O massacre do Carandiru, nas pinturas de um sobrevivente
Em outubro de 1992, Luiz Paulino tinha 25 anos e cumpria pena na Casa de Detenção, presídio da Zona Norte paulistana conhecido por Carandiru. A alcunha coincidia com o nome do bairro onde ficava o complexo penitenciário, o maior da América Latina. Cerca de 7 250 prisioneiros se espremiam ali, número muito superior à capacidade máxima da cadeia. Embora integrasse uma família evangélica, Paulino – que nasceu em Presidente Bernardes (SP) e ganhou o apelido de Bizil ainda garoto – não seguia a religião desde adolescente, quando enveredou pelo crime. Nunca renegou a fé cristã, mas preferia manter distância da Bíblia, dos pastores e dos cultos. Mesmo se considerando uma ovelha desgarrada, acreditou que “o Senhor” lhe enviou duas mensagens naquele terrível mês de outubro. A primeira chegou em sonho. “Um portão imenso e reluzente se abriu no Carandiru. Enfileirados, centenas de homens atravessavam o portão e desapareciam”, relembra Bizil. “Interpretei as imagens como um alerta de que algo relevante estava por acontecer.” O sonho se deu na madrugada do dia 2, véspera de eleições municipais. Pela manhã, ocorreu uma briga “entre o Barba e o Coelho”, detentos que ocupavam o pavilhão 9, destinado tanto para condenados quanto para quem aguardava julgamento. O bafafá eclodiu no horário do banho de Sol. “Por causa da confusão, os funcionários da bagaça encresparam. Quiseram botar a gente de volta no xadrez, e a chapa esquentou. ‘Qualé?!’, gritamos. ‘Não vamos aceitar, não! Perder o banho de Sol apenas porque o Barba e o Coelho resolveram tretar?!’” Rapidamente, o protesto virou motim. Tropas da Polícia Militar, sob o comando do coronel Ubiratan Guimarães, invadiram a penitenciária, dispararam pelo menos 3,5 mil tiros e mataram 111 detentos. O massacre se tornou o episódio mais sangrento da história carcerária brasileira. No quinto andar do pavilhão 9, Bizil dividia a cela 531-E com sete prisioneiros. “Eram seis rapazes de Piracicaba e o meu tio, que também praticou uns procedimentos ilícitos.” Os oito estavam no corredor quando os policiais surgiram. “Se a gente continuasse zanzando fora da cela, as tropas iam fuzilar todo mundo. Por isso, entramos de novo no xadrez. Para dificultar a ação dos PMs, espalhamos água e óleo de cozinha pelo chão. Logo depois, tiramos a roupa e nos deitamos de bruços em cima daquela lambuzeira, com as mãos sobre a cabeça.” A posição indicava que os encarcerados não pretendiam oferecer resistência. “Já perto da nossa cela, um dos policiais berrou: ‘Levanta, ô, Zé!’ Obedeci, e o maluco sentou o dedo na matraca. Só que a arma falhou, acredita? O sujeito, decepcionado, me mandou deixar o xadrez: ‘Pisa no veludo, Zé! Vai andando devagarinho.’” Foi então que Bizil recebeu o segundo aviso divino. “Meu espírito despencou num abismo bem escuro. À minha volta, inúmeros PMs babavam, possessos. Os caras tinham rabos de leão. ‘Seja corajoso’, rogou uma voz que brotava do além. ‘Você vai presenciar coisas horrorosas, mas não vai perecer.’” De fato, Bizil cruzou o inferno – ou Hades, como costuma dizer – enquanto caminhava do pavilhão 9 até o pátio sob a mira da polícia. “Vi soldados jogando corpos de presos no fosso do elevador e em caminhões de lixo. Escutei gente suplicando por misericórdia, levei muita porrada e senti o bafo assombroso da morte.” Mesmo assim, sobreviveu, à semelhança dos demais parceiros de cela. O governo estadual desativou o Carandiru uma década depois do massacre, em 2002. Hoje, na área do complexo, se encontra o Parque da Juventude. Nenhum dos 74 policiais condenados pela chacina amargou um único dia de prisão. Passados trinta anos da matança, em dezembro de 2022, o presidente Jair Bolsonaro assinou um indulto natalino para extinguir a pena de todos eles. O Tribunal de Justiça de São Paulo ratificou o perdão.
