quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

A vez de Andréa

Sobre o direito de morrer como travesti

Em 1998, cercada de travestis e ativistas gays, Andréa de Mayo pediu o microfone na plateia do Programa Livre. Queria fazer uma pergunta para o convidado daquela tarde, o ultraconservador Afanasio Jazadji, então deputado estadual pelo PFL paulista. Ela estava furiosa. Com cabelos negros, crespos e longos, trajava calça social e um camisão listrado de mangas curtas. Não usava maquiagem nem adereços, exceto um relógio de pulso, e tinha a voz fina. Era deliberadamente uma figura ambígua, que trafegava entre o masculino e o feminino.
Transmitido pelo SBT, sob a batuta de Serginho Groisman, o Programa Livre se notabilizou por promover debates acalorados. Àquele dia, o apresentador e o público sabatinavam Jazadji sobre questões de gênero. O parlamentar, claro, defendia aguerridamente a tradição e achincalhava os que a colocavam em xeque. “Vi-aaa-do! Conversa de viadinho, de mariquinha!”, bradava, com sotaque italianado, apesar das origens romenas. Mal pegou o microfone, Andréa mirou o deputado e disparou: “Quando o senhor saiu às ruas angariando votos, disse para o indivíduo homossexual ‘Não vote em mim’?” Os aplausos e gritos da plateia quase abafaram a resposta do político. “Não, não, absolutamente…”, admitiu Jazadji. Ainda irritada, Andréa jogou o braço esquerdo para o alto e para trás, como se falasse: “Então vá se catar!”
A cena encontra-se no YouTube e dura míseros onze segundos. Não deixa de ser uma relíquia, já que a internet reúne poucos vídeos com Andréa. Ela – que nasceu Ernani dos Santos Moreira Filho e se definia como travesti, embora nem sempre envergasse roupas ou acessórios de mulher – morreu em 2000, logo após comemorar 50 anos. Principalmente no underground de São Paulo, sua cidade natal, ficou conhecida pelas peripécias noturnas e por defender com unhas (às vezes, coloridérrimas) e dentes (bem cuidados) a dignidade dos LGBT. “O palhaço pinta o rosto para viver. O travesti também. Por que o travesti não trabalha? Quem dá trabalho para o travesti? Me conta isso! Se falta trabalho para pai de família, vão dar trabalho para travesti?”, resumiu em 1985, no programa Comando da Madrugada, conduzido pelo telejornalista Goulart de Andrade.
Depois de um longo ostracismo, quando nem mesmo os movimentos gays costumavam evocar o legado de Andréa, a militante desbocada e pioneira está retornando às discussões sobre os direitos dos transgêneros. É que, em novembro de 2016, por iniciativa da prefeitura paulistana, o túmulo dela no cemitério da Consolação recebeu uma nova identificação. Agora, os que visitarem a sepultura descobrirão que ali jaz não apenas Ernani dos Santos Moreira Filho, como anuncia a placa de bronze original, mas também Andréa de Mayo, conforme indica a placa recém-afixada. As duas inscrições aparecem juntas, uma embaixo da outra.
Já faz algum tempo que, em diferentes documentos, travestis e transexuais vêm conseguindo substituir seus nomes de batismo pelos adotados socialmente. O reconhecimento oficial, desta vez, se estende à seara dos mortos. Se a ativista decidiu viver como Andréa, gesto que lhe custou um bocado, por que haveria de morrer somente como Ernani?

Prohibidu’s
“P
ai, vou operar logo. Preciso tirar a merda do silicone. Está dando rejeição.” Era uma sexta-feira quando Andréa comunicou por telefone que iria se submeter à delicada cirurgia. Avisou não o pai biológico, com quem tinha péssima relação, mas o amigo e guia espiritual Walter Alegrio – ou Pai Walter de Logun Edé, sacerdote iniciado no candomblé da nação Egbá-Arakê, a mesma de Mãe Menininha do Gantois. “Meu filho, nós, do santo, nunca fazemos nada importante sem ouvir os orixás. Não se opere antes de jogar os búzios e conferir se o momento é propício”, aconselhou o religioso, que sempre se referia à travesti no masculino. Ela concordou. Naquela manhã, Pai Walter viajaria para o Rio de Janeiro. Planejava voltar uns dias depois e consultar os búzios diante da própria Andréa.
Bem alta e branquela, a travesti ostentava coxas e nádegas imensas (os seios, em contrapartida, se revelavam pequenos). O corpão desabrochara da pior maneira: à custa de hormônio e muito silicone industrial, injetado sem nenhum acompanhamento médico. Na época, quanto mais litros do produto uma travesti aplicasse, mais poder detinha entre os pares.
Discriminada pela família, a futura militante saiu de casa antes dos 18, ainda sob a máscara de Ernani. Morou na rua e abraçou toda sorte de bicos: lavava carros, engraxava sapatos, varria calçadas. Tentou cantar e dançar profissionalmente, mas não deslanchou. Com 20 e poucos anos, resolveu se montar e virou Andréa de Mayo. O sobrenome celebrava o mês em que Ernani nasceu. Por ironia, acabou se mostrando premonitório, uma vez que a travesti morreu igualmente em maio, no dia 17.
Quem a conheceu jura que não bebia álcool, não consumia drogas nem se prostituía. Ganhava dinheiro negociando carros e como dona de boates – a Val Improviso e a Prohibidu’s, onde garçons trabalhavam nus, se tornaram míticas. Frequentemente, recepcionava os habitués dos nightclubs em companhia de Al Capone, um cão pequinês. Quando sobrava grana, comprava apartamentos, abarrotava-os de beliches e alugava os leitos para outras travestis. Há relatos de que também atuava como cafetina. Explosiva, não fugia de brigas. Andava com um nunchaku, o bastão duplo das artes marciais, sob o braço – alguns afirmam que se tratava de uma corrente – e chegou a levar seis tiros de um namorado.
Curiosamente, em oposição à faceta agressiva e oportunista, exibia um lado protetor. Ajudava favelas e instituições de caridade, acolhia travestis com Aids, denunciava preconceitos contra homossexuais e reivindicava a criação de um estatuto que garantisse todos os direitos da comunidade LGBT.

