1 mil reais por mês. Uma fortuna! A grana nunca acabava. Eu comprava biscoito recheado na hora que sentia vontade, mané! Olha o tamanho do luxo… A ironia é que entrei felizão no estágio e pulei fora mais feliz ainda. De início, aprendi macetes interessantes, mas depois… O serviço me enchia o saco. Foi um alívio quando avisaram que não iam renovar o meu contrato. “Puta que pariu, vou deixar a prisão”, festejei em silêncio. Pouco antes do estágio, fiz uma disciplina na faculdade com o professor Eduardo Berliner, um pintor maneiraço. Ele me apresentou o bê-a-bá da arte contemporânea. O papo do maluco virou minha cabeça do avesso. Hoje enxergo as aulas do Berliner como um divisor de águas. Daquele momento em diante, larguei gradativamente o plano de me tornar designer e botei cada vez mais lenha na ideia de abraçar a carreira artística. Não abdiquei do street, mas o meu relacionamento com a modalidade se alterou. O lado competitivo e o potencial econômico do esporte perderam força para mim. Eu agora queria associar a patinação à arte. Não por acaso, minhas primeiras pinturas nasceram de manobras com patins. Já ouviu falar de wallride? É um tipo de manobra em que o patinador desafia a gravidade e desliza sobre paredes. Um dia, tive a sacada de pintar enquanto realizava wallrides. Esparramei tinta látex pelo chão e fixei um pedaço de tela na parede. Depois, coloquei os patins, tomei distância e saí correndo. Passei em cima da tinta e mandei um wallride na parede. Vrum! Pegou a visão? As rodas dos patins funcionaram como pincéis e traçaram riscos aleatórios na tela. Repeti o movimento inúmeras vezes. As manobras geraram, assim, uma pintura abstrata. Usei a técnica para produzir outros trabalhos e batizei a série de Wallride paintings. Tudo rolou dentro de um edifício inacabado que ocupei com três colegas da PUC. Eles também estavam se afastando do design e tateando os códigos da arte contemporânea. Erguido entre as décadas de 1960 e 1970, o prédio fica em São Conrado, o mesmo bairro da Rocinha. Iria abrigar um hotel cinco estrelas, só que os empreiteiros vazaram antes de terminar a construção. Restou um elefante branco de dezesseis andares, que o povo apelidou de Esqueleto da Gávea. Lá montamos um ateliê, à semelhança de outros jovens. Imagine um lugar gigantesco, detonado e quase vazio. No Esqueleto, tínhamos liberdade e espaço para fazer experimentações ousadas. A gente adorava. Durante a faculdade, além de investir nas Wallride paintings, bolei uma intervenção urbana bem obsessiva. Eu admirava o Keith Haring, tá ligado? Aquele artista gráfico dos Estados Unidos que dialogava com a pop art e o grafite. O cara morreu em fevereiro de 1990 e ganhou fama por desenhar uns bonequinhos coloridos e estilizados. São imagens que bombam até hoje. Volta e meia, tu encontra os bonequinhos em pôsteres, adesivos e camisetas. Como o Haring inventou uma linguagem visual de fácil assimilação, entrei na pilha de copiar os personagens e espalhá-los não somente pelas ruas, mas também pelo campus da PUC. Eu os replicava às dezenas nas lousas das classes, no diretório acadêmico e nas colunas dos pilotis. Os estudantes não aguentavam mais trombar com os meus pastiches. Muitos torciam o nariz: “O Max pirou. Só vê graça em plagiar o Haring.” Eu não dava a mínima. Gostava de me exprimir daquela maneira simples e direta. Sem contar que os meus personagens não imitavam totalmente os originais – se distinguiam deles por estarem sempre com patins de street. Eu lançava mão de imagens populares para retratar um esporte nada popular, sacou? Misturei mainstream e underground num combo divertido e sagaz.
Em 2016, quando concluí a PUC, me vi perdidão. Caí no maior limbo, mané. Enquanto frequentava o campus, me distanciei bastante da Rocinha. Continuava morando ali, junto da minha mãe e dos meus irmãos, mas passava o dia inteiro na faculdade. Já não me vestia como os jovens do morro nem usava tanto as gírias da quebrada. Fiz amizade com o pessoal do asfalto e circulava por ambientes da burguesia. Em casa, minha mãe ensinava: “Quanto mais conhecimento tu adquirir, mais longe estará de Deus.” Na PUC, os alunos e professores rebatiam: “Evangélico aqui não se cria, porque o nosso Deus é o conhecimento.” Eu precisava negar a favela para conseguir levar os estudos adiante, tá ligado? Acontece que, no finalzinho do curso, a estratégia da negação desandou e parei de me sentir à vontade entre os playboys. Ficou estranho ser o único preto do rolê. Iniciei, então, um processo que chamei de “repatriação”: voltei de corpo e alma à Rocinha. Logo depois da formatura, me afastei dos amigos burgueses, não busquei emprego e decidi ter novamente uma rotina de favelado. Jogava futebol com os moleques da comunidade, dançava nos bailes funk, adotava o linguajar das ruas sem freios e andava descalço pelos becos. Minha mãe chiava: “Enlouqueceu, menino? Bota um chinelo!” Eu me lembrava de uma passagem bíblica que diz algo como “os loucos não errarão o caminho do Céu” e respondia: “Pode relaxar… Estou só garantindo a minha salvação.” Na laje de casa, improvisei um ateliezinho e me entreguei completamente à utopia de virar artista. Perdi a conta de quantas horas gastei lá em cima. A galera que estudava moda na PUC confeccionava moldes com algodão cru e papel pardo. Antes de deixar a faculdade, apanhei sobras desses materiais e guardei. O algodão e o papel serviram de suporte para os meus trabalhos na laje, assim como sacolas plásticas, lonas e sacos de areia. Eu fazia abstrações ou autorretratos e desenhava cenas da Rocinha, todas imaginadas a partir de situações que testemunhava: roupas secando no varal, crianças brincando de pique-esconde, adolescentes regressando da escola. Eu também escrevia uma caralhada de reflexões nos suportes. Em vez de tinta, usava giz de cera, lama, carvão, lodo, pó de tijolo e sujeira do chão. Minha mãe não entendia aquela vibe e me cobrava direto: “Qual é, Max? Chega de vagabundagem! Tu já terminou a faculdade. Cadê o dinheiro, cadê a cesta básica, cadê a ajuda? Vai cursar outra faculdade na laje?” Os manos da vizinhança seguiam a mesma toada e zombavam dos meus trampos: “O cara desenha com lama. Mó doidão!” Uma tarde, vi alguns dos garotos soltando pipas. Eles riam de mim sem desconfiar que também desenhavam de um jeito diferente. O zigue-zague das pipas embaixo do Sol escaldante parecia um desenho tão inusitado e bonito quanto os meus. Eu rechaçava o mundo da playboyzada, mas estava rodeado de incompreensão na favela. Não tinha para onde correr, sacou? Por isso, me julgava num limbo. Era um desterrado. Nem o morro, nem o asfalto me satisfaziam. Apesar dos pesares, valorizo demais tudo o que vivenciei na laje. Ali inaugurei quatro procedimentos que iriam marcar a primeira fase do meu trajeto artístico: a produção de autorretratos, o uso do papel pardo, a substituição das tintas convencionais por pigmentos alternativos e o ato de me expressar pictoricamente como quem toma notas.
