terça-feira, 1 de novembro de 2022

Um caso raríssimo

Jornalista negro processa CNN Brasil por racismo estrutural

Em junho de 2016, as seleções da Alemanha e da Polônia se enfrentaram pela Eurocopa, o campeonato europeu de futebol masculino, no Stade de France, perto de Paris. Foi um jogo tedioso, que terminou sem gols, mas lá fora o clima esteve quente. Pouco antes da partida, a repórter Sonia Blota e o produtor Fernando Henrique de Oliveira, ambos da Band TV, cobriam o vaivém de torcedores nas imediações da estação ferroviária Gare du Nord quando cerca de cinquenta alemães os rodearam e gritaram: Get out, you niggers! Mandaram os dois irem embora, usando a expressão racista mais insultuosa da língua inglesa. O líder do grupo ameaçou a dupla de brasileiros com um bastão, chutou uma perna da jornalista e deu uma bofetada em Oliveira, que operava a câmera e conseguiu filmar parte da investida. Os agressores seguiram adiante sem que ninguém os importunasse.
A repórter e o produtor denunciaram o ataque para um policial que circulava pelas redondezas. Ele se esquivou. “Vocês me parecem bem. Não sofreram ferimentos graves. Melhor esquecer o que aconteceu para evitar um conflito maior”, explicou, de acordo com as vítimas. Inconformado, Oliveira prestou queixa numa delegacia.
A truculência virou notícia dentro e fora da França. Os agredidos concederam algumas entrevistas, inclusive para a Band. Quando soube do incidente, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) soltou uma nota. Classificou o episódio de deplorável e criticou a inércia da polícia. Com o intuito de remediar o estrago, o ministério francês das Relações Exteriores ofereceu um almoço de desagravo para a jornalista e o produtor.
Embora dissessem a palavra nigger no plural, tudo indica que os torcedores não se referiam à repórter, neta dos apresentadores Blota Júnior e Sônia Ribeiro, duas lendas da tevê nacional. Ela é branca de cabelos escuros e olhos castanhos. Frequentemente, na Europa, a confundem com italiana em razão do sobrenome calabrês. Já Oliveira é preto retinto. “A dor moral e psicológica que a bofetada me causou supera a física”, declarou à imprensa na época.

A CNN Brasil estreou em 15 de março de 2020. Enquanto montava sua infraestrutura, a emissora contratou Fernando Henrique de Oliveira, que acabara de deixar o programa Conversa com Bial, na Globo, onde ocupava o cargo de assistente de produção. Ele se formara em relações públicas havia quase duas décadas e tinha registro de jornalista desde julho de 2018. Pelo contrato que assinou na CNN, cuidaria da “produção de imagens e/ou reportagens diversas para transmissões”. Poderia, ainda, se dedicar à “apuração de pautas” e à “realização de coberturas jornalísticas”. Viveria em Nova York e trabalharia com a correspondente Luiza Duarte.
No dia 25 de maio de 2020, o norte-americano George Floyd Jr. – um segurança negro desempregado – virou símbolo planetário da luta contra o racismo. Preso em Minneapolis, sob a suspeita de usar dólares falsos para comprar cigarros, morreu sufocado pelo policial branco Derek Chauvin, que apoiou o joelho sobre o pescoço dele durante nove minutos. As imagens do assassinato, registradas por testemunhas, geraram uma onda de manifestações nos Estados Unidos, no Brasil e em dezenas de outros países.
Escalado para cobrir as repercussões do crime como repórter, Oliveira abandonou momentaneamente a postura distanciada e fez um relato de cunho pessoal. Gravou o depoimento na varanda do apartamento que alugava em Manhattan. De tranças afro, barba bem aparada e óculos, trajava roupas sóbrias: blazer cinza por cima de uma camisa azul com listras brancas e gola padre. O Empire State aparecia à distância. Depois de acertar o enquadramento de uma pequena câmera Sony e ajeitar o microfone de lapela, o jornalista contou que morava no East Village, “um bairro majoritariamente branco”, em cujos supermercados sempre tinha a impressão de que os seguranças o vigiavam. Também recordou o ataque dos torcedores alemães, quatro anos antes, e a indiferença da polícia francesa. “Infelizmente, nós ainda precisamos nos preocupar com quem deveria nos proteger”, concluiu.
Exibido pela CNN em 29 de maio, o testemunho de 1 minuto e 42 segundos ficou no site da emissora. “O produtor Fernando Henrique relata um dos momentos mais difíceis que enfrentou na carreira por causa do racismo”, anunciava o texto online que introduzia o vídeo. O próprio Oliveira divulgou o depoimento pelas redes sociais. No Instagram, redigiu: “Violência racial. Como jornalista negro, conto minha experiência por aqui. @CNNbrasil.” Uma imagem congelada do testemunho ilustrava o post.
Ele também publicou no Instagram trechos da cobertura que fez para o canal entre 26 de maio e 9 de junho de 2020, em Nova York, Minneapolis e Houston, cidade do Texas onde Floyd Jr. foi enterrado. Por quinze dias consecutivos, a CNN mostrou boletins de Oliveira sobre o caso, a maioria estritamente jornalísticos, sem comentários pessoais. Em 2 de junho, porém, a apresentadora Monalisa Perrone pediu outro depoimento de caráter particular para o colega: “Eu sei que você já sofreu racismo. Por isso, abra o coração e conte exatamente o que você está sentindo agora.” Ao vivo, enquanto acompanhava um protesto em Manhattan, Oliveira disse que não integrava nenhum “movimento de lutas raciais”, mas que considerava fundamental pleitear “igualdade e justiça”. Enfatizou que se pronunciava “em nome de todos os negros”, como representante “de um povo, de uma nação”, e não na condição de jornalista. Perrone agradeceu: “Obrigada pelas palavras, pela observação, por abrir o coração! Cobertura de verdade também tem emoção. É a emoção de quem tem o lugar de fala, né?”
No dia 10 de junho, Oliveira entrou novamente em cena para avaliar como o mundo deveria lidar com o racismo à luz do homicídio de Floyd Jr. Outros nove funcionários negros da CNN, incluindo um maquiador, uma executiva e quatro repórteres, se manifestaram. Todos fizeram reflexões genéricas, sem explicitar situações mais íntimas.
Dois meses depois, em 21 de agosto, o canal demitiu Oliveira por divergências salariais, embora o contrato dele só terminasse no ano seguinte. A emissora queria que o profissional voltasse para São Paulo. Ele concordou, mas reivindicou manter o salário de 4 mil dólares (cerca de 21 mil reais hoje) que recebia nos Estados Unidos. A CNN não aceitou e rompeu o contrato. No dia 19 de novembro, o jornalista entrou com uma ação contra a antiga empregadora. À primeira vista, parecia uma briga trabalhista convencional, assentada principalmente em pendências financeiras. Examinado de perto, o processo se revelava também outra coisa: uma batalha contra o “racismo estrutural” – conceito típico dos nossos tempos e cada vez mais invocado por trabalhadores negros nas relações com as empresas.
A ação judicial não acusa nenhuma pessoa física de discriminação racial. O único alvo é a CNN. Nas palavras dos defensores de Oliveira, o suposto comportamento racista da emissora não se comprova “pela chancela escancarada”, mas “pelas condutas sorrelfas”. Por isso, os advogados usam a expressão “racismo estrutural ou institucional” para se referir às práticas da empresa. O termo designa um conjunto de medidas corporativas, educacionais, políticas, econômicas, jurídicas, culturais ou religiosas que favorecem determinado grupo racial e colocam outros em desvantagem. Nem sempre são atitudes de fácil percepção e resultam mais de uma dinâmica coletiva e histórica que do anseio deste ou daquele indivíduo. O racismo estrutural, portanto, se confunde com a própria ordem social.
Não à toa, o tema está no cerne de todas as discussões contemporâneas sobre aquilo que os negros chamam de “segunda abolição” – uma nova alforria, mais abrangente e transformadora que a de 1888. Uma libertação que “transcenda o corpo da lei e faça prevalecer o espírito da lei”, conforme escreveu o cantor Gilberto Gil em maio de 2009, no jornal Le Monde Diplomatique Brasil. Uma abolição que ouse sair “do papel” e ganhe “as consciências”.