Filho de um mestre de obras e uma dona de casa, Bizil se define como pardo. “Meu pai é branco dos olhos azuis. Minha mãe, que já morreu, tinha sangue indígena.” A família trocou o interior pela capital paulista na década de 1970. Para engrossar o orçamento doméstico, Bizil trabalhava quando criança. “Eu carregava mercadoria em feiras de rua e vendia samambaia no Viaduto do Chá. A polícia, que detesta pobre, sempre me esculachava: ‘Você está de vadiagem. Vai em cana!’ Me recolheram tantas vezes que pensei: ‘Honestidade não adianta nada. Deixa a vida me levar.’” Ele cometeu os primeiros furtos ainda na adolescência. Depois, virou assaltante. Uma rixa entre quadrilhas fez com que assassinasse dois rivais. “Peguei 27 anos de cadeia, mas o juiz diminuiu a bronca para 25. Baixei no Carandiru em março de 1986 e mofei por lá até 1999. Uma pedreira! Pura neurose…” Completou a pena no regime semiaberto e nunca mais transgrediu a lei. “Sabe qual a pior facção do país? O Estado, que empurra o cidadão para o desvario, para a bandidagem, porque aliena a galera com um salário mínimo de fome, escola pública ruim e serviço médico de quinta. Assim que conquistei a liberdade, resolvi não dar sopa de novo. Prometi que o Estado criminoso jamais ia colocar as garras em cima de mim outra vez.” Na prisão, Bizil teve aulas de pintura. Também aprendeu a esculpir em madeira e terminou um curso por correspondência de desenho publicitário. Quando deixou o Carandiru, começou uma frutífera carreira artística. De quebra, concluiu o ensino básico e três faculdades, “todas presenciais”: teologia, direito e pedagogia. Talvez por isso se expresse de um jeito muito próprio. Ora recorre às gírias da quebrada, ora adota um linguajar mais rebuscado. Enquanto viveu “entre as grades”, não se reaproximou da liturgia evangélica, mesmo depois de receber “as duas mensagens dos Céus”. “Só retornei às Escrituras Sagradas fora do xadrez.” Casado há quase três décadas, mora numa chácara em Francisco Morato, na Grande São Paulo, participa de um grupo que acolhe dependentes químicos, frequenta a Assembleia de Deus e batizou os quatro filhos com nomes bíblicos: Melquisedeque, Rebeca, Miqueias e Joquebede. “Meu lema agora é foco, força e fé.” À medida que o tempo avança, Bizil tem cada vez mais certeza de que não escapou por acaso da selvageria no Carandiru. “Saí ileso para impedir que a memória daquela barbárie se apague. A Constituição determina que o Estado ressocialize os presos. A PM não pode simplesmente invadir uma penitenciária e passar fogo.” Desde que alcançou o regime semiaberto, em 2000, o sobrevivente de 58 anos pinta o que testemunhou no dia 2 de outubro de 1992. Ele afirma que vende a maioria dos quadros para colecionadores do Brasil e de outros países – “China, Estados Unidos, México, Itália…” Até o início de julho, o Solar dos Abacaxis, no Rio de Janeiro, abrigou uma exposição com 25 pinturas de Bizil sobre o massacre. “Já nem sei quantas produzi. Trezentas? Quinhentas? Sei apenas que não cogito parar.” (revista piauí)
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terça-feira, 1 de julho de 2025 às 12:52 pm e categorizado como Reportagens.