Batonzinho
“Em maio de 2000, retornei de viagem como previsto e procurei Andréa imediatamente. Pretendia jogar os búzios para ela”, relembra Pai Walter. Foi quando recebeu a notícia: negligenciando as recomendações do amigo, a travesti se operou antes de escutar os orixás. Sofreu complicações pós-cirúrgicas e não resistiu. Tinha pressa em extrair o silicone tanto por razões de saúde quanto estéticas. Já não suportava ver o corpo deformado – de tal modo que, nos últimos tempos, raramente se montava. Passava um batonzinho e olhe lá.
Segundo o guia espiritual, o pai biológico de Andréa não deixou que a enterrassem no jazigo dos parentes. “Autorizei, então, que pusessem o menino no túmulo de minha própria família”, conta o sacerdote, que completa 69 anos em março. Quase duas décadas depois, quando o Serviço Funerário do Município de São Paulo manifestou o desejo de reparar a memória da ativista, Pai Walter permitiu que instalassem a nova placa, doada pelo professor e arquiteto Renato Cymbalista, um dos idealizadores do ato. “Gostava à beça de Andréa”, diz o guia. “Nunca o tratei no feminino porque não reconheço travestis como mulheres. Ele respeitava minha opinião. Eu também respeitava a dele. Cada um com seus pecados, né?”
(revista piauí)

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Mama África

Uma família negra e o desejo de batizar a filha com um nome etíope

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sexta-feira, 1 de julho de 2016

O último amigo

Uma homenagem em bronze ao vira-lata de Clarice Lispector

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sexta-feira, 1 de abril de 2016

Falso testemunho

Lula e o fiofó do Ministério Público

A deputada governista Jandira Feghali ligou a câmera do celular e, em voz baixa, quase sussurrando, endereçou uma mensagem para os 409 mil internautas que a seguem no Facebook: apesar dos pesares, Luiz Inácio Lula da Silva continuava imbuído de “muita coragem” e mantinha intacta “a capacidade de guerrear”. Eram aproximadamente 13 horas do último dia 4 de março, uma sexta-feira. Figura-chave do PCdoB, a parlamentar se encontrava no Diretório Nacional do PT, em São Paulo, e gravou o vídeo de 27 segundos sem quaisquer preocupações formais. A política sobrepujava a estética. Em vez de ocupar o centro da tela, como recomendam as cartilhas do marketing eleitoral, Feghali estava mais à direita, a imagem sacolejava e um inoportuno foco de luz explodia acima da cabeça dela, lembrando uma auréola.
Pouco antes, Lula prestara o já célebre depoimento coercitivo à Operação Lava Jato enquanto a deputada iniciava uma reunião partidária na cidade. Tão logo lhe avisaram que a Polícia Federal fisgara o ex-presidente, Feghali rumou para o Aeroporto de Congonhas, onde o testemunho compulsório se desenrolava. Queria acompanhar o episódio de perto e denunciar os excessos contra “o maior líder popular do Brasil”. Desde as 8 horas, postava nas redes sociais vídeos curtos e indignados sobre o assunto.
O das 13 horas trazia o próprio Lula em segundo plano, bem recuado. O petista conversava com a presidente Dilma Rousseff pelo telefone. Embora se tratasse de um momento grave, uma nesga de humor involuntário inundou a cena. Justo quando, diante da câmera, a parlamentar afirmava que Lula enfrentara bravamente o depoimento e se mostrava tranquilo, o político soltava o verbo lá atrás. O áudio ruim possibilitava que os espectadores compreendessem com nitidez somente trechos do desabafo: “Eles que enfiem no cu… Dilma… tranqueira que ganhei…” Certamente, Lula mandara enfiar algo no fiofó alheio. Mas o quê? E de quem?
Na manhã seguinte, Iuri Dantas – editor-chefe do portal Jota – recebeu o vídeo pelo WhatsApp. Um advogado, informante costumeiro do site especializado em temas jurídicos, lhe encaminhara. “Assisti à declaração de Jandira Feghali e notei apenas que, no fundo do quadro, Lula falava um palavrão”, recorda Dantas. O petista usar termos chulos não é propriamente uma novidade. Por isso, o editor resolveu telefonar para o advogado: “O que há de importante no vídeo?” Soube então que, desde cedo, delegados e procuradores disseminavam a cena via aplicativo com um alerta: durante a conversa telefônica, Lula estaria tripudiando sobre a Lava Jato. “Eles que enfiem no cu todo o processo”, teria vociferado o ex-presidente. Em Brasília, onde mora, Dantas reviu a imagem mais de dez vezes e solicitou que a equipe do portal também a conferisse. “Ficamos realmente com a impressão de que Lula dizia ‘todo o processo’, apesar do som precário”, conta o editor. Ele mesmo se encarregou de redigir e publicar a notícia do impropério, tomando o cuidado de empregar um tom sóbrio.
Jota, que entrou no ar em setembro de 2014, dispõe de doze jornalistas e atrai mensalmente 1,2 milhão de visitantes únicos. Não apenas cobre o Judiciário como produz relatórios para clientes que se interessam por questões tributárias. Foi provavelmente o primeiro site noticioso a dar notoriedade à história, que até aquele instante tinha alcance restrito. Outros surfaram na onda: o Coluna Esplanada, o blog de oposição O Antagonista, os portais da Folha, do Estadão, do Globo, do Zero Hora, da Época… Em pouquíssimo tempo, o caso virou febre na internet e, claro, gerou piadas, debates e protestos.
Quando fez a gravação, a deputada não prestou atenção nas palavras de Lula, como atesta o comentário despropositado sobre a tranquilidade dele. Pega de surpresa pela avalanche que causara, divulgou nota rejeitando a exploração abusiva de um desabafo privado. Também retirou o vídeo de sua página no Facebook.
Passaram-se quatro dias e três promotores de São Paulo – Cassio Conserino, Fernando Henrique Araújo e José Carlos Blat – denunciaram o ex-presidente por ocultação de patrimônio e falsidade ideológica. Alegavam que o petista é o verdadeiro dono de um tríplex no Guarujá registrado como propriedade da construtora OAS. Aproveitaram a denúncia para solicitar a prisão preventiva do político, que estaria desrespeitando “as instituições do Sistema de Justiça” e, portanto, investindo contra a ordem pública. Entre as evidências do desrespeito, os promotores mencionaram a frase grosseira de Lula no vídeo. Ou melhor: a frase que a mídia e o zum-zum-zum digital garantiam ser de Lula.
Com a pulga atrás da orelha, a jornalista Cynara Menezes – responsável pelo blog de esquerda Socialista Morena – procurou dois especialistas em áudio e lhes pediu que analisassem a gravação. Nenhum cravou que o ex-presidente dissera “todo o processo” nem que não dissera. “Foi quando uma fonte me enviou um vídeo que aventava a possibilidade de Lula ter falado ‘todo o acervo’”, relembra Menezes, sem revelar o nome do santo.
Logo depois da conversa telefônica com Dilma, o petista concedeu uma entrevista coletiva em que, exaltado, reclamou “das tranqueiras” recebidas de presente enquanto imperava no Planalto. Durante o mesmo pronunciamento, referiu-se às tranqueiras como “acervo”. Por lei, os ex-presidentes devem cuidar de tal legado. O vídeo que chegou às mãos de Menezes chamava a atenção para uma coincidência significativa: tanto na conversa com Dilma quanto na entrevista posterior, Lula utilizara a palavra “tranqueira”. Havia, assim, um forte indício de que, ao telefone, o petista estivesse tratando do acervo, e não do processo.
No dia 11 de março, um post do Socialista Morena apresentou a hipótese e deu link para o novo vídeo. O site Brasil 247, pró-governo, rapidamente abraçou a tese, que acabou se confirmando em 16 de março, mal o juiz Sergio Moro liberou os grampos das conversas entre Lula e Dilma. Um deles trazia a íntegra do desabafo que Jandira Feghali captara parcialmente: “Eu tô pensando em pegar todo o acervo, eu vou tomar a decisão, e levar, jogar na frente do Ministério Público. Eles que enfiem no cu, que tomem conta disso. Ô, Dilma, é onze contêiner de tranqueira que eu ganhei quando eu tava na Presidência.”
Alguns dos que propagaram a frase errada se retrataram. Outros permaneceram em ruidoso silêncio.
(revista piauí)