“Disputas jurídicas como a de Oliveira, que envolvem debates identitários, sempre nascem de um elemento subjetivo: a percepção de quem se julga ofendido.” A frase é da advogada mineira Juliana Bracks, que leciona direito do trabalho na PUC do Rio de Janeiro. Ela não se refere apenas às demandas acerca do racismo, mas também àquelas que tratam de segregação por gênero, faixa etária, orientação sexual, crença religiosa, predileção política, deficiência física e até obesidade. Enquanto discorre sobre o assunto, Bracks acaba tocando no ponto que liga o processo de Oliveira contra a CNN Brasil a uma questão central do século XXI:
“Um funcionário negro pode ver preconceito racial em circunstâncias que os brancos qualificariam de irrelevantes ou nem sequer enxergariam. Às vezes, a discriminação se manifesta de modo explícito e incontestável – o superior zomba das tranças afro de um subordinado ou o xinga de macaco. Outras vezes, porém, a intolerância lança mão de artifícios bem mais sutis. Nesses casos, o desgosto e a revolta do profissional que se considera atacado são absolutamente legítimos. Ou melhor: a percepção do trabalhador merece respeito, ainda que não baste em termos judiciais.”
A professora explica que, nos tribunais, a percepção do reclamante vale tanto quanto a do réu. “O funcionário negro sente que sofreu uma humilhação racista. O empregador branco sente que não humilhou ninguém. Por que a percepção de um deveria preponderar sobre a do outro?” Daí a necessidade de provas, que podem derivar de perícias, vídeos, áudios, mensagens de celular, documentos em papel ou testemunhos de terceiros. A interpretação final será do juiz, o que adiciona mais um ingrediente à equação: até que ponto a identidade do magistrado (sexo, cor da pele, origem socioeconômica) afeta suas decisões? “Todos esperamos que afete o mínimo possível, e que a sentença se baseie especialmente na análise técnica das provas”, afirma Bracks.
Em 2004, uma emenda modificou o artigo 114 da Constituição e permitiu às cortes trabalhistas julgar processos de indenização por danos morais. Antes, só a Justiça comum mediava o assunto. “A emenda de 2004 certamente vem estimulando o aumento de ações sobre conflitos identitários no ambiente de trabalho. O fortalecimento das redes sociais, que ampliou a consciência política dos grupos tradicionalmente afrontados, também contribui para o fenômeno”, diz a professora.
Segundo a Data Lawyer Insights, plataforma que coleta e analisa dados jurídicos, pelo menos 3,6 mil processos trabalhistas com menções a “preconceito racial”, “racismo” ou “discriminação racial” chegaram à primeira instância da Justiça brasileira no ano passado. É um recorde. Em 2018, houve 1,1 mil ações. Em 2019, 1,4 mil e, em 2020, 2,3 mil. O método de prospecção adotado pela Data Lawyer Insights não permite saber o teor exato de cada processo.
Bracks salienta que a reforma trabalhista de 2017 introduziu o princípio da sucumbência na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Desde então, se o reclamante perder uma ação, terá de pagar o advogado da parte contrária e as custas judiciais. O ex-funcionário da CNN corre, assim, o risco de ficar no prejuízo caso a emissora vença o litígio.

Em 2021, uma pesquisa telefônica com 202 jornalistas pretos e pardos de todo o país perguntou: os negros encontram mais dificuldades que os brancos para ascender nas redações? Noventa e oito por cento dos entrevistados afirmaram que sim. Quando os pesquisadores questionaram se os 202 profissionais já haviam enfrentado alguma espécie de racismo enquanto trabalhavam, 43% também responderam que sim.
As indagações aparecem no Perfil Racial da Imprensa Brasileira, estudo que o informativo Jornalistas & Cia realizou com dois parceiros – o Instituto Corda e a I’Max, agência de tecnologia e comunicação. Metade dos entrevistados se definia como do sexo masculino, e a outra metade, como do feminino. A maioria tinha entre 26 e 45 anos. Cerca de 60% desempenhavam funções operacionais. Eram repórteres, redatores ou diagramadores. Os restantes estavam em cargos gerenciais (diretores, editores ou chefes de reportagem).
Das diversas situações racistas que os entrevistados disseram viver durante o exercício da profissão, destacam-se:
* Ser confundidos com o pessoal da limpeza;
* Ouvir piadas ou recriminações sobre o cabelo;
* Enfrentar acusações de vitimismo nos momentos em que reclamam de preconceitos;
* Sentir que os colegas os veem com desconfiança;
* Amargar tratamento diferenciado de policiais ou seguranças durante as coberturas;
* Sofrer agressões verbais;
* Ganhar apelidos pejorativos, como “neguinho” e “crioulo”;
* Ser convocados para fazer reportagens mais negativas do que positivas em comparação com os brancos.
Por meio de telefonemas ou questionários online, o estudo também consultou 1 750 jornalistas de diferentes origens raciais, que atuavam em sites noticiosos, jornais, revistas, tevê, rádio, blogs e podcasts. Depois, extrapolou a amostra para os 61 mil profissionais do país (a estimativa é da I’Max) e chegou às seguintes conclusões:
* Embora 56% da população brasileira se intitule preta ou parda, as redações têm mais brancos (77,6%). Somente 20,1% dos jornalistas declaram-se negros. Os outros são amarelos (2,1%) e indígenas (0,2%);
* Os brancos ocupam mais cargos de chefia, recebem salários melhores e permanecem mais tempo na mesma empresa;
* A prevalência de um segundo emprego é maior entre os negros;
* Na pandemia de Covid, os brancos fizeram mais home office que os negros.
A CNN Brasil ainda não dispõe de números precisos sobre a composição étnica de seus 730 funcionários. Até dezembro, pretende implantar um comitê de diversidade, que promoverá um censo para garimpar tais informações.
(Na piauí, onde trabalham 35 profissionais, a situação de desigualdade se reproduz: apenas cinco – ou 14% – consideram-se negros. Nenhum deles exerce funções gerenciais.)

Apesar de tamanho desequilíbrio na imprensa, processos trabalhistas como o de Oliveira são raríssimos. A Comissão Nacional de Jornalistas pela Igualdade Racial (Conajira), fundada em 2010, desconhece ações similares. “De modo geral, os pretos e os pardos evitam acionar a Justiça quando sofrem preconceito nas redações. Algumas vítimas até processam colegas, mas poucas se rebelam contra as empresas”, diz Valdice Gomes, integrante da comissão. “Os negros enfrentam vários obstáculos para atingir um mínimo de segurança na carreira. Se conseguem furar a bolha, acabam priorizando a empregabilidade. Temem queimar o filme no mercado caso briguem judicialmente com os patrões.”
O cenário não é muito distinto em outras áreas da comunicação. Recentemente, porém, a publicitária negra Rafaela Keroty Ferraz fugiu à norma e acusou de racismo a agência Plug. O processo tramitou na 27ª Vara do Trabalho de São Paulo. Em 25 de agosto de 2020, durante a pandemia, a agência convocou a reclamante para uma reunião por vídeo. Uma supervisora, também negra, iniciou assim o encontro: “Estou com vontade de ver todo mundo. […] Quero ver se [citou o nome de um funcionário, não mencionado nos autos] cortou o cabelo e se a Rafa continua preta.” O comentário deixou a publicitária bastante constrangida e a levou às lágrimas. Ela fechou a câmera da plataforma digital para não chorar diante da equipe.
No dia seguinte, a subordinada procurou a supervisora, criticou a abordagem e ouviu um pedido de desculpas. Assim que soube do ocorrido, o dono da agência menosprezou o episódio. Ponderou que a supervisora não quis ofender ninguém. “Ela só fez uma brincadeira fora de hora para descontrair a tensão da pandemia”, explicou à publicitária, de acordo com a ação judicial. Dois meses depois, a Plug demitiu Rafaela Ferraz sob a justificativa de que passava por solavancos financeiros. A publicitária recorreu à Justiça – e ganhou.
Em maio de 2021, a juíza Renata Bonfiglio proferiu uma sentença que desperta a atenção pela clareza e veemência quando descreve como a discriminação racial pode comprometer as relações de trabalho:
O fato de a ofensora e a própria reclamada não enxergarem no comentário qualquer ofensa não é suficiente para que a ofensa não tenha existido. […] A triste realidade é que há inúmeras práticas racistas naturalizadas em nosso cotidiano e materializadas em microagressões, que partem de comportamentos [] por vezes inconscientes. A situação dos autos [] é apenas mais um exemplo do que se convencionou chamar de “racismo recreativo”. []
A verdade é que todos nós precisamos estar atentos para não incorrer nesse padrão comportamental tão enraizado na sociedade. […] No ambiente de trabalho, cabe ao empregador essa fiscalização. Do contrário, estará sendo conivente com piadas que são verdadeiras manifestações de injúria racial, como é o caso em apreço.
Observe-se que a forma como a ré se posiciona em sua defesa, minimizando o desconforto e constrangimento da reclamante, já demonstra a existência de uma microagressão. [Segundo a reclamada, uma piada que envolva questões raciais serve para “descontrair a tensão”, o que representa um padrão de conduta que precisa ser revisto e combatido. [] Causa espanto ao Juízo que, justamente numa empresa de comunicação, que se diz atenta e preocupada com inclusão e diversidade, um fato como esse tenha sido banalizado.
A sentença determinava que a agência pagasse 20 mil reais à ex-funcionária por danos morais. No dia 13 de maio de 2021, quando a abolição da escravatura completou 133 anos, as partes encerraram a pendência ao firmar um acordo que reduziu a indenização para 18 mil reais.