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Retratos do inferno
O massacre do Carandiru, nas pinturas de um sobrevivente
Em outubro de 1992, Luiz Paulino tinha 25 anos e cumpria pena na Casa de Detenção, presídio da Zona Norte paulistana conhecido por Carandiru. A alcunha coincidia com o nome do bairro onde ficava o complexo penitenciário, o maior da América Latina. Cerca de 7 250 prisioneiros se espremiam ali, número muito superior à capacidade máxima da cadeia. Embora integrasse uma família evangélica, Paulino – que nasceu em Presidente Bernardes (SP) e ganhou o apelido de Bizil ainda garoto – não seguia a religião desde adolescente, quando enveredou pelo crime. Nunca renegou a fé cristã, mas preferia manter distância da Bíblia, dos pastores e dos cultos. Mesmo se considerando uma ovelha desgarrada, acreditou que “o Senhor” lhe enviou duas mensagens naquele terrível mês de outubro.
A primeira chegou em sonho. “Um portão imenso e reluzente se abriu no Carandiru. Enfileirados, centenas de homens atravessavam o portão e desapareciam”, relembra Bizil. “Interpretei as imagens como um alerta de que algo relevante estava por acontecer.” O sonho se deu na madrugada do dia 2, véspera de eleições municipais. Pela manhã, ocorreu uma briga “entre o Barba e o Coelho”, detentos que ocupavam o pavilhão 9, destinado tanto para condenados quanto para quem aguardava julgamento. O bafafá eclodiu no horário do banho de Sol. “Por causa da confusão, os funcionários da bagaça encresparam. Quiseram botar a gente de volta no xadrez, e a chapa esquentou. ‘Qualé?!’, gritamos. ‘Não vamos aceitar, não! Perder o banho de Sol apenas porque o Barba e o Coelho resolveram tretar?!’” Rapidamente, o protesto virou motim. Tropas da Polícia Militar, sob o comando do coronel Ubiratan Guimarães, invadiram a penitenciária, dispararam pelo menos 3,5 mil tiros e mataram 111 detentos. O massacre se tornou o episódio mais sangrento da história carcerária brasileira.
No quinto andar do pavilhão 9, Bizil dividia a cela 531-E com sete prisioneiros. “Eram seis rapazes de Piracicaba e o meu tio, que também praticou uns procedimentos ilícitos.” Os oito estavam no corredor quando os policiais surgiram. “Se a gente continuasse zanzando fora da cela, as tropas iam fuzilar todo mundo. Por isso, entramos de novo no xadrez. Para dificultar a ação dos PMs, espalhamos água e óleo de cozinha pelo chão. Logo depois, tiramos a roupa e nos deitamos de bruços em cima daquela lambuzeira, com as mãos sobre a cabeça.” A posição indicava que os encarcerados não pretendiam oferecer resistência.
“Já perto da nossa cela, um dos policiais berrou: ‘Levanta, ô, Zé!’ Obedeci, e o maluco sentou o dedo na matraca. Só que a arma falhou, acredita? O sujeito, decepcionado, me mandou deixar o xadrez: ‘Pisa no veludo, Zé! Vai andando devagarinho.’” Foi então que Bizil recebeu o segundo aviso divino. “Meu espírito despencou num abismo bem escuro. À minha volta, inúmeros PMs babavam, possessos. Os caras tinham rabos de leão. ‘Seja corajoso’, rogou uma voz que brotava do além. ‘Você vai presenciar coisas horrorosas, mas não vai perecer.’” De fato, Bizil cruzou o inferno – ou Hades, como costuma dizer – enquanto caminhava do pavilhão 9 até o pátio sob a mira da polícia. “Vi soldados jogando corpos de presos no fosso do elevador e em caminhões de lixo. Escutei gente suplicando por misericórdia, levei muita porrada e senti o bafo assombroso da morte.” Mesmo assim, sobreviveu, à semelhança dos demais parceiros de cela.