Depois de uns meses, a chapa esquentou geral em casa. Minha mãe apertou o cerco e duplicou as cobranças: “Arrume logo um emprego, Max!” Injuriado, procurei o presidente da S.B.R. Rocinha Cultural Radical, uma ONG da comunidade que incentiva esportes com skate, bike e patins. “Estou precisando de um espaço para tocar as minhas paradas”, explanei. “Posso montar um ateliê na sede do projeto?” O maluco, que me conhecia do street, deu o sinal verde sem grandes dramas. Resultado: troquei a laje por uma área coberta e um pouco menor. No novo ateliê, me dediquei sobretudo à pintura. Embora continuasse entusiasta de pigmentos alternativos, também usava tintas serigráficas e vinílicas. O papel pardo se tornou, então, o meu principal suporte. Percebi que gostava muito dele tanto em termos plásticos quanto simbólicos. O material, barato e mundano, se adequava perfeitamente à minha pira de fazer autorretratos. A expressão “pardo”, tu sabe, tem um viés racial, já que designa os mestiços de origem africana ou indígena. Para mim, ecoa mais como uma tentativa de amenizar a negritude e até de ocultá-la. É um eufemismo sinistro, mané. Não à toa, me amarrei na ironia de usar o papel pardo em pinturas que reiteram a identidade negra. Com o tempo, os gestores do Complexo Esportivo da Rocinha, onde a S.B.R. se localiza, cansaram de mim. Reclamavam que eu usufruía do espaço, mas não oferecia nenhuma contrapartida. Senti que me queriam fora de lá. Na época, a galeria Carpintaria, do Rio, anunciou que iria promover uma exposição diferentona. A mostra coletiva não teria curadoria. Qualquer um poderia participar do bagulho. Os interessados entrariam na galeria por ordem de chegada e instalariam os próprios trabalhos. O acesso seria interrompido quando toda a área disponível estivesse ocupada. Havia, ainda, outra regra: a Carpintaria só aceitaria obras que conseguissem passar pela porta da frente. Claro que encarei aquilo como uma baita oportunidade. Afinal, não se tratava de uma galeria caída. Os donos da Carpintaria dirigem a prestigiosa Fortes D’Aloia & Gabriel, em São Paulo e Lisboa. De olho na exposição, concebi o painel Tão saudável quanto um carinho. A pintura, meu primeiro trabalho monumental em papel pardo, reflete sobre a relação da Polícia Militar com as crianças e os adolescentes das favelas. Levei uma semana para concluí-la, ainda dentro da S.B.R. Em 10 de agosto de 2017, cheguei de manhãzinha à Carpintaria. Era o sexto da fila. Enfiei o painel dobrado embaixo do braço e passei de boa pela porta da frente. Assim que abri a bagaça na galeria, os organizadores da mostra ficaram pistolas. Minha obra media 320 cm por 476 cm. Já a porta tinha 180 cm por 210 cm. “Tu não vai expor”, me disseram. “Tua pintura excedeu o tamanho permitido. Está maior do que a porta.” Eu retruquei na lata: “Está maior, mas conseguiu passar. Cumpri a regra! Vou expor, sim.” A treta correu solta até os proprietários da Carpintaria baterem o martelo e autorizarem minha participação. Foi então que o jogo mudou legal. O painel causou um tremendo auê. Todo mundo se surpreendeu – repórteres, críticos, outros artistas, o público e meus ex-professores da PUC. Uma colecionadora de renome manifestou a intenção de comprar a pintura. “Topa vender?”, me perguntaram os galeristas. “Topo! Por 45 mil reais…”, respondi. Eles explicaram que um principiante não deveria pedir tanto. Beleza. Vendi por 6 mil. Do dia para a noite, choveu burguês atrás de “um Maxwell Alexandre”. Não desdenhei da maré alta e negociei mais quatro ou cinco trampos. Em poucas semanas, faturei 30 mil reais, mano! Já podia deixar a S.B.R. e a casa da minha mãe. Resolvi morar de aluguel num predinho da Rocinha mesmo. O cafofo que descolei também abrigaria o meu ateliê. Os ventos permaneceram tão favoráveis que acabei alugando o prédio inteiro. Lá dispunha de assistentes, escritório, acervo e uma pequena galeria, em que exibia minhas criações e as de alguns colegas. Tu me desculpe o clichê, mas tive realmente uma ascensão meteórica. A partir de 2018, expus não apenas no Brasil como na França, na Espanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Tailândia e na África do Sul. Fiz residências artísticas em Londres e Marrakech. Abocanhei prêmios significativos e conquistei um mercado considerável. Não bastasse, entrei para as coleções de museus relevantes em São Paulo, Miami, Lyon, Abu Dhabi e no Rio. Hoje, possuo um ateliê parrudo, que emprega doze profissionais. Fica em São Cristóvão, o bairro da antiga família imperial, bem distante da Rocinha. Eu parei de viver na favela e me transferi para um endereço de bacana, onde divido um apezão de três dormitórios com minha mulher e a Goia. Das janelas, avisto o Pão de Açúcar, o Cristo Redentor e o Morro da Viúva. Uma paisagem estonteante, mané! A cereja do bolo é que concretizei um sonho de infância e virei sócio do Flamengo. Agora pratico natação no clube, em plena Gávea, um dos ninhos da elite carioca.