Duas semanas antes de a ação de Fernando Henrique de Oliveira contra a CNN Brasil entrar em segredo de Justiça, a piauí teve acesso à sua íntegra. Os autos, que estão na 80ª Vara do Trabalho de São Paulo, somam 410 páginas. A maioria delas aborda questões de cunho essencialmente trabalhista, como a reversão da demissão ou a remuneração em dobro do jornalista pelos dezessete meses que faltavam para o término do contrato. Num conjunto menor de páginas, entretanto, Oliveira acusa a emissora de lesá-lo com uma série de gestos racistas, ferindo o artigo 5º da Constituição, que considera o racismo um crime inafiançável e imprescritível. Pelo delito, o profissional reivindica indenização por danos morais.
Uma das discriminações raciais que o jornalista atribui à emissora é justamente a de requerer os testemunhos pessoais sobre os preconceitos que ele já sofreu, como a agressão durante a Eurocopa. Conforme Oliveira alega no processo, o canal o obrigou a fazer os relatos de acordo com um “roteiro repassado pela chefia”. Para provar, os dois advogados do ex-funcionário – Carlos Daniel Gomes Toni e Kiyomori André Galvão Mori – apresentam trocas de mensagens entre o jornalista e Adriana Mabilia, uma das editoras que cuidavam do caso George Floyd Jr. Ela trabalhava na sede da CNN, em São Paulo.
– Fê, hoje […] você poderia entrar pra dar a tua percepção de tudo – escreveu Mabilia no WhatsApp.
– Claro, Dri. Fechado! – concordou Oliveira.
– Olha só. Editor me passou aqui. Vou te passar algumas orientações, tá? – prosseguiu Mabilia. – O vídeo precisa conter de 1 min a 1 min 30. É um depoimento, em que as pessoas respondam… Quem é você? Já foi vítima de preconceito? Qual mais te marcou?
A profissional referia-se à gravação de Oliveira na varanda de seu apartamento em Nova York. Por áudio, a editora complementou:
– Vamos fazer uma coisa bacana? […] Um depoimento… Questões históricas… Você trazer coisas da tua vida. Vamos pensar nisso? Mas é urgentão!
Nas redações, os editores costumam orientar os subordinados sobre o ângulo e a duração de um testemunho ou uma reportagem, tanto que Oliveira não se constrangeu ao receber as diretrizes e concordou em segui-las. Mais tarde, porém, o jornalista percebeu que o pedido de um depoimento daquele tipo, a respeito de uma experiência tão particular e dolorosa, configurava racismo. Fenômeno parecido ocorre com inúmeras vítimas de assédio sexual, que só se dão conta do ataque tempos depois de o sofrerem. Para Oliveira, a CNN lhe destinar uma tarefa como aquela é tão invasivo quanto solicitar a um repórter judeu que, durante a cobertura de uma passeata contra os neonazistas, evoque as perseguições antissemitas que já enfrentou.
No processo, o ex-funcionário acrescenta que a emissora o menosprezou com pelo menos outras três práticas racistas:
* Todos os jornalistas negros da redação ganhavam salários menores que os dos brancos quando exerciam funções iguais às deles. Oliveira diz que as provas das diferenças salariais estão “em poder da ré”, ou seja, da CNN. Como também fazia reportagens, extrapolando as atividades habituais de produtor, ele pede equiparação salarial retroativa com o cargo de repórter.
* O canal queria que Oliveira fosse segurança de Luiza Duarte enquanto a correspondente apresentasse boletins noturnos na rua. Os autos trazem mensagens que a chefia endereçou para o jornalista em 27 de julho de 2020, uma segunda-feira. O primeiro e-mail indagava se Oliveira poderia “acompanhar a Luiza nos deslocamentos à noite” durante a semana. Ele respondeu que não. Informou que tinha aulas às terças, quartas e quintas. Não entrou em detalhes, mas reservara os horários para um curso online de reeducação corporal e reuniões virtuais sobre um doutorado que planejava fazer. A chefia desaprovou a justificativa. Reclamou que os compromissos atrapalhavam o fluxo da redação e lembrou que um sem-teto perseguira Duarte numa cobertura recente. Contou, ainda, que a repórter amargara “diversas outras situações incompatíveis”. Por fim, sublinhou: “É inviável a Luiza trabalhar à noite, sem produtor.” Oliveira bateu o pé e não acompanhou a correspondente, que realizou os boletins sozinha.
* Depois de demiti-lo, a empresa tratou o jornalista como carregador. Pediu que ele levasse para São Paulo todos os equipamentos de Nova York, inclusive os usados por Duarte (nessa altura, a repórter havia deixado a emissora para tocar projetos pessoais). Eram 38 itens, entre microfones, cabos, baterias, refletores e um iPhone 11. O material, que não estava no seguro, ocupou quatro malas. Já os pertences do ex-funcionário, apenas uma. Assim, em 30 de agosto de 2020, nove dias após a demissão, Oliveira voou para a capital paulista com cinco malas. O canal pagou pelo excesso de bagagem.
Caberá à Justiça decidir se as denúncias do jornalista constituem racismo ou não. Sob a ótica de Oliveira, no entanto, está claro que a CNN não só adota regras e princípios que reproduzem a desigualdade racial em vigor no país como os naturaliza, tornando-os quase ocultos. “O racismo institucional da ré […], por óbvio, não se comprova pela chancela escancarada […], mas pelas condutas sorrelfas que se seguiram durante toda a relação de trabalho”, escrevem os advogados no processo.
Embora não usem a expressão “tokenismo” (estratégia de quem deseja parecer mais inclusivo do que realmente é), os defensores de Oliveira fazem uma alusão à tática: “Assim como William Waack disse ‘até tenho amigos negros’, a emissora até passou a admitir jornalistas negros, após contratar aquele que fora demitido […] da Globo, [depois de ser] flagrado pelas câmeras em suposto ‘gracejo’ de dar inveja aos segregacionistas do apartheid sul-africano.”
O trecho joga luz sobre um episódio ocorrido durante as eleições presidenciais norte-americanas de 2016. Na ocasião, Waack ancorava o Jornal da Globo e acompanhava a apuração dos votos. Ele se preparava para entrar no ar em Washington, com o comentarista Paulo Sotero, quando um carro buzinou insistentemente nas imediações do estúdio. “Tá buzinando por que, ô seu merda do cacete?”, resmungou Waack. “Não vou nem falar […] É coisa de preto. Com certeza.” Na sede paulistana do canal, um operador de vídeo, negro, teve acesso às imagens do destempero e as gravou pelo celular. Um ano depois, o caso se tornou público, e a Globo demitiu Waack, que se desculpou por fazer “uma piada idiota”. Em junho de 2019, a CNN o contratou.
O âncora integrou a equipe da emissora que cobriu o assassinato de George Floyd Jr. Pelas redes sociais, não faltaram queixas. “Porra @CNNBrasil, vocês só podem tá de sacanagem. Tão fazendo isso pra irritar a gente, né?! william waack, repito, william waack comentando racismo? Aaah, mano…”, tuitou um jovem negro. Convidada do programa CNN 360º, a jornalista Alexandra Loras, também negra, mexeu no vespeiro, ao vivo, em junho de 2020. Ela repudiou o protagonismo de Waack e frisou que a mídia detinha “o poder” de chamar acadêmicos pretos ou pardos para discutir o homicídio de Floyd Jr. “Não é apenas com gotinhas de cotas nas universidades que vamos resolver a questão racial no país”, afirmou. O canal não se pronunciou.
No dia 15 de abril de 2021, acusações de racismo assombraram novamente a CNN. Reportagem publicada pela agência de notícias Alma Preta contou que a analista de política Basília Rodrigues sofria perseguições dentro da emissora. A Folha de S.Paulo reiterou as denúncias. Segundo as apurações, funcionários do canal tratavam a jornalista negra com desrespeito. Reclamavam do cabelo “desgrenhado” e das “olheiras” dela ou criticavam os cenários que Rodrigues escolhia para entrar no ar quando estava em home office. Editores de imagem evitavam mostrar o rosto da analista. Preferiam substituí-lo por cenas ilustrativas enquanto transmitiam somente a voz de Rodrigues. Nem a Alma Preta nem a Folha identificaram os profissionais que fizeram as denúncias.
Logo que as reportagens saíram, a CNN classificou os relatos de gravíssimos e anunciou que iria investigá-los. De antemão, esclareceu que considerava o cabelo afro “um símbolo importante de resistência e empoderamento”, que eventuais ajustes nos cenários seguiam critérios técnicos e que “nunca houve qualquer orientação” para ocultar o rosto da jornalista. Pelo Twitter, Rodrigues limitou-se a agradecer o apoio da empresa e as mensagens solidárias de amigos, colegas e desconhecidos. Em agosto de 2021, a emissora divulgou que as investigações não detectaram racismo. Concluíram apenas que alguns funcionários tinham agido de modo inadequado. O canal não informou se os puniu.
Entre as acusações de Oliveira que extrapolam a seara racial, constam delitos trabalhistas relativamente comuns nas redações do país. Ele afirma que a CNN exigiu contratá-lo como pessoa jurídica, e não física, para pagar encargos menores. Também diz que a emissora lhe deve horas extras e adicionais noturnos. Se levar tudo o que pede, o jornalista receberá cerca de 700 mil reais. Desse total, 50 mil reais equivalem à reparação pelos atos racistas.
Como o processo está sob segredo de Justiça desde março de 2021, nem o canal nem Oliveira nem os advogados das partes podem falar sobre a causa fora dos tribunais. Só os envolvidos têm o direito de assistir às audiências.