sábado, 1 de agosto de 2015

A cruel solidariedade das abelhas

No interior de São Paulo, às vésperas do réveillon, centenas de insetos atacam um casal de idosos 

Nada, nem o vazio da morte, me parece mais aterrador que a solidão dos hospitais. Mesmo quando abarrotados, centros cirúrgicos, salas de ressonância magnética, UTIs e consultórios se mostram desoladores. Que dizer, então, de um pronto-socorro quase às moscas, num pequeno município do interior, uma noite antes do réveillon?
Foi o que me flagrei pensando enquanto segurava a mão daquela desconhecida. Eu, sentado numa poltrona. Ela, deitada sobre uma cama, de short e camiseta, sem nenhuma coberta. Ensimesmada, roçava obsessiva e alternadamente cada um dos pés na canela oposta – pés avermelhados, que teimavam em arder e coçar. Suas pernas também ostentavam manchas rubras, e o rosto… Lembrava o das mulheres cubistas de Pablo Picasso: os olhos desalinhados pelo inchaço que tomara conta do lado direito.
Alguns metros adiante, um menino convalescia sob a vigilância da mãe. Respirando com dificuldade, a criança às vezes emitia um gemido longo e agudo. Somente nós quatro ocupávamos a enfermaria muito bem conservada.
A Unidade Mista de Saúde Monsenhor Jacob Conti –     único hospital público de Jarinu, cidade paulista onde nos encontrávamos – entrara em funcionamento havia apenas três meses e àquela altura podia atender 500 casos diários, desde que relativamente simples. Ocorrências mais complexas seguiam para Jundiaí, a 25 quilômetros.
– Engraçado… Eu me sinto tão serena agora, comentou a paciente, quebrando o silêncio que já durava dez minutos.
– É que lhe aplicaram um sedativo, não se recorda? Uma injeção, expliquei, ainda segurando a mão dela.
Pouco antes, a senhora de cabelos desgrenhados gritava em desespero, aturdida pela notícia devastadora que recebera de chofre.
– Uma injeção? Não, não me recordo.
Sem jeito, largou minha mão e permaneceu outros dez minutos calada. De repente, se ergueu na cama.
– Ele não está conseguindo partir… Tenho de ajudá-lo!
– Seu marido?
– Sim, o Juca. O meu velho… Não consegue aceitar que morreu. Vou acalmá-lo, pedir que não lute contra o irreversível, que se desligue logo da gente.
Compenetrada, sentou-se na posição de lótus, inspirou profundamente e fechou os olhos. Depois de uns segundos, soltou o ar e inspirou de novo. Repetiu o ritual diversas vezes, à semelhança de um budista que confia (ou tenta confiar) nos benefícios da impermanência.
Cinco horas atrás, tudo dava a impressão de navegar por águas bem menos turbulentas. Eu vagabundeava sobre um colchão inflável na piscina da chácara em que iria celebrar a passagem de 2014 para 2015. “Dia de sol, inundado de sol!…// O dia fútil mais que os outros dias!” Os versos do simbolista português Camilo Pessanha, que aprendera no colégio e julgava esquecidos, saltaram intactos de minha memória e se fundiram a música que ecoava do meu smartphone: “Uh, uh, uh, que beleza! Que beleza é sentir a natureza!”. Tim Maia Racional e Camilo Pessanha, Tijuca e Coimbra… Nunca imaginei que pudesse criar um mashup tão inusitado. Sob o mormaço da tarde, acabei cochilando. Quando acordei, às 18h20, percebi um alvoroço próximo à entrada do sítio. O caseiro, Fausto Gomes Brandão, e o afilhado dele retornavam esbaforidos da rua com uma notícia horrível: abelhas estavam atacando os moradores de uma propriedade contígua. “Chamem uma ambulância!”, berraram os dois, zanzando de lá para cá, à procura de fósforo ou isqueiro. “Vamos fazer umas tochas. O fogo deve afugentar os insetos.”
De bermuda e chinelos, Fernando Soares, o Tubarão, produtor artístico e um dos oito integrantes de nossa turma, cobriu o tronco nu com uma capa improvisada, botou um chapéu e disparou em direção à chácara onde irrompera o ataque. Decidi acompanhá-lo, embora soubesse que não teria coragem de enfrentar as abelhas. Enquanto Tubarão se preparava para adentrar o sítio conflagrado, me uni à meia dúzia de vizinhos que se dispôs a auxiliá-lo de fora, providenciando acessórios capazes de resguardá-lo melhor: calça de tecido grosso, luvas, botas, camisa de manga comprida, óculos de operário. Como Fausto e o afilhado, outras pessoas surgiram com tochas, mas ninguém ousou pisar na propriedade. Apenas Tubarão, já devidamente protegido, cruzou o portão e encarou o enxame. À distância, incrédulos e apreensivos, podíamos vê-lo arrastar um idoso desacordado.
Pelo relato de Fausto, compreendi o que acontecera: Joaquim Antonio Rocha, o Juca, dono da chácara, resolvera desentupir uma calha da espaçosa casa que dividia com a mulher. Subiu numa escada e não se deu conta do perigo que o rondava. Junto à calha obstruída, entre a laje e o telhado, havia uma colmeia. Bastou Juca resvalar na colônia para que os insetos se considerassem em risco e… Por coincidência, Fausto tocou a campainha do sítio exatamente quando o ataque se iniciara. Ele, que sempre visitava o casal, avistou o amigo pular da escada, urrando e se debatendo, com as costas salpicadas de abelhas. Cambaleante, o pobre homem cogitou mergulhar numa das duas caixas d’água que mantinha perto do jardim, mas não teve sucesso. Perdeu os sentidos assim que enfiou uma das pernas dentro do recipiente.
Mal a mulher de Juca deixou a casa para atender a campainha, parte dos insetos a fustigou. Ela reagiu de imediato: saiu correndo e se trancou num quartinho externo, onde costuma guardar tranqueiras. Antes de fechar a porta, suplicou: “Entra aqui, meu velho, pelo amor de Deus!”. O marido não a obedeceu, provavelmente com receio de levar mais abelhas à companheira.
Depois de arrastar Juca por uns 15 metros, Tubarão o carregou nos ombros e conseguiu enfim retirá-lo da chácara. As abelhas se dispersaram. No entanto, já não havia o que fazer. O sitiante estava morto. Tinha 74 anos e um olhar atônito – o último que a vida lhe reservara. Centenas, talvez milhares de ferrões perfuraram seu corpo, inclusive as orelhas,  as pálpebras e os lábios. A indumentária de Tubarão e as tochas ainda acesas reforçavam o caráter dantesco, surreal daquela cena. “Foi um dia de falsas alegrias.” Novamente, trechos do longínquo poema de Pessanha me tomaram de assalto, mas agora os versos proclamavam justo o oposto dos que recordara na piscina. “Um dia de inúteis agonias.” Só então notei que, no alto do portão, uma placa anunciava o nome da chácara: Recanto Pedacinho do Céu.