Quando decidi contratar assistentes, selecionei uns caras que pintavam à maneira tradicional. Eles não misturavam as tintas, por exemplo. Se estavam com o azul no pincel e queriam usar o amarelo, o que faziam? Nada muito complicado. Simplesmente limpavam o pincel até eliminarem todos os vestígios do azul e só então pegavam o amarelo. Eu não costumava trampar assim. Na minha onda de vincular a pintura canônica às veleidades da playboyzada, nem cogitava incorporar cuidados do tipo. Lambuzava o pincel de azul e depois de amarelo sem limpar porra nenhuma. Mas, à medida que trabalhava com os assistentes, percebia que meu olhar se modificava. Certas técnicas convencionais iam ganhando sentido. O amarelo de fato se tornava mais vibrante caso saísse de um pincel limpo. Foi nesse período que visitei o Museu do Prado e me fascinei pelo Goya. Eu já levava uma vida de playboy, sacou? Apê com vista para o Cristo, pé-direito alto, restaurantes chiques, aeroportos internacionais, piscina de ladrilho… Não tinha por que continuar renegando cor, luz, textura e forma nem esculhambando o Picasso ou o Botticelli. Lentamente, abandonei a pintura taquigráfica, de anotação, e aderi à clássica, menos ansiosa e de observação. Eu havia alcançado a prerrogativa de bancar o artista europeu do século xix que gastava o maior tempão diante de um lago para captar as nuances da cena. Mudar de condição social também acarretou uma guinada nos temas das minhas obras. O circuito de arte sempre me identificou como o preto que discorre sobre si próprio, a favela e a negritude. Com razão, né? As três séries de pintura que me notabilizaram – Reprovados, Pardo é papel e Novo poder – abordam mesmo esses assuntos. Surgi no momento certo, tá ligado? Críticos, marchands e colecionadores estavam ávidos pelos suvenires estéticos que ofereci. Houve, inclusive, quem tentasse colar em mim a pecha de ativista. Um erro crasso! Nunca desejei posar de ativista. O ativismo transita pelo terreno do profano. Já a arte pertence à esfera do sagrado. O artista deve experimentar, correr riscos, provocar o caos e plantar a dúvida em vez de se engessar numa causa. Não pretendo representar ninguém e tampouco salvar o “meu povo”. Todos os negros que pintei são apenas autorretratos, independentemente do gênero, da idade ou do ofício. Em 2024, lancei a série Clube e inaugurei a segunda fase da minha carreira. Estou interessado agora no corpo branco, o tópico mais celebrado e exaurido da arte ocidental. Desde que ascendi, circulo quase unicamente por redutos da branquitude. Meus galeristas e vizinhos são brancos. Minha mulher se considera branca. A Goia nasceu branca. Não vejo, portanto, nenhum cabimento em prosseguir na trilha anterior. Inúmeros brancos pintaram negros: Frans Post, Debret, Rugendas, Manet, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti… Mas quantos negros tu conhece que pintaram brancos? Se a branquitude me converteu em queridinho, então bora retratá-la. Alguém vai dizer que não posso? (revista piauí)
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sexta-feira, 1 de agosto de 2025 às 5:21 pm e categorizado como Reportagens.
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O cria que virou playboy
Como a ascensão social de Maxwell Alexandre mudou seu modo de pintar
Picasso, mané? Não é tão brabo quanto dizem. Consigo pintar de boa uns quadros como os do maluco. Velázquez, Botticelli, Van Gogh? Molezinha. Posso reproduzir os bagulhos dos caras também. Eu pensava mais ou menos desse jeito até pouco tempo. Imaginava à vera que daria conta de imitar os fodões da pintura, tá ligado? Não enxergava tantas qualidades na maioria da velha guarda que ocupa o panteão da arte. Considerava os sujeitos ruins, chatos, um negócio sem graça mesmo. Visitava museus famosos da Europa, tipo o Louvre, e passava rapidinho por aquela massa de obras antigas. Mano, que preguiça! Eu não prestava atenção em quase nada. As pinturas simplesmente não me emocionavam – sobretudo as realistas, que lembravam bolos de noiva em casamento de grã-fino. Sabe quando o bolo é tão perfeitinho que se torna cafona? Nem as feras vanguardistas, responsáveis por subverter o realismo a partir do século XIX, me animavam muito.
Para mim, todos os elementos que costumam mobilizar os pintores – a cor, a luz, a textura, a forma e o caralho – soavam como papo de playboy. Coisa de quem tem a vida ganha e o privilégio de se preocupar com detalhes. Uma parada distante da minha realidade. Preto, carioca e flamenguista de coração, nasci e me criei na favela da Rocinha. Sentia falta de mestres negros entre os medalhões que servem de farol para a pintura do Ocidente. Não satisfeito em desprezar a tradição, me julgava capaz de fazer o que os bambambãs fizeram.