A defesa da CNN Brasil, assinada pelo advogado Marcelo Costa Mascaro Nascimento, ocupa oitenta páginas do processo. Apenas nove delas se debruçam sobre as supostas condutas racistas. A emissora nega “veementemente” todas as acusações. Diz que o ex-funcionário age de maneira “leviana” por mencionar fatos inexistentes. Para o canal, Oliveira cai em contradição quando tacha de discriminatórios os testemunhos pessoais que deu enquanto cobria o caso Floyd Jr. Se a CNN realmente cometesse racismo, jamais permitiria que o jornalista expusesse no ar os preconceitos que enfrentou, sustenta a defesa. Tampouco deixaria que outros profissionais negros se pronunciassem durante a mesma cobertura, conforme ocorreu em 10 de junho de 2020. “A empresa-ré adota comportamento totalmente diverso daquele relatado [pelo ex-funcionário]. Observa-se claramente […] que a reclamada abriu espaço para seus colaboradores externarem sua opinião, como forma de reforçar a importância de assegurar o respeito ao ser humano, independentemente da cor da pele”, ressalta Mascaro Nascimento no processo.
Ainda de acordo com o advogado, ninguém exigiu que Oliveira testemunhasse nem que o depoimento dele seguisse um “roteiro repassado pela chefia”. A mensagem de WhatsApp que o jornalista recebeu de Adriana Mabilia, a editora em São Paulo, seria mais “uma indagação” do que “uma imposição”: “Fê, hoje […] você poderia entrar pra dar a tua percepção de tudo.” A CNN argumenta que havia a possibilidade de Oliveira recusar o pedido, mas ele “não o fez”. Pelo contrário: preferiu concordar “expressamente” em se manifestar (“Claro, Dri. Fechado!”).
Quanto à denúncia de que todos os jornalistas negros da redação ganhavam menos que os pares brancos, a emissora diz se tratar de uma afirmação “infundada”. Por isso, não lhe caberia abrir a folha de pagamento para a Justiça. “A atribuição de demonstrar a existência de fatos que não existiram […] fere o princípio da razoabilidade”, contrapõe a defesa. O canal também classifica de “impertinente” a reclamação de que Oliveira deveria ganhar salário de repórter.
A CNN contesta, ainda, que pretendeu converter o antigo funcionário em segurança de Luiza Duarte. Quando o convocou para acompanhá-la na rua, a emissora queria somente garantir “o suporte de produção” necessário às imagens que integrariam os boletins noturnos da correspondente. Oliveira cuidaria, por exemplo, “das questões técnicas de luz”.
O canal anexou à ação um e-mail que Mabilia enviou em 13 de julho de 2020. A mensagem elogiava uma matéria de Duarte e Oliveira sobre a ressurreição dos cinemas drive-in nos Estados Unidos durante a pandemia. “Fê e Lu, o VT [jargão para reportagem] ficou ótimo. Vocês viram? Imagens lindas… UAU! Parabéns. Valeu o esforço… Muito!”, escreveu a editora. Conforme a defesa, o e-mail mostra que a CNN “sempre primou pelo tratamento respeitoso e pelo reconhecimento da qualidade da prestação de serviço, situação longe de se caracterizar como […] racismo estrutural”.
“Por amor ao debate”, Mascaro Nascimento também coloca em xeque as críticas que os advogados do jornalista fizeram à contratação de William Waack. Recriminar a ida dele para o canal revelaria tanto uma “evidente posição discriminatória” de Oliveira quanto o desejo de condenar perpetuamente o apresentador, tirando-lhe o direito de continuar na profissão depois de sair da Globo.
Como baseia as acusações de racismo em “alegação desprovida de veracidade”, prossegue a defesa, o ex-funcionário estaria praticando “litigância de má-fé”. Ou melhor: estaria corrompendo a “lealdade processual” e tentando induzir “o Juízo a erro”. A estratégia, se comprovada, é passível de multa.
A própria CNN pediu o segredo de Justiça. “Os fatos alegados […], muito embora improcedentes […], têm potencial para macular a reputação de um dos canais mais influentes do mundo”, afirma Mascaro Nascimento nos autos. “Ademais, [fatos dessa natureza acabam] se transformando em notícia, que é levada ao conhecimento de colunistas de televisão para ser publicada.” No dia 9 de março de 2021, o juiz Gabriel Garcez Vasconcelos acatou a reivindicação e decretou o segredo.
Um mês depois, a CNN nomeou Renata Afonso como presidente. A executiva – branca – substituiu Douglas Tavolaro, fundador e sócio minoritário da emissora, que vendeu suas ações para o banqueiro e empreiteiro Rubens Menin, agora o único controlador do canal. Egressa de uma afiliada da Globo em São Paulo, Afonso é casada com outra mulher. Ela mesma deu a informação durante as primeiras reuniões de que participou na CNN. Também disse à nova equipe que abomina qualquer preconceito e que cresceu sob os cuidados de parentes negros. “Quero fazer uma gestão transparente. Por isso, não poderia esconder quem sou e quais as minhas convicções”, explicou para o site Notícias da TV.
Desde que tomou posse, a presidente busca estimular as discussões sobre diversidade e inclusão dentro e fora da empresa. Não à toa, em outubro de 2021, a emissora lançou o CNN no Plural. O projeto – idealizado pela gerente de conteúdo Letícia Vidica, uma jornalista preta – dissemina por todas as plataformas do canal reportagens que tratam de assuntos caros às chamadas minorias, como o etarismo, a identidade de gênero, a transfobia, a Lei de Cotas e a luta contra a Aids. O podcast Entre Vozes aborda temas semelhantes e se encaminha para a terceira temporada. A âncora Luciana Barreto o apresenta. Ela, que também comanda o programa Visão CNN, figurou na lista dos duzentos afrodescendentes mais relevantes do planeta em 2021. O levantamento anual conta com o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU).
No último 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, outro âncora preto, Jairo Nascimento, pediu licença para ler um “manifesto pessoal” durante o CNN Sábado Manhã:
Há quem diga que o racismo é mi-mi-mi, frescura, exagero e que, no fundo, a escravidão foi boa. O absurdo dessas ideias escancara o perfil de uma pessoa: o racista. No geral, ele estuda pouco e desconhece o passado do país, mas se vangloria desse desconhecimento convicto. Ele se acha uma boa pessoa, tem até um amigo negro para chamar de seu e que cai muito bem como um tipo de estepe se rolar um processo ou uma acusação de racismo. A empregada negra é quase da família, enquanto o cachorro, esse sim, esse é da família. O racista nunca é racista. Ele sempre é vítima do racismo que chama de reverso, de um mal-entendido, ou diz que estava apenas emitindo uma opinião. O racista precisa cair na real. As bases da escravidão são o sequestro, os assassinatos, a tortura, os estupros, a destruição cultural, os trabalhos forçados, a separação de famílias e etnias, além do roubo de propriedade, identidade e humanidade. Só por aqui isso aconteceu ao longo de quase quatrocentos anos. O resultado está na negação de direitos à maioria dos brasileiros pretos e pardos, que têm apenas acesso aos piores índices sociais. O Brasil precisa tratar o racista por aquilo que ele é, um criminoso. […] Eu quero dar um conselho a você, racista: assuma o seu crime, repense o seu preconceito e modernize as suas ideias. Entenda que você não é dono do meu passado […], nem das minhas vontades, nem dos meus pensamentos. Não lhe cabe determinar o que eu quero ou dar tamanho à minha dor. Economize seus adjetivos. Você, racista, é ultrapassado. A cada dia, com o despertar dos negros, você terá que […] aguentar a nossa pele, os nossos cabelos, a nossa teimosia em forma de resistência, a nossa história, a nossa inteligência e, claro, os nossos batuques.