Labradores e pitbulls
Cientistas estimam que aproximadamente 20 mil espécies de abelhas povoem a Terra. As pioneiras surgiram há pelo menos 100 milhões de anos. O inseto, portanto, é muito mais antigo do que nós – uma equipe de paleontólogos dos Estados Unidos, da Austrália e da Tanzânia divulgou  em maio de 2013 que os primeiros esboços do homem contemporâneo apareceram uns 25 milhões de anos atrás. Daquelas 20 mil espécies, distribuídas pelo planeta inteiro, à exceção do Ártico e da Antártida, 10% habitam o Brasil. Entretanto, uma parcela das que se desenvolveram no país desmente algumas ideias que o senso comum associa às abelhas.
Tais variedades não produzem mel, não possuem ferrão e não formam colônias, preferindo viver sozinhas. Por outro lado, as que mataram Juca dificilmente poderiam se revelar mais óbvias. São as Apis mellifera, bastante corriqueiras tanto no hemisfério norte quanto no sul. Peludas, com corpo negro e listras amarelas, assemelham-se às abelhas de desenho animado. Agrupam-se em colmeias, que reúnem uma média de 50 mil insetos adultos, sob temperatura de 32ºC, e onde impera não só uma rígida hierarquia social como a divisão de tarefas. Cabe à rainha gerar todos os indivíduos da comunidade após copular com os zangões, que respondem apenas pelo papel de reprodutores. Já as operárias – fêmeas inférteis que, juntas, compõem 96% da colônia – se encarregam do resto. Coletam o pólen das flores e o aproveitam como fonte de proteína para as crias da rainha. Recolhem também o néctar floral e, a partir dele, fabricam o mel, que fornece carboidrato às larvas. Ainda extraem das plantas outras duas substâncias: a água e a própolis, uma resina vegetal e antibiótica com que revestem o interior da colmeia a fim de protegê-la contra microrganismos. Não bastasse, dispõem de glândulas que secretam a cera e a geleia real. Usam a primeira para construir os favos em que armazenam o mel e a segunda para garantir às crias um suprimento extra de proteína.
Com 12 milímetros de comprimento e 60 miligramas, as operárias se responsabilizam igualmente pela defesa da colônia – função que, ao longo das últimas cinco décadas e meia, exercem de maneira bastante aguerrida no Brasil. As Apis mellifera desembarcaram por aqui em 1839. Trazidas de Portugal e da Espanha graças à iniciativa do padre Antônio Carneiro, exibiam comportamento dócil e raramente se sentiam ameaçadas. Em 1956, porém, o agrônomo paulista Warwick Estevam Kerr importou cerca de 40 rainhas do leste africano e as abrigou numa floresta de Rio Claro (SP), sob controle, com a intenção de analisá-las. Acontece que as Apis mellifera da África têm o pavio curtíssimo. Fazem uma quantidade maior de mel, quando comparadas às parentes ibéricas, mas se irritam facilmente. Durante um ataque, em meros 30 segundos, injetam oito vezes mais toxinas nos inimigos. “Lançando mão de uma analogia imprecisa, se fossem cachorros, as Apis da Europa seriam labradores boas-praças e as africanas, ferozes pitbulls”, resume o biólogo Osmar Malaspina, pesquisador do Centro de Estudos de Insetos Sociais, na Universidade Estadual Paulista (Unesp).       Reza a lenda, digna dos romances de ficção científica, que um técnico desastrado deixou escapar inúmeras rainhas das colmeias experimentais em 1958. “Ninguém jamais comprovou o motivo da fuga”, pondera Malaspina. “Sabe-se, no entanto, que os exemplares da África cruzaram com os europeus e conceberam um híbrido, as Apis mellifera africanizadas.” As abelhas mestiças se alastraram depressa pelo Brasil, tornando-se majoritárias. Embora não se mostrem tão irascíveis quanto as egressas da floresta de Rio Claro, tampouco merecem ser classificadas de mansas, como demonstraram as que investiram contra Juca.