Era uma indiferença soberba, tá ligado? Não se tratava de ignorância. Estudei sociologia da arte, história da arte e filosofia da arte quando cursei design na puc do Rio de Janeiro. Conhecia bem os códigos do universo artístico. Minha postura marrenta diante do cânone resultava mais de um espírito bastante competitivo e provocador, alguma ingenuidade, muito recalque e certa resistência para aceitar meus limites. Me recordo de colegas que, mesmo jovens, reverenciavam a pintura a óleo como se cultuassem uma santa. Eles pareciam beatos de novela. Acreditavam que é preciso ficar de joelhos antes de pintar e se entregavam fervorosamente àquele ritual de preparar a tela, iluminar a cena, combinar pigmentos e gerar uma paleta original de cores. Eu nunca me comportava assim. Caso não arranjasse telas, usava outros suportes. Se não descolava tinta a óleo, dava meus pulos com materiais alternativos: caneta esferográfica, graxa de sapato, carvão, betume… Caso quisesse um vermelho, aproveitava o que encontrava pela frente em vez de buscar o vermelho mais foda de toda a galáxia.
Não à toa, evitava me chamar de pintor, embora pinte desde que iniciei a carreira, há quase dez anos. Preferia definir meus trabalhos como anotações, taquigrafias. De que modo tu, um repórter, toma nota? Escrevendo, não é? Eu anotava por meio da pintura. Na hora de pintar, não apenas cagava para cor, luz, textura e forma. Também dispensava objetos de referência e modelos vivos. Pintava tudo de memória ou baseado na imaginação. Pá pum! Era um lance mais ligeiro, irreverente e descontraído.
Mas, de 2023 para cá, sinto que minha cabeça está mudando. Baixei as armas e compreendo cada vez melhor os “gênios dos pincéis”, o que acabou por alterar a maneira como pinto. Agora já não tenho pudores de admirar Cézanne ou Monet e me dizer pintor. Acho que minha percepção se transformou principalmente depois que vi as Pinturas negras, do espanhol Francisco de Goya, no Museu do Prado, em Madri. São catorze quadros sinistros! As obras fogem do realismo e exibem umas figuras esquisitas – ora fantasmagóricas, ora caricatas ou depressivas. Um troço impactante, que me remete à arte contemporânea. Goya produziu a série entre 1819 e 1823, com a técnica óleo a seco, nas paredes da casa onde morava, a Quinta del Sordo. Mais tarde, um restaurador tirou as imagens de lá e transferiu para as telas que o Museu do Prado se encarrega de preservar e expor.
Meses depois da viagem à Espanha, minha mulher, Raíssa Freire, engravidou de uma menina. Cogitamos batizar a criança de Sofia, mas desistimos. “Vamos procurar um nome menos comum. Que tal Magnólia?”, propôs Raíssa. Não… “E Pedra?”, sugeri. Também não… Um dia, me ocorreu chamar a bebê de Goia, justamente por causa do pintor. Só que, no lugar do y, pensei em botar um i. Raíssa não se empolgou. Decidimos, então, fazer uma brincadeira. Coloquei a mão no ventre de Raíssa e falei: “Tu vai escolher o teu nome, filha.” Apresentei as várias possibilidades – Sofia, Magnólia, Pedra – e nada. Assim que mencionei Goia, a garota meteu um chutão na barriga de Raíssa. Pronto! Ficou Goia. Ela é nossa primeira filha e comemorou 1 aninho em junho.
Por que o modo como encaro a pintura se modificou tanto? O que estava rolando comigo quando visitei Madri e me liguei na grandeza do Goya? Para responder às perguntas, tenho que contar mais da minha história. Eu nunca quis bater ponto, mané. Já na infância, rejeitava a ideia de levar uma vida banal. Não sonhava em arrumar um bom emprego, usar gravata, financiar apartamento e nananã. Questionava tudo: a desigualdade social, a truculência da polícia, a via-crúcis dos negros. Observava a rotina árdua da minha mãe, uma carioca com antepassados mineiros, e me entristecia. A coitada trabalhava de empregada doméstica para as madames da Zona Sul enquanto cuidava de três filhos. Hoje vive relativamente tranquila em Cachoeiras de Macacu, na Região Metropolitana do Rio. O corre do meu pai também não me encantava. Pernambucano, o velho trampava como pintor automotivo na Rocinha. Depois, arranjou outra família e se mudou para São Paulo, onde abriu uma funilaria. Morreu de câncer em 2016.
Meu cotidiano se parecia com o de trocentos moleques da favela. Eu frequentava cultos da igreja evangélica, estudava em colégio público, jogava muito videogame e passava horas diante da tevê. Era fã de animes, os desenhos animados japoneses. Para faturar uma grana, pegava o lixo de estabelecimentos comerciais e descartava nas lixeiras da Rocinha ou tomava conta de carros em volta do shopping Fashion Mall, vizinho à comunidade. Levava, portanto, a vida banal que desejava evitar.
Sorte que minha imaginação voava longe e me convertia num super-herói, num guerreiro sempre à caça de aventuras. Eu criava os meus próprios desafios, tá ligado? Vou pular mais alto que toda a galera da rua, vou ganhar de geral na corrida, vou trocar soco com sei lá quem. Por isso, levantava bem cedo e malhava sem dó. Não tinha papo de judô, caratê ou jiu-jítsu. Ninguém me matriculou nessas porras, não. Eu treinava sozinho. Até que consegui entrar na capoeira e aprendi golpes alucinantes. Girava rapidão, saltava como gato e distribuía pernadas de responsa. Um tempinho depois, à beira dos 14 anos, virei patinador por influência do Shadow. Conhece o Shadow, né? O personagem do videogame Sonic. Ele é um ouriço preto e vermelho que se locomove com patins-foguetes. Bicho doido dos infernos! Na patinação, logo me interessei pelo street, modalidade em que os atletas realizam um punhado de manobras radicais. Praticar esporte se tornou uma válvula de escape, sacou? O jeito que encontrei de driblar um pouco o banal.