Mesmo que involuntariamente, Hebe Camargo e Fausto Silva, o Faustão, contribuíram para que Fernando Henrique de Oliveira se encantasse pelas comunicações. Ele pegou no batente muito cedo, aos 13 anos. Não precisava trabalhar, mas já queria ganhar o próprio dinheiro. Ia para a escola de manhã e, à tarde, era balconista no boteco dos avós maternos. Com o salário, comprava roupas moderninhas, cadernos de capa dura ou lapiseiras prateadas. De quebra, a grana o deixava um pouco mais independente do pai, funcionário administrativo da prefeitura paulistana que criava os filhos sem nenhum tato – gritava, batia, ameaçava.
Na periferia de São Paulo, onde nasceu e se educou, Oliveira levava uma vida de classe média baixa. A casa térrea em que morava tinha 60 m², se tanto. Ele dividia o quarto com os dois irmãos e estudava numa escola pública. A mãe se dedicava às tarefas domésticas. Caso sobrasse tempo, descolava uns trocados como manicure. Nas férias, a família passava alguns dias em Praia Grande, balneário popular da Baixada Santista.
Perto dos 15 anos, Oliveira arranjou uma ocupação melhor, graças à indicação de um vizinho. Tornou-se office boy numa agência especializada em clippings, relatórios que reúnem informações divulgadas pela mídia sobre determinadas marcas ou personalidades. Entre os clientes da empresa, estavam Hebe e Faustão. De vez em quando, o garoto entregava clippings no endereço deles. Embora nunca conseguisse vê-los, se sentia o máximo por atender duas estrelas da tevê. A incumbência lhe parecia mais fascinante e promissora do que servir os fregueses dos avós.
O adolescente também deixava relatórios numa assessoria de imprensa muito requisitada por galerias e centros culturais. De tanto ir lá, conquistou a simpatia dos funcionários e recebeu um convite para trocar de emprego. Aceitou sem hesitar. Na ocasião, planejava estudar artes plásticas por influência de um tio, que fazia luminárias decorativas e pintava quadros. Como office boy da assessoria, Oliveira ganharia mais e ainda poderia se aproximar de artistas, marchands e curadores.
Foi assim que, com quase 16 anos, pisou num vernissage pela primeira vez. Ficou boquiaberto: o champanhe e as telas o deslumbraram. Ele logo se transformou num habitué de exposições e leitor voraz de críticas. Descobriu as vanguardas modernistas, a pop art, o abstracionismo e as performances. Por tabela, constatou que os brancos imperavam naqueles ambientes. Raríssimos negros visitavam as mostras. Oliveira já tinha certa noção do racismo, mas agora o problema se desnudava com nitidez. A maioria dos negros que circulava pelos eventos usava uniforme de segurança, garçom ou copeiro.
O desejo de cursar artes plásticas acabou descartado em nome da prudência. Quando terminou o ensino médio, o jovem decidiu seguir a carreira de relações públicas, que considerava menos instável. Foi aprovado no vestibular da UniSant’Anna, uma instituição privada. De início, julgou que conseguiria arcar sozinho com a nova despesa. Enganou-se: o salário de office boy mal dava para a alimentação no campus. À época, os pais de Oliveira já não viviam juntos. A separação do casal desequilibrou o orçamento doméstico. Pedir ajuda à família não estava mais no horizonte. Ele buscou, então, um financiamento do governo federal. Assim, durante a maior parte da graduação, pagou apenas 30% da mensalidade. Só liquidou o resto depois da formatura.
Antes de chegar à UniSant’Anna, estudou numa única escola. Não figurava entre os primeiros da turma, mas nunca repetiu de ano. Expansivo e aguerrido, se elegeu presidente do grêmio quatro vezes. Brigou para que o colégio fornecesse merenda de qualidade, organizasse passeios culturais, aprimorasse a limpeza das salas e não atrasasse a entrega gratuita de cadernos. Nos tempos de faculdade, porém, o rapaz se distanciou das lutas estudantis. Também evitou militar em partidos políticos ou engrossar movimentos identitários. Preocupava-se mais com as aulas e o trabalho. Mesmo assim, se proclamava um “preto de esquerda”.
A mãe de Oliveira não pulou de alegria quando o primogênito entrou na universidade. “Abra o olho, menino! Não imagine que mudou de cor só porque anda no meio dos ricos”, advertia. “Curso superior é papo de branco. Você vai torrar uma fortuna com a faculdade e, depois, não vai encontrar nenhum emprego que compense o investimento.” A orientação sexual do jovem – gay assumido desde a adolescência – causava atritos adicionais. A mãe rejeitava os gestos delicados, a voz fina e os trajes exuberantes do filho.
Não por acaso, às vésperas dos 19 anos, Oliveira saiu da casa materna para dividir uma quitinete com um professor da UniSant’Anna, também negro e gay. Em poucas semanas, o rapaz já enxergava o parceiro de apartamento como um híbrido de pai, irmão mais velho e mentor intelectual. O professor, que ensinava língua portuguesa, tinha centenas de livros. “Não leia apenas os textos da faculdade. Explore a minha biblioteca”, sugeria para o jovem, que acatava todas as recomendações de leitura. Certo dia, o professor lhe perguntou: “Que tal estudar fora do Brasil?” O universitário jamais aventara a hipótese. “Por que não? Quem sabe a França…”, insistiu o professor. “Se você realmente quiser, vai rolar.” O incentivo surtiu efeito.
Contrariando os receios da mãe, Oliveira arrumou bons empregos nos primeiros anos de formado, conseguiu poupar um dinheirinho e levou adiante o conselho de ir para a França. Desembarcou por lá no segundo semestre de 2007. Seis meses antes da viagem, teve aulas básicas de francês. Em Paris, continuou o aprendizado na Sorbonne, que oferecia cursos para estrangeiros. Tão logo se tornou fluente, tratou de alçar voos maiores. Ainda na Sorbonne, concluiu uma licenciatura e dois mestrados, sempre em arte e cultura. Sustentava-se principalmente com bolsas e outros tipos de apoio governamental. Se necessário, fazia bicos em restaurantes e bares. Não raro, cuidava de crianças.
Em 2011, o jornalismo da Band precisou de um produtor e cinegrafista na França. Era uma vaga temporária. Como sabia operar câmeras, Oliveira se candidatou. Deu conta do recado, e a emissora o convocou mais vezes. Com o tempo, ele se firmou no ofício, que exercia em paralelo às obrigações acadêmicas. Quando não prestava serviços para a Band, auxiliava o SBT, a Rede TV!, a France Télévisions e o canal russo RT.
No início de 2018, recebeu uma proposta da Globo. O programa Conversa com Bial queria incorporá-lo à equipe de produção, que ficava em São Paulo. Oliveira aceitou a oferta, mesmo sem curtir muito a ideia de deixar Paris. Aproveitou o retorno à cidade natal para obter o registro de jornalista no Ministério do Trabalho. Em dezembro de 2019, trocou a Globo pela CNN Brasil e São Paulo por Nova York. Hoje, com 39 anos, está de volta à capital francesa. Solteiro, não tem filhos, segue ganhando a vida como produtor e faz doutorado em economia da cultura.
Entre março e outubro de 2020, enquanto morava nos Estados Unidos, foi colunista da Gama, revista eletrônica do grupo Nexo. Escrevia sobre arte e questões raciais. Num dos artigos, relembrou o momento em que tirou o passaporte pela primeira vez, já com a intenção de viajar para a França. “Um sufoco. […] Todo mundo me achou maluco. Ir à polícia sem ser detido era algo novo no meu pedaço.” Ele contou que, quando começou a viver em Paris, finalmente se sentiu tratado de maneira respeitosa. “Me chamavam de monsieur DE OLIVEIRA (com um leve acento no A, bem francês).” Sempre que visitava o Brasil, se entristecia “por deixar para trás o respeito e o vocativo de senhor”.
Em outro artigo, abordou a cobertura do assassinato de George Floyd Jr.: Caminhar pelas ruas de Houston, no Texas, faz de mim um homem dividido: aquele que narra e aquele que está prestes a inventar suas próprias leis. […] As horas passam, e as reflexões não param. Minha conclusão é que Floyd cometeu, sim, um crime: nasceu preto. Minha entranha está dilacerada. Eu também sou um criminoso […]: nasci preto. […] Dizer que a vida dos negros importa é essencial, mas dizer isso para nós, sinceramente, não muda nada. […] O que Floyd, eu e tantos outros temos em comum é que somos fruto da desigualdade social. Não somos e não seremos iguais enquanto eu tiver três vezes mais chance de ser assassinado pela polícia do que você.
Num terceiro artigo, Oliveira discorreu sobre o Dia da Consciência Negra:
Se não bastasse lidar com todas as frustrações, lido com o que dita a moda. […] Por conta da cor, pelo famoso lugar de fala e talvez por minha formação acadêmica, às vezes sou sondado para o dia de “preto brilhar” […]. Dos oito convites que me foram feitos – entre eles, escrever um texto, dar uma palestra e fazer um filme para a internet – nenhum foi remunerado. Nenhum. Minha leitura? “Aproveite o momento para levantar a bandeira da sua gente. Não precisamos te pagar para isso; na verdade, é uma oportunidade.” Além de ser frustrante, é a morte do bom senso. Mudar pressupõe repensar a economia e a distribuição de renda.
Quando vivia em Nova York, o jornalista também conversou a respeito de Floyd Jr. com o publicitário Bruno Infanger, que mantém o canal Alto Papo no YouTube. A entrevista durou 28 minutos. Logo no início, Infanger perguntou se falar de racismo incomodava Oliveira. O entrevistado respondeu que considera necessário discutir o assunto, embora não goste de recordar “o que já aconteceu” com ele próprio ou “algum amigo, primo, parente”. E explicou: “Na verdade, lembrar é sempre muito doloroso”.
(revista piauí)

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Macaco, não!