Gregos
Logo depois de Tubarão atravessar o portão da chácara e nos informar que o sitiante morrera, alguns vizinhos se incumbiram de levar o corpo para o hospital. Naquele momento, a mulher de Juca continuava dentro do quartinho, sem ter ideia de que o marido sucumbira às ferroadas. Precisávamos resgatá-la e, pior, contar-lhe o triste desfecho do episódio.
“Cadê meu velho, hein? Cadê? Ficou tudo bem, não? Cadê?” Repetida incontáveis vezes, num fôlego só, a sequência de perguntas atestava que a senhora permanecia em choque mesmo já estando livre das abelhas. Ela sacudia os cabelos de um jeito frenético, como se ainda quisesse espantar os insetos. Sofrera muitas picadas, mas em número consideravelmente menor que o parceiro. Nenhum de nós encontrou palavras para lhe comunicar a tragédia.
Enquanto tentávamos apaziguá-la, a ambulância que alguém reivindicara afinal chegou. Os paramédicos acharam mais prudente conduzir a mulher até o hospital. “Não custa examiná-la e lhe ministrar um antialérgico”, justificaram. “Quem vai acompanhá-la?” Num reflexo, sem dimensionar a situação embaraçosa que me aguardava, levantei o braço.  “Pode subir”, autorizou o motorista. Posicionei-me, então, junto à maca. A paciente, um pouco menos agitada, me sorriu de leve.
– Como a senhora se chama?
– Maria Circe Rocha.
– Circe? Feito a personagem da Odisseia?
– É. Meu pai, apesar de analfabeto, gostava da Grécia Antiga. Batizou todos os filhos com nomes gregos.
No célebre poema épico, a feiticeira Circe habita a ilha de Eeia e possui o dom de transformar homens em animais. Ou melhor: a conversão se dá apenas fisicamente, uma vez que os enfeitiçados preservam a racionalidade. Quando se depara com a ilha, após a Guerra de Troia e no retorno à saudosa Ítaca, Ulisses – o herói da narrativa – determina que 23 tripulantes de seu navio desembarquem para reconhecer o território. Vinte e dois acabam virando porcos. Horrorizados, experimentam o conflito entre cultura e natureza – uma batalha que sempre marcou (e sempre marcará) a trajetória da humanidade. Na pele dos suínos, os marinheiros conservam-se pensantes e seguem observando o mundo sob o viés da linguagem, mas se veem presos à condição de bichos. Juca, ainda que por outro caminho, vivenciara confronto idêntico e de modo igualmente radical. Assistiu, na própria carne, à selva derrotar a civilização.
A ambulância corria pelas ruas praticamente desertas de Jarinu. Maria Circe cruzou os braços sobre o peito e se encolheu, como uma criança assustada. Os sacolejos do furgão a enjoavam.
– Eu pedi tanto… “Esqueça a calha, meu velho! Você não tem mais idade para subir no telhado. Depois do réveillon, a gente resolve o problema. O Fausto certamente nos ajudará.” Adiantou? O Juca não descansa nunca. É um joão-de-barro, muito ativo, muito fuçador. Gosta de construção – de tijolo, madeira, pedra, concreto.
– Trabalha com engenharia ou arquitetura?
– Não, trabalhava de bancário. Já se aposentou.
– Quando vocês se casaram?
– Há 50 anos. Bodas de ouro… Eu estava com 17, acredita?  Em 2009, deixamos São Paulo e nos mudamos para o interior. Cansamos da metrópole. Mas nossas duas filhas e os cinco netos continuam por lá.
Assim que a ambulância estacionou, meu coração acelerou. O corpo de Juca provavelmente repousava no mesmo hospital em que Maria Circe acabava de entrar.
Um médico de jaleco verde, com a barba por fazer e ar de cansaço, confirmou minhas suspeitas. De fato, o sitiante jazia ali, numa sala pegada à enfermaria onde puseram a paciente. O próprio médico se encarregou de lhe dar a notícia. Escolheu termos frios (parada cardiorrespiratória, impossibilidade de ressuscitação, óbito) e se retirou. Maria Circe desabou num choro doído. “Não é verdade!”, bradava. “O Juca não iria embora sem se despedir de mim!”

Cascavel
O ferrão da Apis mellifera africanizada se localiza no fim do abdômen. Tem o formato de uma flecha e liga-se à bolsa em que o inseto armazena veneno. Durante um ataque, a operária espeta o ferrão na vítima. Por meio dele, inocula 0,001 mL de veneno, que uma glândula produz continuamente. “Embora irrisória, a quantidade se revela capaz de desencadear um quadro alérgico”, afirma o biomédico Daniel Carvalho Pimenta, do Instituto Butantan, em São Paulo. A alergia geralmente provoca dor, coceira, inchaço e vermelhidão no local da picada, efeitos que um antialérgico combate com facilidade. Entretanto, se a vítima for hipersensível, a reação se alastra e afeta todo o organismo. Ocorre, então, um choque anafilático, caracterizado por taquicardia, redução da pressão arterial, distúrbios circulatórios e até edema de glote – dilatação parcial da laringe que impede a passagem de ar para os pulmões. Caso o socorro tarde, os distúrbios podem se tornar fatais.
Uma única abelha, ainda que cause alergia, não consegue envenenar nem os humanos, nem boa parte dos animais. Só que as Apis normalmente agem em bloco. Se mil insetos participarem de uma investida, por exemplo, injetarão, juntos, 1 mL de toxina. “Tal quantia é praticamente a mesma que uma cascavel introduz num homem ou num boi quando o morde”, compara o pesquisador do Butantan. Em outras palavras: mil operárias suscitam uma intoxicação tão letal quanto a das serpentes.
Entre as centenas de substâncias que compõem a peçonha das abelhas, duas se destacam pela agressividade: a melitina e a fosfolipase. Separadas, já acarretam estragos consideráveis. Unidas, se potencializam mutuamente e contribuem para ocasionar os sintomas do envenenamento: torpor, destruição de tecidos musculares, insuficiência respiratória e colapso renal.
A intoxicação quase sempre leva à morte porque inexiste um soro que neutralize o veneno. O Brasil, aliás, é um dos países onde os estudos para desenvolvê-lo se encontram mais avançados. A Unesp de Botucatu e a de Rio Claro trabalham paralelamente na busca do antídoto, ambas em parceria com o Butantan, mas não há estimativa de quando irão concluir as pesquisas.
Como Juca morreu cinco ou dez minutos depois de alcançar a colmeia, tudo indica que sofreu um choque anafilático. “A reação alérgica costuma se manifestar depressa. Já as primeiras consequências do envenenamento demoram cerca de uma hora para aparecer”, esclarece Pimenta.
Com uma população de 26,9 mil habitantes, a diminuta Jarinu – um município predominantemente agrícola, cuja economia gira em torno dos hortifrutigranjeiros – nunca registrara mortes humanas por ataque de abelhas. Pelo menos é o que indicam os levantamentos da Defesa Civil. O órgão mantém há cinco anos um banco de dados sobre acidentes que envolvem animais peçonhentos. “A cidade, infelizmente, não contabilizava as ocorrências antes de 2010”, lamenta Renato Marchesin Mansano, secretário municipal de Segurança Pública. O infortúnio de Juca surpreendeu as autoridades locais, tanto que a prefeitura decidiu consultar lavradores mais idosos para saber se tinham lembranças de casos parecidos na região. “Ninguém se recordou de nada”, diz Mansano.
Segundo o Centro de Vigilância Epidemiológica Professor Alexandre Vranjac (CVE), houve 2.293 acidentes com abelhas no Estado de São Paulo entre 1º de janeiro e 18 de dezembro de 2014. Só dois resultaram em morte. No mesmo período, aconteceu um número menor de acidentes com cobras (1.722), que provocaram o dobro de óbitos (4). Em compensação, os escorpiões responderam por 10.949 ataques e as aranhas, por 3.136. A letalidade desses aracnídeos, porém, se mostrou bastante pequena. Os escorpiões causaram uma única morte e as aranhas, nenhuma.
Se recuarmos no tempo, verificaremos que o ranking de letalidade permanece igual. Enquanto as cobras acarretaram 87 óbitos de 1998 até 2014, as abelhas ocasionaram 37. Os escorpiões mataram 32 pessoas e as aranhas, sete. Os dados do CVE também permitem constatar um fato intrigante: a quantidade de acidentes com abelhas está aumentando quase ininterruptamente desde o fim do século 20. Foram 600 em 1998 contra os 2.293 do ano passado – um salto de 282%. O que justificaria a curva ascendente? “Desconheço estudos que tratem do assunto, mas talvez o crescimento se deva à expansão das cidades”, supõe o biólogo Osmar Malaspina. “Em inúmeros pontos do Estado, as áreas urbanas avançam sobre zonas rurais desabitadas, sem lhes tirar obrigatoriamente todos os atributos bucólicos. Como existe uma proporção maior de insetos no campo, sobem as chances de as abelhas atacarem os seres humanos que se deslocaram para lá.”