Eu também gostava de desenhar. Não podia ver lápis e papel que já saía rabiscando. “Tu ganhou um presente de Deus: a mão boa para o desenho”, elogiava minha mãe. A Turma da Mônica me fascinava tanto que resolvi bancar o Mauricio de Sousa e inventei a Turma do Pedrinho. Meus colegas de escola se amarravam na parada. Eu fazia HQs com a Turma do Pedrinho e vendia durante o recreio. Mó sucesso! Desenhar se transformou em outra válvula de escape, além de me garantir uns trocos.
Assim que completei 18 anos, precisei servir nas Forças Armadas. Os milicos me enviaram para o Forte de Copacabana, onde ralei por dez meses. Ali funciona o Museu Histórico do Exército, tá ligado? Chuta qual atribuição recebi dos comandantes. Zelar pela reserva técnica do museu! Ou melhor: catalogar, higienizar e transladar os bagulhos. Eram os verbos que os oficiais costumavam empregar quando me ordenavam algo. Em vez de falarem “limpe aquele quadro” ou “mude aquela espada de lugar”, diziam “higienize o quadro” e “translade a espada”. Comédia demais… Pajear o acervo acabou se revelando uma experiência importante. Foi meu primeiro contato com o rolê museológico.
Na adolescência, por incrível que pareça, considerei a possibilidade de seguir carreira militar. Eu desconfiava da polícia, mas curtia o Exército. Queria guerrear, defender a nação, aterrorizar os inimigos. Um troço bem masculino, bem macho alfa, que casava com minha ânsia de afugentar o banal. No Forte de Copacabana, porém, a realidade se impôs e atropelou a fantasia. A lida de recruta não tinha nada de aventuresca. Nem tiro me deixavam dar, mané. Se não me engano, disparei apenas três, de calibre 12. Lógico que abandonei depressinha a hipótese de, um dia, vestir casaco de general.
Frustrações à parte, ainda hoje aprecio certos valores do Exército. O lance da disciplina, por exemplo. No quartel, tu acorda às cinco da manhã, faz a barba, mete o uniforme e já vai para o pátio. O comandante inspeciona a tropa com lupa. Se tu não estiver impecável, toma esculacho. Se tu vacilar numa atividade em grupo, todo mundo paga vinte flexões de braço gritando teu nome: “Obrigado, Maxwell!” Confesso que tamanho rigor me agradava. Na favela, a gente cresce muito solto, muito sem hierarquia. A desordem impera: menorzinho em boca de fumo, som alto madrugada afora, moto zunindo pelas vielas. Beleza, é a cultura da quebrada e há uma porção de coisas maneiras que derivam de tanta anarquia. Pena que também haja um monte de coisas horríveis… O Exército põe os recos nos trilhos, sacou? Conheço uma porrada de jovem zoado que lucraria bastante se passasse uma temporada dentro de um quartel. O que estou dizendo talvez soe bizarro para um playboy de esquerda. Mas o fato é que só me tornei um sujeito disciplinado por causa do esporte, da religião e do Exército, os três pilares em que me apoiei quando moleque.
Na minha época de colégio público, não conseguia entender a brisa dos alunos que mal terminavam o ensino médio e já prestavam vestibular. Cursar faculdade para quê? Nenhum dos meus vizinhos ou familiares cursou. Eu não botava fé naquele blá-blá-blá de que diploma superior tira o pobre da merda. Foi um amigo que me abriu os olhos: “Não viaja, mano! Faculdade pode valer a pena, sim!” O cara, branco, estudava marketing na PUC e estava tranquilão. Eu, em contrapartida, me sentia à deriva. Embora tivesse desencanado da carreira militar, ainda servia no Forte de Copacabana. Para onde iria depois que me livrasse do quartel? “Faculdade, rapá! É o jeito. Tu devia tentar uma baratinha”, teimava o meu amigo. Ele buzinou tanto na minha orelha que me convenceu. “Demorô! Vou encarar a bucha, mas nada de faculdade barata, paizão! Quero entrar na PUC, como tu. Impossível?”
Meu amigo explicou que a PUC oferecia bolsas para estudantes de baixa renda. “Só que o vestibular de lá é pedreira”, avisou. Mesmo assim, não me acovardei e, quando zarpei do Exército, procurei um cursinho social que rolava numa favela do Leblon, a Cruzada São Sebastião. Por gostar de desenhar, resolvi fazer design. Eu continuava patinando e me destacava nas competições de street. Venci diversas, inclusive. Virei uma referência naquele universo, tá ligado? Apareci em capa de jornal e programas de televisão, tipo Encontro com Fátima Bernardes. O problema é que a bagaça não rendia um puto. Faltavam premiações em dinheiro e mais patrocinadores. Me bateu, então, o desejo de fortalecer o street no Brasil – de agitar a cena para deixá-la tão pujante quanto a do skate. Eu pretendia, entre outras paradas, organizar novos campeonatos, criar marcas de patins ou roupas esportivas e divulgar toda a cultura que gira em torno da modalidade. O design certamente me ajudaria nessa tarefa.
O cursinho social custava merreca. Uns 30 contos por mês. Como ninguém aliviava o meu lado, tratei de correr atrás do capital. Fui trampar com van nos fins de semana. Acordava às três da madruga e voava para o ponto. Minha função principal? Recolher a grana das passagens durante os trajetos. Eu também precisava berrar o itinerário na porta da van: “Copacabana – Leme!” Às vezes, o motorista ficava boladão e me pressionava: “Grita mais alto, pô! Vamos lotar a porra da van!” Outro bagulho que me atazanava, mané: o troco. Caraca! Que perrengue! Eu tinha que arrasar na matemática para não confundir o troco da rapaziada.