Uma carta para o lateral do Corinthians que foi acusado de injúria racial

MARIO ARANHA, em depoimento a Armando Antenore

Caro Rafael Ramos,
Faz quatro anos que não vejo um jogo de futebol. Nas quase duas décadas em que fui goleiro, vivi o esporte intensamente. Era um atleta obstinado. Treinava sem reclamar, estudava os adversários e me esforçava para manter o preparo físico. Hoje não acompanho os jogos nem pela tevê. Mesmo assim, fiquei sabendo do que rolou no dia 14 de maio. O Corinthians enfrentava o Internacional em Porto Alegre. O Campeonato Brasileiro estava na sexta rodada, e o Beira-Rio recebia cerca de 17 mil torcedores. Quando faltavam quinze minutos para o fim da partida, o volante Edenilson, do time gaúcho, acusou você de racismo. Ele é negro. Você é branco.
O juiz Bráulio da Silva Machado interrompeu o jogo. Queria entender melhor o que se passava. Edenilson disse que você o xingou de macaco. O árbitro anotou o caso na súmula, mas não tomou mais nenhuma providência. O jogo continuou e acabou empatado: 2 a 2. Logo depois do confronto, Edenilson prestou queixa à Polícia Civil, que foi até o vestiário e prendeu você por injúria racial. O Corinthians pagou a fiança de 10 mil reais na madrugada do dia 15. Agora você responderá ao inquérito em liberdade. “Sei o que ouvi”, escreveu Edenilson no Instagram. Mas você nega tudo: “Não fui, não sou e nunca serei racista.” O Corinthians acionou o Centro de Perícias Curitiba para analisar o vídeo de 28 segundos que registrou parte da discussão em campo. Os técnicos concluíram que ninguém falou a palavra “macaco”. No bate-boca, de acordo com a perícia, o volante do Internacional berrou “maluco!”, e você, “pô, caralho!”.
Como negro, minha tendência é acreditar no Edenilson. Também sei o que já ouvi dentro dos gramados… No entanto, não vou questionar o parecer de especialistas. Só decidi redigir esta carta porque você jogava em Portugal, onde nasceu, e virou lateral do Corinthians há apenas dois meses. Certa vez, o compositor Tom Jobim disse que o Brasil não é para principiantes. Falou de gozação, mas acertou em cheio. Nem os brasileiros sabem direito como lidar com o Brasil. Imagine os estrangeiros… Provavelmente, você não compreende muito bem em que pé está a luta racial por aqui. Gostaria de explicar.

Para começo de conversa, você não é o primeiro jogador a sair preso de um estádio no país. Me lembro perfeitamente de outro episódio. Em abril de 2005, no Morumbi, o São Paulo recebeu o Quilmes pela Taça Libertadores da América. Uma hora, o zagueiro Desábato, do clube argentino, ofendeu Grafite: “Negro de merda!” Indignado, o centroavante são-paulino empurrou o rosto do adversário e acabou expulso. Assim que a partida terminou, a polícia levou Desábato à delegacia. Ele ficou detido por duas noites. Pagou fiança e voltou para Buenos Aires. Grafite retirou a queixa em outubro daquele ano e sepultou a pendência.
Infelizmente, é comum que atletas ou torcedores do Brasil sofram injúria racial na Libertadores. Só em 2022, já aconteceram oito casos. Os racistas estavam nas torcidas do Olimpia (Paraguai), do Emelec (Equador), do Millonarios (Colômbia), do Universidad Católica (Chile), do Estudiantes de La Plata, do Boca Juniors e do River Plate (os três da Argentina). A Confederação Sul-Americana de Futebol abriu processos disciplinares para investigar os ataques. Por enquanto, multou cinco equipes.
Alvos habituais dos insultos, os torcedores, cartolas e jogadores brasileiros jamais deveriam se comportar como quem os provoca. Só que, para vergonha de todos nós, muitos se comportam. Eu próprio escutei coisas terríveis no dia 28 de agosto de 2014, quando defendia o Santos. Jogávamos contra o Grêmio pela Copa do Brasil, em Porto Alegre. Parte da torcida gaúcha me importunou o tempo inteiro. Uns gritavam “preto fedido” e “macaco”. Outros imitavam os sons do animal. Alertei o juiz Wilton Pereira Sampaio, que não moveu uma palha e ainda me ameaçou com cartão amarelo. Foi então que explodi. Passei a mão na pele do meu braço e berrei para os torcedores: “Sou preto, sim!” No final do jogo, dei várias entrevistas condenando duramente aquele circo de horrores.
O Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) excluiu o Grêmio da Copa do Brasil, mas a decisão acabou revogada. Pouco antes do  julgamento, dirigentes do time gaúcho apelaram à velha tática de culpar a vítima. Disseram que irritei a torcida gremista porque fiz cera no decorrer da partida. Um ex-presidente do clube me chamou de trapaceiro. Declarou à imprensa que armei “uma cena teatral depois de ouvir uns gritinhos”. Em 18 de setembro de 2014, o Santos enfrentou de novo o Grêmio, agora pelo Brasileirão. Mais uma vez, torcedores me atormentaram. Levei vaia durante todo o jogo.
A perseguição não parou nem mesmo quando mudei de equipe. No dia 16 de julho de 2017, como goleiro da Ponte Preta, encarei o Grêmio em Porto Alegre e amarguei outra enxurrada de vaias. Por determinação de cartolas gremistas, uma câmera acompanhou cada um dos meus movimentos dentro de campo. O clube me considerava “uma pessoa perigosa e difícil”, nas palavras de um diretor. Daí a vigilância. A única recordação agradável daquela tarde é o cartaz que dois gremistas, pai e filho, ergueram nas arquibancadas: “Aranha!! O tempo passa, mas a dor não! Novamente… perdão por tudo!!! Somos a verdadeira torcida do Grêmio!”

Virei profissional em 1999, no Palmeirinha, um pequeno time de Porto Ferreira (SP). Depois, vesti a camisa de mais sete equipes. Pela ordem: Esporte Clube União Suzano, Ponte Preta, Atlético Mineiro, Santos, Palmeiras, Joinville, Ponte Preta outra vez e Avaí. Tinha 38 anos quando parei. Agora, estou com 41.
O racismo me infernizou até o final. No Avaí, de Florianópolis, onde pendurei as chuteiras em novembro de 2018, pensei que teria sossego. Doce ilusão… Enquanto disputava o campeonato catarinense, aturei muita afronta de torcedores rivais. Eles não me ofendiam com termos racistas, mas faziam alusão à atitude que tomei contra os gremistas em 2014: “Aranha chorão! Aranha criador de caso! Aranha treteiro!”
A verdade é que minha carreira saiu dos trilhos depois que abracei a causa negra nos gramados. De 2014 em diante, nunca mais deixei de discutir o assunto publicamente. A mídia não parava de me procurar para tratar da questão. Nenhum dirigente gosta de jogadores que agem assim. Com o distintivo do clube e as marcas dos patrocinadores no peito, eu denunciava a estrutura racista do futebol. Mostrava a poeira debaixo do tapete. Botava o dedo na ferida. Era uma situação embaraçosa. Creio que, por isso, as boas propostas minguaram. Em dezembro de 2015, o Palmeiras me dispensou. Fiquei um semestre desempregado, sem receber um único convite. Atletas que deixam uma potência como o Palmeiras costumam se recolocar no mercado rapidamente. Em geral, vão para outro time grande. Imaginei que aconteceria o mesmo comigo, mas…
Até hoje, me entristece relembrar certos episódios. Por exemplo: quando jogava no Santos, peguei um voo comercial. Durante a viagem, uma passageira branca perguntou para um segurança negro do clube: “Aquele é o goleiro Aranha?” O segurança confirmou. A passageira logo emendou com uma observação surreal: “Não sei por que o cara reclamou tanto dos torcedores que o chamaram de macaco. Um bicho tão simpático, tão fofinho…” Sem elevar a voz, o segurança retrucou: “A senhora gostaria que a chamassem de vaca ou de galinha? Também são bichos simpáticos, fofinhos…”
Nas redes sociais, li coisas piores. Os racistas me bombardeavam com palavrões, ironias, piadinhas, textões e ameaças. Incomodavam até minha família. Tive de apagar todos os meus perfis. Só voltei para o Instagram e o Facebook há poucos meses.
Não é à toa que passei os últimos quatro anos sem ver jogos de futebol. O racismo tirou a felicidade que o esporte me dava. Você consegue se colocar na minha pele, Rafael? Consegue medir a violência dos gestos e expressões que roubaram de mim um dos meus bens mais preciosos? Recentemente, me tornei cartola. Aceitei um cargo administrativo no Mogi Mirim, clube paulista da quarta divisão. Tomara que a experiência me devolva o prazer do futebol.