Capoeirista
Passava das 21h30 quando Maria Circe abandonou a posição de lótus, interrompeu a sequência respiratória e se deitou de novo na cama.
– Pronto. Espero que agora o Juca se tranquilize. Mandei-lhe um recado sem palavras: “Vá, meu velho! Não resista!”. Entre nós, nunca houve necessidade de palavras.
– A senhora pratica ioga ou meditação?
– Um pouco das duas. E gosto de ler sobre o kardecismo. São as armas que encontrei para ver se calo de vez a maritaca.
– Maritaca?
– Sim. Todos criamos, sem perceber, uma maritaca dentro da cabeça, um bicho tagarela que não se cansa de repetir perguntas do tipo: “Por que você fez aquela besteira? Por que não emagrece? Por que desiste tão facilmente dos desafios? Por que não pensa no futuro? Por quê, por quê, por quê?” Uma ave infernal e persistente, que só serve para nos inundar de cobranças.
– A maritaca da senhora anda muito faladeira?
– Nem tanto. Já sossegou um bocado. Fui aprendendo como aquietá-la no decorrer dos anos. Mas a do Juca não parava de atormentá-lo. Meu velho se preocupava demais.
– Com o quê?
– Com as perdas. Tinha um apego excessivo à família. Temia que algo nos acontecesse, que o deixássemos. Queria a mulher, os filhos e os netos sempre por perto. Também receava bastante a própria morte. Eu tentava reconfortá-lo: “A vida é uma lâmpada que jamais estraga. Quando apagar aqui, vai acender em outro canto”. Não funcionava. Ele continuava se angustiando. Ultimamente, procurava evitar a rua. Medo de bandido, sabe?
Contou, então, que o marido sofrera cinco assaltos em São Paulo. Num deles, desarmara o ladrão com golpes de capoeira.
– Baiano de Caturama, né? Uma cidadezinha minúscula, no sul do Estado. Há décadas, se converteu à umbanda e dispunha de um guia espiritual extremamente zeloso, que costumava livrá-lo dos males. Só que hoje… O Juca morreu justamente no lugar que considerava mais seguro: o nosso sítio.
Natural de Marília (SP), ainda criança, Maria Circe manifestou os primeiros sinais de um problema grave, a   osteomielite, uma inflamação dos ossos. Morei num hospital entre os 2 e os 5 anos. Depois, dos 5 até os 12, vivi em casa, mas amargava extensos períodos de internação. Usei um colete de gesso durante toda a infância. Para me locomover, precisava me deitar de bruços sobre um carrinho de rolemã e empurrá-lo com as mãos. Enxergava apenas os pés dos outros enquanto deslizava. Por isso, adoro sapatos – de homens, mulheres, crianças, qualquer um. Quando completei 14 anos, já saudável, conheci o Juca, amigo de meu irmão. Ele se apaixonou de cara. Eu, não. Resisti à beça. No entanto, a abnegação dele, a personalidade acolhedora, a dedicação absoluta acabaram me seduzindo. Faz sentido: uma garota que enfrentou a aridez dos hospitais e passava dias longe da família só poderia se encantar por um rapaz com aguçado instinto de proteção. Logo nos casamos.
– O casamento precoce impediu que a senhora terminasse os estudos?
– Não. Sou pedagoga. Lecionei na rede pública e dirigi vários colégios. Plantei uma porção de sementes pelo mundo…
Calou-se por um instante e observou a mãe que cuidava do menino enfraquecido.
– Posso lhe perguntar uma coisa? Você promete que me responde com sinceridade?
– Prometo.
– Isso está mesmo acontecendo, moço? Não é um delírio?
– Não, infelizmente não é.
– Que triste, Jesus! De repente, num dia qualquer, o absurdo nos surpreende e nossas certezas viram do avesso…
Silenciou-se outra vez para, em seguida, dizer:
– Pensando melhor, acho que meu velho arranjou um jeito de se despedir, sim.
– Da senhora?
– De mim. Ontem à noite, tive um sonho. Sete indivíduos de branco carregavam o Juca e me falavam: “Ele irá conosco, mas você permanecerá aqui. Não se preocupe. Seu marido ficará em paz”.