Em 2011, com 20 anos, finalmente marquei o gol. Depois de enfrentar o temido vestibular, ingressei na PUC, mas não descolei bolsa logo de cara. Passei o primeiro semestre agoniado. Não paguei nenhum boleto e fiquei devendo mais de 12 mil reais para a faculdade. No segundo semestre, o sufoco diminuiu à vera. Recebi bolsa de 100%, e a PUC zerou minha dívida. De quebra, me concedeu vale-transporte e o direito de comer no bandejão sem desembolsar um centavo. Show de bola! Meu pai ainda me arrumou um mac usado. Computador bonzão! Um modelo foda de designer.
Lembro que eu costumava levar marmita à faculdade antes de poder frequentar o bandejão de graça. Minha mãe preparava sempre a mesma comida: arroz, Miojo e tomate. De vez em quando, acrescentava um ovo, uma salsicha ou meia carne de hambúrguer. Eu morria de vergonha, filho! Receava que as gatinhas me flagrassem com um rango tão simplório. Por isso, preferia almoçar no bosque do campus, sozinho e longe da galera.
Embora me faltasse dinheiro, evitei trabalhar enquanto cursava a PUC. A maioria da playboyzada se dedicava integralmente à escola, correto? Então o cria da Rocinha iria se dedicar também. Eu sugava o máximo daquilo ali. Procurava não matar aula e fazer todas as atividades extraclasse. Mergulhei nos estudos como um herdeiro, tá ligado? Se bem que muito herdeiro mete o caô e apenas finge estudar…
Só trampei durante o quarto semestre. Arranjei um estágio remunerado numa startup que fabricava cartões para presentes. Os caras me pagavam 1 mil reais por mês. Uma fortuna! A grana nunca acabava. Eu comprava biscoito recheado na hora que sentia vontade, mané! Olha o tamanho do luxo… A ironia é que entrei felizão no estágio e pulei fora mais feliz ainda. De início, aprendi macetes interessantes, mas depois… O serviço me enchia o saco. Foi um alívio quando avisaram que não iam renovar o meu contrato. “Puta que pariu, vou deixar a prisão”, festejei em silêncio.
Pouco antes do estágio, fiz uma disciplina na faculdade com o professor Eduardo Berliner, um pintor maneiraço. Ele me apresentou o bê-a-bá da arte contemporânea. O papo do maluco virou minha cabeça do avesso. Hoje enxergo as aulas do Berliner como um divisor de águas. Daquele momento em diante, larguei gradativamente o plano de me tornar designer e botei cada vez mais lenha na ideia de abraçar a carreira artística.
Não abdiquei do street, mas o meu relacionamento com a modalidade se alterou. O lado competitivo e o potencial econômico do esporte perderam força para mim. Eu agora queria associar a patinação à arte. Não por acaso, minhas primeiras pinturas nasceram de manobras com patins. Já ouviu falar de wallride? É um tipo de manobra em que o patinador desafia a gravidade e desliza sobre paredes. Um dia, tive a sacada de pintar enquanto realizava wallrides. Esparramei tinta látex pelo chão e fixei um pedaço de tela na parede. Depois, coloquei os patins, tomei distância e saí correndo. Passei em cima da tinta e mandei um wallride na parede. Vrum! Pegou a visão? As rodas dos patins funcionaram como pincéis e traçaram riscos aleatórios na tela. Repeti o movimento inúmeras vezes. As manobras geraram, assim, uma pintura abstrata. Usei a técnica para produzir outros trabalhos e batizei a série de Wallride paintings.
Tudo rolou dentro de um edifício inacabado que ocupei com três colegas da PUC. Eles também estavam se afastando do design e tateando os códigos da arte contemporânea. Erguido entre as décadas de 1960 e 1970, o prédio fica em São Conrado, o mesmo bairro da Rocinha. Iria abrigar um hotel cinco estrelas, só que os empreiteiros vazaram antes de terminar a construção. Restou um elefante branco de dezesseis andares, que o povo apelidou de Esqueleto da Gávea. Lá montamos um ateliê, à semelhança de outros jovens. Imagine um lugar gigantesco, detonado e quase vazio. No Esqueleto, tínhamos liberdade e espaço para fazer experimentações ousadas. A gente adorava.
Durante a faculdade, além de investir nas Wallride paintings, bolei uma intervenção urbana bem obsessiva. Eu admirava o Keith Haring, tá ligado? Aquele artista gráfico dos Estados Unidos que dialogava com a pop art e o grafite. O cara morreu em fevereiro de 1990 e ganhou fama por desenhar uns bonequinhos coloridos e estilizados. São imagens que bombam até hoje. Volta e meia, tu encontra os bonequinhos em pôsteres, adesivos e camisetas. Como o Haring inventou uma linguagem visual de fácil assimilação, entrei na pilha de copiar os personagens e espalhá-los não somente pelas ruas, mas também pelo campus da PUC. Eu os replicava às dezenas nas lousas das classes, no diretório acadêmico e nas colunas dos pilotis. Os estudantes não aguentavam mais trombar com os meus pastiches. Muitos torciam o nariz: “O Max pirou. Só vê graça em plagiar o Haring.” Eu não dava a mínima. Gostava de me exprimir daquela maneira simples e direta. Sem contar que os meus personagens não imitavam totalmente os originais – se distinguiam deles por estarem sempre com patins de street. Eu lançava mão de imagens populares para retratar um esporte nada popular, sacou? Misturei mainstream e underground num combo divertido e sagaz.