Nasci em Pouso Alegre, no Sul de Minas Gerais. Quando criança, jogava com os moleques do bairro. Depois das partidas, matávamos a sede na casa de algum garoto. Às vezes, as mães dos meninos brancos não permitiam que os negros entrassem. A gente bebia o copo d’água na porta. Eu demorei para associar aquilo à discriminação. De início, me parecia natural que negros e brancos não compartilhassem determinados espaços. A ficha caiu apenas na adolescência, por causa do hip-hop. Meus primos tinham um grupo de rap. Aprendi bastante com o que cantavam e ouviam. As rimas condenavam os abusos da polícia, alertavam para o perigo das drogas, aplaudiam a negritude e protestavam contra o racismo. Estimulado pelo hip-hop, resolvi pesquisar mais sobre os pretos. Li biografias e livros de história, troquei ideia com estudiosos, participei de debates e acompanhei batalhas de MCs. Eu já estava na luta havia um tempão quando a torcida do Grêmio me provocou. Já militava, já participava de conversas em escolas e instituições sem fins lucrativos, já dava uns toques para os companheiros de time: “Mano, quem você acha que libertou os escravos? A princesa Isabel? Não, cara! A mina não cuidou de tudo sozinha…” Eu comia pelas beiradas e evitava me expor como ativista na imprensa. Se jogasse mal, os espíritos de porco iriam me encher o saco: “Está vendo? O Aranha esqueceu a bola. Só pensa em agitar.” Claro que minha estratégia se alterou por completo depois que reagi daquele jeito na partida de 2014.
Não me arrependo. Levantar a bandeira do antirracismo me trouxe problemas, mas também me engrandeceu como cidadão – tanto que, no finzinho de 2014, ganhei do governo federal o Prêmio Direitos Humanos. Sinto profundo orgulho das brigas que comprei em nome da igualdade. Hoje, recebo mais incentivo e elogios do que críticas. Sou convidado para dar palestras no país inteiro. Solto o verbo principalmente em ONGs, colégios e empresas. Tento seguir a trilha do ator Lázaro Ramos, que trata de questões raciais com certa suavidade. Ele manda a real sem usar palavras ásperas. Os brancos que o escutam acabam baixando as armas. Saem da defensiva, não se fecham para a mensagem.
Outra inspiração é Carolina Maria de Jesus, a catadora de papel que fazia um diário sobre a vida na favela onde morava com os filhos. Em 1960, os registros se transformaram no livro Quarto de Despejo. Como tinha pouco estudo, Carolina escrevia de maneira bem própria. Ela entregou o diário para o jornalista Audálio Dantas, que organizou a papelada toda, mas sem mudar o estilo da autora. Foi assim que surgiu o livro.
Eu também curto escrever e não avancei muito na escola (concluí o ensino médio só depois de adulto). Por dois anos, redigi pequenos textos sobre a história brasileira, destacando a contribuição de personagens negros, como o geógrafo Teodoro Sampaio, o psiquiatra Juliano Moreira, a socióloga Virgínia Bicudo e o engenheiro André Rebouças. Queria mostrar que os pretos não aceitaram passivamente a escravidão do passado nem aceitam as explorações do presente. Mesmo sob condições ruins, buscam caminhos para crescer.
Quando li Quarto de Despejo, tomei coragem e apresentei as anotações à editora Mostarda. Os profissionais da casa ajeitaram os escritos sem adulterar o meu palavreado. O trabalho resultou no livro Brasil Tumbeiro, que publiquei em 2021 com a intenção de atrair especialmente os jovens. Talvez você não saiba, mas tumbeiro é sinônimo de navio negreiro. Na travessia marítima da África para a América, os pretos morriam às dezenas. Viajavam em tumbas, não em navios. Agora preparo outro livro, um infantil sobre o abolicionista José do Patrocínio, que será lançado em julho, na Bienal de São Paulo.

Costumo dizer que não tenho nada contra os brancos. Minha desavença é com os racistas. Ou melhor: é com o racismo que está impregnado em nossa sociedade e se manifesta nas situações mais comuns. Nem sempre as pessoas que expressam preconceito desejam realmente discriminar. Muitas vezes, agem por impulso, sem perceber a imensa dor que causam. Chamar negros de macacos pode até não parecer tão ofensivo para um branco. Há quem ache que o xingamento é uma brincadeira. Estão redondamente enganados. Nenhum branco faz ideia do que os negros sentem quando são desumanizados.
Lembre-se disso toda vez que entrar em campo, Rafael, e continue lembrando fora dos estádios. Se por acaso você derrapar e disser uma bobagem para alguém, admita logo. Não finja que nada aconteceu. Assuma o erro e peça desculpas.
(revista piauí)

domingo, 1 de maio de 2022

Esqueceram de mim

Um casal de veterinários, uma guerra e uma legião de animais abandonados

Assim que Leonid e Valentina Stoyanov iniciaram a conversa por vídeo, uma sinfonia desordenada de gorjeios, assobios, grasnidos, arrulhos, pios e cacarejos se misturou às vozes deles. “Mil desculpas pela barulheira. É que estamos cuidando de umas cem aves”, explicou Valentina. Nenhum dos bichos aparecia na tela do computador. A sala em que a dupla se acomodou para a entrevista abrigava somente um camaleão. O pequeno réptil descansava num aquário retangular, espaçoso e sem água. Embora risonho, o casal de veterinários não conseguia esconder o cansaço.
Eram onze e meia da manhã no Rio de Janeiro. Em Odessa, onde nasceram e ainda moram, os Stoyanov estavam seis horas à frente. Naquela segunda-feira de abril, a terceira maior cidade da Ucrânia, com 1 milhão de habitantes, aguardava novos ataques russos. Desde que as tropas de Vladimir Putin invadiram o país, em fevereiro, a litorânea Odessa e seus arredores têm sofrido bombardeios frequentes. Os mísseis vêm de navios no Mar Negro. Às vezes, a fuzilaria também parte de aviões supersônicos. Os ataques visam sobretudo fábricas, refinarias, depósitos de combustíveis e outros pontos que a Rússia considera estratégicos para abalar a infraestrutura ucraniana. De tempos em tempos, drones sobrevoam a cidade com o intuito de mapear futuros alvos. Muitas das agressões têm como efeito colateral a destruição de moradias, já que as explosões espalham uma quantidade significativa de estilhaços.
As autoridades acionam sirenes tão logo detectam o risco de ataques. Nessas ocasiões, as igrejas badalam os sinos freneticamente. Uns saem das ruas ou se afastam das janelas caso estejam em ambiente fechado. Outros buscam proteção nos abrigos subterrâneos que a Ucrânia instalou quando pertencia à União Soviética. Há, ainda, quem procure as centenas de galerias, também subterrâneas, que atravessam Odessa. Escavadas a partir do século XVIII, somam pelo menos 2,5 mil km de extensão. A maioria funcionava como mina de calcário, rocha sedimentar usada na construção civil. Algumas integravam o sistema de esgoto. Hoje todas estão inativas e muitas viraram atração turística. Ironicamente, mesmo contando com uma rede tão vasta de túneis, a cidade não dispõe de metrô.
Nos momentos de maior perigo, o governo decreta toques de recolher, que podem suspender a circulação pelas ruas por mais de 24 horas. Milhares de pessoas saíram de Odessa desde que a guerra começou. Uma parcela dos egressos abandonou os animais de estimação, seja pela dificuldade de transportá-los, seja pelo temor de não conseguir entrar nos países fronteiriços com os bichos.
Sem intenção de ir embora da Ucrânia, os Stoyanov resolveram acolher uma legião de cães, gatos, roedores, pássaros, galinhas, cacatuas, papagaios, tartarugas, lagartos e camaleões deixados para trás. “Fora as cem aves, resgatamos 120 animais até agora”, diz Leonid. “Uma loucura! Estamos tão atarefados que já não sabemos direito o que é dormir.” A dupla levou boa parte dos recolhidos para a clínica que comanda perto do Centro de Odessa. Os restantes ficam na casa térrea dos veterinários, que tem um quintal amplo e arborizado, ou nos domicílios de familiares e amigos. “Ultimamente, nenhum dos nossos conhecidos ousa atender às minhas ligações. Eles logo pensam: ‘Aposto que aquele maluco vai querer me empurrar mais um cachorro…’”, reclama Leonid, em tom de zombaria.