Camicases
Como outros insetos gregários, as Apis mellifera africanizadas só atacam quando julgam que a colônia está sob perigo. O problema é que mesmo situações inofensivas podem lhes soar ameaçadoras. Caso um animal ou uma pessoa se aproxime demais da comunidade, as operárias responsáveis pela defesa reagem de imediato, ainda que o suposto inimigo não toque em nada. Quão perto dá para chegar com segurança? “Difícil precisar. A distância varia conforme a suscetibilidade de cada grupo”, explica Osmar Malaspina. “Por via das dúvidas, recomendo que tanto os humanos quanto os bichos de estimação e o gado permaneçam, no mínimo, 500 metros longe de uma colmeia.”
A irritação das abelhas aumentará se o rival hipotético (e demasiadamente próximo) emitir determinados barulhos. “As Apis odeiam o som de motor. Não por acaso, são comuns as investidas contra motoristas de tratores”, afirma o biólogo da Unesp. Gritos também as colocam em alerta – à semelhança de movimentos bruscos. Assim, os ataques pioram quando as vítimas se comportam do modo mais previsível numa circunstância dessas: berrando e se agitando. Perfumes ou roupas escuras e ásperas exasperam igualmente os insetos. Daí os apicultores trajarem macacões claros. “Ignoramos a razão de certos ruídos, aromas e cores acirrarem o instinto protetor das operárias, mas o fato é que o acirram”, diz Malaspina.
De acordo com o cientista, alguns testes demonstraram que as abelhas podem perseguir os inimigos por quase dois quilômetros. Também comprovaram que a fumaça resultante de qualquer combustão as desorienta. Fausto, seu afilhado e os vizinhos de Juca, portanto, fizeram bem quando confeccionaram tochas para dispersar os insetos. “Crendices populares apregoam que as Apis não atacam de noite. Bobagem”, adverte o biólogo. “As arremetidas independem do horário, já que as atividades dentro de uma colmeia não cessam nunca.” Com tantas variáveis em jogo, apenas especialistas devem correr o risco de remover uma colônia que represente ameaça. “O ideal é convocar a Defesa Civil ou um apicultor”, orienta Malaspina. “Os bombeiros só atuarão nos casos em que há vítimas.”
Hoje se sabe que as abelhas desenvolveram um sistema de comunicação refinado. Normalmente, dialogam entre si por meio de “danças” – voos cujas diferentes coreografias transmitem informações ­– e de hormônios específicos, os feromônios. Tais substâncias exalam cheiros, e cada odor passa uma orientação. Há, por exemplo, aquele que sinaliza fontes de alimento e o que serve de GPS, norteando os insetos no espaço.
Quando ocorre um ataque, principalmente dois feromônios entram em cena. Logo na “porta” da colmeia, se encontra uma porção de operárias que parecem inofensivas e ociosas. São as sentinelas. Estão ali para salvaguardar o grupo. Assim que notam a proximidade de um antagonista, erguem o abdômen e soltam o feromônio de alarme. Seu cheiro espalha-se por toda a comunidade, disseminando mensagens do gênero: “Atenção! Perigo à vista!”. Se o inimigo não recuar e a situação ficar muito temerária, uma das guardas sai da colônia e o ferroa. Mal deixa o ferrão espetado na pele do oponente, libera o feromônio de defesa, que adverte as demais sentinelas: “Eis o nosso alvo!”. O batalhão, já de sobreaviso, avança em peso e castiga o adversário até considerá-lo derrotado. Excepcionalmente, operárias incumbidas de outras tarefas podem abandonar as ocupações habituais e engrossar o pelotão das guardas. O curioso é que as participantes das investidas agem, em boa parte, à maneira dos camicases. Aquelas que picam a vítima morrem logo depois por perderem, durante o ataque, não apenas o ferrão como o intestino.
Uma operária costuma viver entre 40 e 45 dias. Desempenhando um tipo de função em cada momento da existência, vira sentinela pouco antes de atingir a meia idade. “Veja o tamanho do sacrifício que as guardas fazem”, ressalta Malaspina. “Para preservar o grupo, se lançam à morte relativamente jovens, com uns 20 dias de vida. Trata-se de um gesto bastante altruísta, sobretudo quando levamos em conta que as operárias, inférteis, estão defendendo não os próprios descendentes, mas os da rainha.” A desgraça de Juca, por mais paradoxal que seja, significou o triunfo da solidariedade.

Fio de prata
Às 22h, um policial militar adentrou a enfermaria. Precisava colher alguns dados sobre o incidente. Enquanto redigia o boletim de ocorrência, a Defesa Civil e os bombeiros terminavam a varredura da chácara sem localizar a colmeia que se rebelara. Possivelmente, as abelhas partiram após a luta, em busca de um porto menos tumultuoso. Os homens encontraram, porém, um animal agonizante próximo às caixas d’água. Era Hércules, o cão de Juca e Maria Circe. Branco, lembrava um dogue alemão pela solidez e o porte altaneiro. “Não conseguimos identificar a raça exata dele”, me relatou depois o agente da Defesa Civil que se encarregou do caso. “Um cachorro tão bonito…” Crivado de ferrões, Hércules não sofreu um choque anafilático como o dono. Amargou, por isso, os efeitos terríveis e vagarosos do envenenamento. “Vocês o deixaram ali, se debatendo?”, indaguei, aflito. O agente confirmou com um meneio de cabeça e explicou, resignado, que não tinha ordens para transportar bichos. Nem a Defesa Civil nem os bombeiros poderiam fazê-lo, pois inexistem hospitais ou abrigos públicos em Jarinu que prestem socorro veterinário. “E clínicas particulares? Deve haver pelo menos uma na cidade. Vocês não tentaram acioná-la?”, insisti. Há quatro, de acordo com o agente, só que nenhuma funcionava às vésperas do réveillon. Na manhã seguinte, Fausto resgataria o corpo de Hércules e o enterraria.
As filhas do sitiante, avisadas da tragédia, se deslocavam de São Paulo para Jarinu quando me dei conta de que, entre mim e Maria Circe, não pairava mais qualquer constrangimento. Na enfermaria, unidos pelo acaso ou destino, nos sentíamos agora profundamente irmanados.
– Você talvez ache esquisito, mas o Juca acabou de atender as minhas súplicas.
– Aceitou a morte?
– Estou certa de que sim. O fio de prata que o ligava à Terra finalmente se rompeu. Meu velho já pode mexer com tijolo, madeira, pedra e concreto lá do outro lado.
(revista piauí)

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Temporada de caça

E se um pato resolvesse tentar a sorte no Tinder, o aplicativo que promove encontros amorosos?

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quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

O “forevis” do ano

Enquanto não retorna à igreja evangélica que frequentava, a Miss Bumbum 2013 experimenta o mundo e segue namorando “o Rafa”

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domingo, 1 de dezembro de 2013

A moça da vitrine

Quanto valem o show e as palavras de Lorena?

Mal saiu do recinto soturno onde nos encontrávamos (“a sala da administração”, nas palavras do bigodinho), a mulata subiu alguns lances de escadas até alcançar o pavimento em que 16 cabines enfileiradas, todas minúsculas, compõem um semicírculo. Fui atrás – e finalmente pude vê-la em trajes profissionais: uma lingerie vermelha quase microscópica, meias sete oitavos rendadas, um scarpin dourado e dois piercings atravessando-lhe o umbigo.
No subsolo, no térreo e no primeiro andar do antigo edifício, ironicamente vizinho de uma igreja católica, funciona o Miami, único peep show do Rio de Janeiro e talvez do país. O nome em inglês é autoexplicativo. Peep significa olhadela. Trata-se, portanto, de um estabelecimento destinado às práticas ancestrais do voyeurismo e da masturbação. Entre segunda e sexta-feira, das 11h30 às 21h20, Lorena e mais 14 mulheres (Lili, Manu, Sheila, Tayná…) fazem strip-tease diante de homens que se acomodam nas 16 cabines privativas. Doze contam com uma janela envidraçada, de onde se avista um mesmo palquinho giratório. Em cada um dos outros quatro cubículos, a janela dá para uma vitrine exclusiva. Fechado nas cabines, o cavalheiro não consegue tocar as damas. Mas pode espiá-las e ouvi-las à medida que dançam, acariciam-se e tiram as diminutas roupas em cima do palquinho ou dentro das vitrines. Quanto mais o voyeur desembolsar, por mais tempo apreciará as coreografias sinuosas e, não raro, desajeitadas. Um minuto divisando o palquinho custa R$ 1,50. Vinte minutos em frente às vitrines consomem R$ 75,00 – justamente o que topei gastar para prosseguir o papo com Lorena.
A niteroiense de 33 anos é stripper desde fevereiro de 2009 e mora numa favela não pacificada da zona norte carioca, a Furquim Mendes. Nunca cogitara se despir em público antes de o Miami a contratar. Quando tomou conhecimento do peep show, vendia artigos de natação no Shopping Leblon e estudava pedagogia à noite. Passava o dia inteiro de pé. Preferiu abandonar a faculdade e aceitar o novo emprego não apenas porque ganharia melhor (com registro em carteira como bailarina), mas igualmente pela possibilidade de descansar, “sentadinha da silva”, entre uma exibição e outra. De início, mal encarava os espectadores, morta de vergonha. Caso notasse que iriam se masturbar, virava de costas. Hoje, bem mais solta, presta atenção em todos os gestos masculinos e diz que, na maioria das vezes, não se sente constrangida nem explorada. Pelo contrário: diverte-se muito. “Vejo cada coisa…” Certa ocasião, um marmanjo livrou-se do terno durante a performance dela, revelando trajar calcinha e sutiã. A stripper manteve a fleuma, e o crossdresser acabou por lhe ofertar as peças íntimas.
O trecho pago de nossa conversa ocorreu numa das cabines, com Lorena seminua. Inevitável constatar que a jovem de 1m74 estava gordinha. “Estou mesmo. Peso agora 76 quilos. É que os clientes gostam assim – e meu marido também…” Ele, um mototaxista, só engoliu a profissão da mulher após reclamar bastante e sob duas condições: a parceira não pode lhe contar nada do que vivencia ao longo do expediente e deve testar no quarto do casal as lingeries que usará em cena.
(revista VIP)