Em 2016, quando concluí a PUC, me vi perdidão. Caí no maior limbo, mané. Enquanto frequentava o campus, me distanciei bastante da Rocinha. Continuava morando ali, junto da minha mãe e dos meus irmãos, mas passava o dia inteiro na faculdade. Já não me vestia como os jovens do morro nem usava tanto as gírias da quebrada. Fiz amizade com o pessoal do asfalto e circulava por ambientes da burguesia. Em casa, minha mãe ensinava: “Quanto mais conhecimento tu adquirir, mais longe estará de Deus.” Na PUC, os alunos e professores rebatiam: “Evangélico aqui não se cria, porque o nosso Deus é o conhecimento.” Eu precisava negar a favela para conseguir levar os estudos adiante, tá ligado? Acontece que, no finalzinho do curso, a estratégia da negação desandou e parei de me sentir à vontade entre os playboys. Ficou estranho ser o único preto do rolê.
Iniciei, então, um processo que chamei de “repatriação”: voltei de corpo e alma à Rocinha. Logo depois da formatura, me afastei dos amigos burgueses, não busquei emprego e decidi ter novamente uma rotina de favelado. Jogava futebol com os moleques da comunidade, dançava nos bailes funk, adotava o linguajar das ruas sem freios e andava descalço pelos becos. Minha mãe chiava: “Enlouqueceu, menino? Bota um chinelo!” Eu me lembrava de uma passagem bíblica que diz algo como “os loucos não errarão o caminho do Céu” e respondia: “Pode relaxar… Estou só garantindo a minha salvação.”
Na laje de casa, improvisei um ateliezinho e me entreguei completamente à utopia de virar artista. Perdi a conta de quantas horas gastei lá em cima. A galera que estudava moda na PUC confeccionava moldes com algodão cru e papel pardo. Antes de deixar a faculdade, apanhei sobras desses materiais e guardei. O algodão e o papel serviram de suporte para os meus trabalhos na laje, assim como sacolas plásticas, lonas e sacos de areia. Eu fazia abstrações ou autorretratos e desenhava cenas da Rocinha, todas imaginadas a partir de situações que testemunhava: roupas secando no varal, crianças brincando de pique-esconde, adolescentes regressando da escola. Eu também escrevia uma caralhada de reflexões nos suportes. Em vez de tinta, usava giz de cera, lama, carvão, lodo, pó de tijolo e sujeira do chão.
Minha mãe não entendia aquela vibe e me cobrava direto: “Qual é, Max? Chega de vagabundagem! Tu já terminou a faculdade. Cadê o dinheiro, cadê a cesta básica, cadê a ajuda? Vai cursar outra faculdade na laje?” Os manos da vizinhança seguiam a mesma toada e zombavam dos meus trampos: “O cara desenha com lama. Mó doidão!” Uma tarde, vi alguns dos garotos soltando pipas. Eles riam de mim sem desconfiar que também desenhavam de um jeito diferente. O zigue-zague das pipas embaixo do Sol escaldante parecia um desenho tão inusitado e bonito quanto os meus.
Eu rechaçava o mundo da playboyzada, mas estava rodeado de incompreensão na favela. Não tinha para onde correr, sacou? Por isso, me julgava num limbo. Era um desterrado. Nem o morro, nem o asfalto me satisfaziam.
Apesar dos pesares, valorizo demais tudo o que vivenciei na laje. Ali inaugurei quatro procedimentos que iriam marcar a primeira fase do meu trajeto artístico: a produção de autorretratos, o uso do papel pardo, a substituição das tintas convencionais por pigmentos alternativos e o ato de me expressar pictoricamente como quem toma notas.
Depois de uns meses, a chapa esquentou geral em casa. Minha mãe apertou o cerco e duplicou as cobranças: “Arrume logo um emprego, Max!” Injuriado, procurei o presidente da S.B.R. Rocinha Cultural Radical, uma ONG da comunidade que incentiva esportes com skate, bike e patins. “Estou precisando de um espaço para tocar as minhas paradas”, explanei. “Posso montar um ateliê na sede do projeto?” O maluco, que me conhecia do street, deu o sinal verde sem grandes dramas. Resultado: troquei a laje por uma área coberta e um pouco menor.
No novo ateliê, me dediquei sobretudo à pintura. Embora continuasse entusiasta de pigmentos alternativos, também usava tintas serigráficas e vinílicas. O papel pardo se tornou, então, o meu principal suporte. Percebi que gostava muito dele tanto em termos plásticos quanto simbólicos. O material, barato e mundano, se adequava perfeitamente à minha pira de fazer autorretratos. A expressão “pardo”, tu sabe, tem um viés racial, já que designa os mestiços de origem africana ou indígena. Para mim, ecoa mais como uma tentativa de amenizar a negritude e até de ocultá-la. É um eufemismo sinistro, mané. Não à toa, me amarrei na ironia de usar o papel pardo em pinturas que reiteram a identidade negra.
Com o tempo, os gestores do Complexo Esportivo da Rocinha, onde a S.B.R. se localiza, cansaram de mim. Reclamavam que eu usufruía do espaço, mas não oferecia nenhuma contrapartida. Senti que me queriam fora de lá. Na época, a galeria Carpintaria, do Rio, anunciou que iria promover uma exposição diferentona. A mostra coletiva não teria curadoria. Qualquer um poderia participar do bagulho. Os interessados entrariam na galeria por ordem de chegada e instalariam os próprios trabalhos. O acesso seria interrompido quando toda a área disponível estivesse ocupada. Havia, ainda, outra regra: a Carpintaria só aceitaria obras que conseguissem passar pela porta da frente.
Claro que encarei aquilo como uma baita oportunidade. Afinal, não se tratava de uma galeria caída. Os donos da Carpintaria dirigem a prestigiosa Fortes D’Aloia & Gabriel, em São Paulo e Lisboa. De olho na exposição, concebi o painel Tão saudável quanto um carinho. A pintura, meu primeiro trabalho monumental em papel pardo, reflete sobre a relação da Polícia Militar com as crianças e os adolescentes das favelas. Levei uma semana para concluí-la, ainda dentro da S.B.R.