O governo estadual desativou o Carandiru uma década depois do massacre, em 2002. Hoje, na área do complexo, se encontra o Parque da Juventude. Nenhum dos 74 policiais condenados pela chacina amargou um único dia de prisão. Passados trinta anos da matança, em dezembro de 2022, o presidente Jair Bolsonaro assinou um indulto natalino para extinguir a pena de todos eles. O Tribunal de Justiça de São Paulo ratificou o perdão.
Filho de um mestre de obras e uma dona de casa, Bizil se define como pardo. “Meu pai é branco dos olhos azuis. Minha mãe, que já morreu, tinha sangue indígena.” A família trocou o interior pela capital paulista na década de 1970. Para engrossar o orçamento doméstico, Bizil trabalhava quando criança. “Eu carregava mercadoria em feiras de rua e vendia samambaia no Viaduto do Chá. A polícia, que detesta pobre, sempre me esculachava: ‘Você está de vadiagem. Vai em cana!’ Me recolheram tantas vezes que pensei: ‘Honestidade não adianta nada. Deixa a vida me levar.’”
Ele cometeu os primeiros furtos ainda na adolescência. Depois, virou assaltante. Uma rixa entre quadrilhas fez com que assassinasse dois rivais. “Peguei 27 anos de cadeia, mas o juiz diminuiu a bronca para 25. Baixei no Carandiru em março de 1986 e mofei por lá até 1999. Uma pedreira! Pura neurose…” Completou a pena no regime semiaberto e nunca mais transgrediu a lei. “Sabe qual a pior facção do país? O Estado, que empurra o cidadão para o desvario, para a bandidagem, porque aliena a galera com um salário mínimo de fome, escola pública ruim e serviço médico de quinta. Assim que conquistei a liberdade, resolvi não dar sopa de novo. Prometi que o Estado criminoso jamais ia colocar as garras em cima de mim outra vez.”
Na prisão, Bizil teve aulas de pintura. Também aprendeu a esculpir em madeira e terminou um curso por correspondência de desenho publicitário. Quando deixou o Carandiru, começou uma frutífera carreira artística. De quebra, concluiu o ensino básico e três faculdades, “todas presenciais”: teologia, direito e pedagogia. Talvez por isso se expresse de um jeito muito próprio. Ora recorre às gírias da quebrada, ora adota um linguajar mais rebuscado.
Enquanto viveu “entre as grades”, não se reaproximou da liturgia evangélica, mesmo depois de receber “as duas mensagens dos Céus”. “Só retornei às Escrituras Sagradas fora do xadrez.” Casado há quase três décadas, mora numa chácara em Francisco Morato, na Grande São Paulo, participa de um grupo que acolhe dependentes químicos, frequenta a Assembleia de Deus e batizou os quatro filhos com nomes bíblicos: Melquisedeque, Rebeca, Miqueias e Joquebede. “Meu lema agora é foco, força e fé.”
À medida que o tempo avança, Bizil tem cada vez mais certeza de que não escapou por acaso da selvageria no Carandiru. “Saí ileso para impedir que a memória daquela barbárie se apague. A Constituição determina que o Estado ressocialize os presos. A PM não pode simplesmente invadir uma penitenciária e passar fogo.” Desde que alcançou o regime semiaberto, em 2000, o sobrevivente de 58 anos pinta o que testemunhou no dia 2 de outubro de 1992. Ele afirma que vende a maioria dos quadros para colecionadores do Brasil e de outros países – “China, Estados Unidos, México, Itália…” Até o início de julho, o Solar dos Abacaxis, no Rio de Janeiro, abrigou uma exposição com 25 pinturas de Bizil sobre o massacre. “Já nem sei quantas produzi. Trezentas? Quinhentas? Sei apenas que não cogito parar.”
(revista piauí)
Publicado terça-feira, 1 de julho de 2025 às 12:52 pm e categorizado como Reportagens. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.