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Quando o algoz também é vítima

Nem mesmo nós, os moderninhos, escapamos de praticar o machismo – e sofrer os reflexos dele

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terça-feira, 1 de outubro de 2013

A namorada tem namorados

Um caso muito peculiar de infidelidade

Num lugar tão repleto de estranhezas quanto São Paulo, poucas me parecem mais divertidas do que a “rave em câmera lenta”. É assim que alguns frequentadores da pequenina Rua Campo Alegre definem o pisca-pisca incomum da iluminação pública local. O endereço, no bairro de Pinheiros, reúne um par de botecos que, à noite, espalham mesas sobre as calçadas e atraem jovens ávidos por birita, papo-furado e xaveco. O maior dos estabelecimentos, inaugurado em 1957, se chama Bar das Batidas, mas todo mundo o conhece como Cu do Padre. Localiza-se, afinal, bem atrás da igreja Nossa Senhora do Monte Serrat. A área em nada se diferencia das zonas boêmias de qualquer metrópole, exceto por um detalhe: a principal lâmpada da ruazinha está com defeito e oscila sem parar, ainda que num ritmo muito preguiçoso. Fica 25 segundos acesa, apaga durante outros 25 segundos e acende novamente.
Numa quinta-feira de agosto, sob um dos longuíssimos momentos de penumbra, a moça que me acompanhava murmurou: “Tenho um segredo”. O tom cavernoso que imprimiu à voz me deu a sensação de que ouviria uma confidência grave, desconcertante e um tanto fora de propósito. Eu e Nanã (vou chamá-la desse modo, em alusão à deusa dos mistérios no candomblé) não nos julgamos propriamente amigos. Talvez nos encaixemos melhor na categoria dos velhos conhecidos. Balzaquiana de feições indígenas, alta e sinuosa, costumo encontrá-la para trocar banalidades, não revelações. Por que haveríamos de mudar agora as regras implícitas que nos guiam desde tempos imemoriais? Nanã preferiu não responder. Apenas se refugiou no breu intermitente e avançou: “Defendo a fidelidade, mas não sou fiel”. Sem problemas. Milhões (ou bilhões?) de criaturas se comportam do mesmo jeito: apregoam uma coisa e fazem o oposto. “O meu caso é diferente”, insistiu.
A escuridão, sem dúvida, a enchia de coragem para seguir adiante. Existia, porém, outro aspecto que a impulsionava: Nanã tomara bons copos de caipirinha e se esquecera de que o homem à frente dela permanecia sóbrio. Por motivos que ignoro (os extraídos da psicanálise me soam forçados), nunca liguei para álcool. Uísque, rum, vinho, cachaça, tequila, chope, nada atiça de fato o meu paladar. Tampouco aprecio a vertigem, o torpor e a alegria indomável que derivam da embriaguez. Em razão disso, não cultivo o hábito de beber – no máximo, beberico. Tal condição acaba me aproximando de gatos, onças e leopardos. À semelhança dos felinos, em incursões noturnas, vejo e ouço tudo muito claramente, para azar das trôpegas presas que me rodeiam. Pior: lembro-me de minúcias na manhã seguinte, e na seguinte, e na seguinte.
“Saio com dois caras de uma vez só”, continuou Nanã. O namorado e um reserva? De novo: não se trata de nenhum absurdo. Quem nunca pulou a cerca que atire o primeiro cinto de castidade. “Você não entendeu… Os dois são reservas!” Nanã, botafoguense roxa, estava querendo me dizer que não apenas dribla o titular como toca a bola para um duo de atacantes furtivos? “Exato! Mas dou os passes simultaneamente. Transo com a dupla de reservas na mesma cama.” Em outras palavras: um ménage à trois clandestino? “E duradouro…” Duradouro quanto? Cinco semanas? Três meses? Um semestre? “Doze anos.”
Se a memória não me trai, Nanã engatara quatro namoros sérios desde 2001. Com um dos pretendentes, quase se casou. “Adivinhe por que não juntamos os trapinhos? Porque nunca consegui me desvencilhar dos dois reservas. Sempre mantive a relação secreta em paralelo às assumidas.” Ela demonstrava se sentir mais confusa que culpada diante do enrosco. “Quando começamos o triângulo, estávamos os três solteiros. Éramos amicíssimos e o negócio rolou naturalmente, como se o imenso afeto que nos unia necessitasse transbordar. Hoje, penso que também agíamos por farra e para desafiar a rigidez da educação que recebemos de nossos pais. Acontece que a situação fugiu do controle. Tentamos nos afastar, mas não conseguimos. Ficamos dependentes uns dos outros. Você sabe: em tese, prezo a monogamia e não curto bancar a mulher fatal, daquela que seduz batalhões. Mesmo assim… Me ajude: como me livro dessa armadilha?” Questãozinha capciosa… E se Nanã saísse em separado com cada um dos reservas? Talvez descobrisse gostar mais de beltrano que de sicrano. “Já saí. Não adiantou. Só funcionamos juntos.” Então lhes resta apenas uma alternativa, ousei sugerir: oficializar o ménage à trois. “Será? Jamais cogitei a hipótese.” Por que não? Vivemos tempos tão revolucionários… “Deus do céu, acho que preciso de outra caipirinha.” Aproveitei e pedi uma para mim também. Naquele instante, compreendi que, em raras (raríssimas) ocasiões, a sobriedade deve ceder espaço à solidariedade.
(revista VIP) 

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