Em 10 de agosto de 2017, cheguei de manhãzinha à Carpintaria. Era o sexto da fila. Enfiei o painel dobrado embaixo do braço e passei de boa pela porta da frente. Assim que abri a bagaça na galeria, os organizadores da mostra ficaram pistolas. Minha obra media 320 cm por 476 cm. Já a porta tinha 180 cm por 210 cm. “Tu não vai expor”, me disseram. “Tua pintura excedeu o tamanho permitido. Está maior do que a porta.” Eu retruquei na lata: “Está maior, mas conseguiu passar. Cumpri a regra! Vou expor, sim.” A treta correu solta até os proprietários da Carpintaria baterem o martelo e autorizarem minha participação.
Foi então que o jogo mudou legal. O painel causou um tremendo auê. Todo mundo se surpreendeu – repórteres, críticos, outros artistas, o público e meus ex-professores da PUC. Uma colecionadora de renome manifestou a intenção de comprar a pintura. “Topa vender?”, me perguntaram os galeristas. “Topo! Por 45 mil reais…”, respondi. Eles explicaram que um principiante não deveria pedir tanto. Beleza. Vendi por 6 mil.
Do dia para a noite, choveu burguês atrás de “um Maxwell Alexandre”. Não desdenhei da maré alta e negociei mais quatro ou cinco trampos. Em poucas semanas, faturei 30 mil reais, mano! Já podia deixar a S.B.R. e a casa da minha mãe. Resolvi morar de aluguel num predinho da Rocinha mesmo. O cafofo que descolei também abrigaria o meu ateliê. Os ventos permaneceram tão favoráveis que acabei alugando o prédio inteiro. Lá dispunha de assistentes, escritório, acervo e uma pequena galeria, em que exibia minhas criações e as de alguns colegas. Tu me desculpe o clichê, mas tive realmente uma ascensão meteórica.
A partir de 2018, expus não apenas no Brasil como na França, na Espanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Tailândia e na África do Sul. Fiz residências artísticas em Londres e Marrakech. Abocanhei prêmios significativos e conquistei um mercado considerável. Não bastasse, entrei para as coleções de museus relevantes em São Paulo, Miami, Lyon, Abu Dhabi e no Rio.
Hoje, possuo um ateliê parrudo, que emprega doze profissionais. Fica em São Cristóvão, o bairro da antiga família imperial, bem distante da Rocinha. Eu parei de viver na favela e me transferi para um endereço de bacana, onde divido um apezão de três dormitórios com minha mulher e a Goia. Das janelas, avisto o Pão de Açúcar, o Cristo Redentor e o Morro da Viúva. Uma paisagem estonteante, mané! A cereja do bolo é que concretizei um sonho de infância e virei sócio do Flamengo. Agora pratico natação no clube, em plena Gávea, um dos ninhos da elite carioca.
Quando decidi contratar assistentes, selecionei uns caras que pintavam à maneira tradicional. Eles não misturavam as tintas, por exemplo. Se estavam com o azul no pincel e queriam usar o amarelo, o que faziam? Nada muito complicado. Simplesmente limpavam o pincel até eliminarem todos os vestígios do azul e só então pegavam o amarelo. Eu não costumava trampar assim. Na minha onda de vincular a pintura canônica às veleidades da playboyzada, nem cogitava incorporar cuidados do tipo. Lambuzava o pincel de azul e depois de amarelo sem limpar porra nenhuma.
Mas, à medida que trabalhava com os assistentes, percebia que meu olhar se modificava. Certas técnicas convencionais iam ganhando sentido. O amarelo de fato se tornava mais vibrante caso saísse de um pincel limpo. Foi nesse período que visitei o Museu do Prado e me fascinei pelo Goya. Eu já levava uma vida de playboy, sacou? Apê com vista para o Cristo, pé-direito alto, restaurantes chiques, aeroportos internacionais, piscina de ladrilho… Não tinha por que continuar renegando cor, luz, textura e forma nem esculhambando o Picasso ou o Botticelli. Lentamente, abandonei a pintura taquigráfica, de anotação, e aderi à clássica, menos ansiosa e de observação. Eu havia alcançado a prerrogativa de bancar o artista europeu do século xix que gastava o maior tempão diante de um lago para captar as nuances da cena.
Mudar de condição social também acarretou uma guinada nos temas das minhas obras. O circuito de arte sempre me identificou como o preto que discorre sobre si próprio, a favela e a negritude. Com razão, né? As três séries de pintura que me notabilizaram – Reprovados, Pardo é papel e Novo poder – abordam mesmo esses assuntos. Surgi no momento certo, tá ligado? Críticos, marchands e colecionadores estavam ávidos pelos suvenires estéticos que ofereci. Houve, inclusive, quem tentasse colar em mim a pecha de ativista. Um erro crasso! Nunca desejei posar de ativista. O ativismo transita pelo terreno do profano. Já a arte pertence à esfera do sagrado. O artista deve experimentar, correr riscos, provocar o caos e plantar a dúvida em vez de se engessar numa causa. Não pretendo representar ninguém e tampouco salvar o “meu povo”. Todos os negros que pintei são apenas autorretratos, independentemente do gênero, da idade ou do ofício.
Em 2024, lancei a série Clube e inaugurei a segunda fase da minha carreira. Estou interessado agora no corpo branco, o tópico mais celebrado e exaurido da arte ocidental. Desde que ascendi, circulo quase unicamente por redutos da branquitude. Meus galeristas e vizinhos são brancos. Minha mulher se considera branca. A Goia nasceu branca. Não vejo, portanto, nenhum cabimento em prosseguir na trilha anterior. Inúmeros brancos pintaram negros: Frans Post, Debret, Rugendas, Manet, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti… Mas quantos negros tu conhece que pintaram brancos? Se a branquitude me converteu em queridinho, então bora retratá-la. Alguém vai dizer que não posso?
(revista piauí)
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-cria-que-virou-playboy/
Publicado sexta-feira, 1 de agosto de 2025 às 5:21 pm e categorizado como Reportagens. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.