Odessa é uma cidade bilíngue. Lá se fala tanto russo quanto ucraniano. Não raro, os nativos misturam os dois idiomas num mesmo diálogo. O casal preferiu dar a entrevista de quase três horas em russo. George Yurievitch Ribeiro, filho de uma pedagoga moscovita e um historiador paulistano, a traduziu. “Conseguem escutar as sirenes?”, pergunta Valentina após quarenta minutos de conversa. “Acabaram de soar.” Por estar dentro da clínica, numa espécie de porão, a dupla não precisou buscar abrigo.
Os Stoyanov já criavam diversos bichos quando o conflito estourou – as cadelas Alma, Bonitta e Aurora, o macaco Tosya, dez sapos, um camaleão e algumas tartarugas, além de cobras. “Somos exagerados”, admite Leonid. De acordo com o veterinário, no ano passado, 30% dos ucranianos tinham animais de estimação. Como o país reunia 43,7 milhões de habitantes à época, a fauna doméstica superava os 13 milhões de bichos, especialmente gatos. Quantos perderam os tutores de fevereiro para cá? “Difícil responder. Não existem levantamentos oficiais”, diz Valentina. A Organização das Nações Unidas calcula que 5 milhões de pessoas fugiram da Ucrânia e 7,1 milhões se deslocaram internamente em virtude dos recentes confrontos. Grande parte dos refugiados migrou para a Polônia, Moldávia, Hungria e Romênia. É o maior êxodo na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
A minoria dos 220 animais que os Stoyanov acolheram chegou por intermédio dos próprios tutores. “A situação do Kasper nos parece a mais trágica”, diz Leonid. Cego, o husky siberiano morava com um jovem militar. “As Forças Armadas convocaram o rapaz para o front. Ele é órfão e não tem parentes vivos. Por isso, considera o cachorro um membro da família”, conta Valentina. Pouco antes de se juntar às tropas, o soldado entregou o husky para o casal e pediu, chorando: “Gostaria que vocês me enviassem imagens do Kasper todos os dias.” Os dois vêm cumprindo o desejo do combatente. “Só que não sabemos nada dele há três semanas. Mandamos as fotos e os vídeos, mas o rapaz segue em silêncio. Não se manifesta de jeito nenhum, ao contrário do que fazia antes”, lamenta a veterinária. “É inevitável pensar no pior…” Noventa por cento dos animais acolhidos pela dupla já não recebiam cuidados de ninguém. Ocupavam gaiolas largadas nas ruas, ou estavam amarrados em postes, ou padeciam dentro de casas vazias. “A gente mesmo resgatou os bichos, depois de avaliar denúncias enviadas por telefone e pelas redes sociais”, diz Leonid. Os Stoyanov acreditam que havia mais abandonos no princípio da guerra. Àquela altura, a comunidade internacional ainda não decidira se aceitaria refugiados com animais de estimação. “Agora as coisas mudaram”, festeja Valentina. “Muitos países facilitaram a entrada de bichos ucranianos, inclusive o Brasil.” Em março, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento permitiu o ingresso de cães e gatos originários da Ucrânia, sem a necessidade de certificação sanitária. A medida, porém, não vale para répteis, aves e demais mamíferos.
Um dos destaques entre os bichos que escaparam é Stepan, gato malhado com milhões de admiradores no Instagram e TikTok. O influencer de quatro patas vivia em Kharkiv e se tornou ainda mais célebre há quase seis meses, depois que a cantora norte-americana Britney Spears postou uma foto dele. A família responsável por Stepan deixou às pressas a cidade do nordeste ucraniano, severamente bombardeada. No início de março, cruzou a fronteira com a Polônia e seguiu para a França. De lá, o bichano continua atraindo novos fãs.

Os Stoyanov planejam oferecer os animais recolhidos à adoção logo que o confronto terminar. “Mas é claro que, se os tutores quiserem os bichos de volta, nós vamos devolver”, diz Leonid. Outros ativistas realizam ações similares às da dupla em toda a Ucrânia. Mesmo alemães, holandeses, romenos e poloneses viajam até as zonas de guerra para acudir pets desalojados. Eles também resgatam habitantes de zoológicos danificados pelos russos ou sob a ameaça de bombardeio.
Não bastasse o abandono, os animais ficam assustadíssimos com os tiroteios, estrondos e sirenes. “Hoje uma moradora de Odessa me escreveu, desesperada: ‘Minha tartaruga parou de comer! O que faço?’ Infelizmente, não tenho como ajudar. É o estresse que está tirando a fome da pobrezinha”, aflige-se Leonid. No zoo de Kiev, capital ucraniana, o elefante-asiático Horace toma sedativos. Mesmo assim, desperta inúmeras vezes durante a noite. Para acalmá-lo, tratadores dormem perto dele e lhe dão maçã sempre que acorda.
Casados desde agosto de 2017 e sem filhos, os Stoyanov descobriram bem cedo o apreço pela veterinária. “Nunca cogitei outra profissão. Eu mal sabia falar e já anunciava: ‘Quando crescer, vou salvar os bichos doentes’”, lembra Valentina, que completará 29 anos em julho. Leonid, de 34, recorda que pegava minhocas na infância para lhes aplicar injeções fictícias. Agora a dupla cuida tanto de animais selvagens quanto dos domésticos. O casal também faz pesquisas acadêmicas na área de parasitologia. Valentina estuda os parasitas das aves. Leonid, os dos répteis. Nas redes sociais, há fotos e vídeos em que os dois interagem com tigres, leões, antílopes, zebras, leopardos, rinocerontes, bisões, lêmures, girafas, crocodilos e flamingos na Europa, Ásia e África.
Antes da guerra, além de se dedicarem à clínica particular, os Stoyanov reservavam parte do tempo para a Vet Crew. Fundada e administrada por ambos, a instituição sem fins lucrativos socorre bichos selvagens que se acidentaram ou sofreram agressões. “Em geral, a violência acontece nos circos e zoológicos de contato, uma vergonhosa tradição ucraniana. Não posso acreditar que ainda existam”, diz Leonid. Os zoos de contato operam em shoppings e permitem que o público toque nos animais, o que os incomoda bastante.
A própria dupla banca os custos da Vet Crew, que tem quatro funcionários – dois remunerados e dois voluntários. Os demais colaboradores são esporádicos e também não ganham nada. “Depois de tratar dos bichos, procuramos devolvê-los à natureza”, diz Valentina. No caso dos que sempre viveram em cativeiro ou perderam a capacidade de se virar, a saída é mandá-los para santuários ecológicos. “Um dia, aliás, vamos inaugurar o nosso”, promete Leonid.

Em abril de 2021, os veterinários dirigiram mais de 800 km até Kharkiv com a missão de resgatar Simba, um leão de 9 meses que enfrentava maus-tratos num diminuto zoológico. “O dono exibia o felino dentro de um shopping. Frequentemente, botava uma coleira no bicho e o levava para passear em meio às lojas, causando um tumulto que perturbava o leãozinho”, diz Valentina. De início, o dono não topou abrir mão do animal. “Gastamos muita saliva para convencê-lo.”
No mesmo zoo de contato, o casal encontrou Anatoli, um filhote de macaco-berbere que estava à beira da morte. “Ele dividia uma gaiola com vários porquinhos-da-índia. Tinha fraturas pelo corpo inteiro e um rasgo imenso no crânio”, recorda Valentina. Outro prisioneiro do zoológico, um primata adulto, mordera e espancara o filhote. “Assim que nos viu, o macaquinho saiu da gaiola aberta e segurou o meu polegar. Era um pedido de ajuda”, diz Leonid.
A dupla aproveitou a viagem e também resgatou Anatoli. “De cara, trocamos o nome dele para Tosya”, conta Valentina. Mais tarde, na clínica, os Stoyanov constataram que o bicho sofre de epilepsia, provocada pela lesão craniana, e gastrite crônica, fruto da má alimentação. Em vez de leite, o zoo lhe fornecia salsicha, pão e água. “Macacos-berberes duram entre duas e três décadas. Com uma saúde tão frágil, o Tosya só vai sobreviver tanto tempo se receber atenção humana. Jamais poderemos libertá-lo”, prevê Leonid.
O casal já fazia certo sucesso antes de adotar o macaquinho. Aparecia em programas de tevê e mantinha um bom número de seguidores nas redes sociais. Tosya, porém, elevou a fama da dupla à enésima potência. Há um ano, Valentina divulgou um vídeo no TikTok em que comia rabanetes com o mascote, sem falar absolutamente nada. Foi uma sensação: a cena rendeu mais de 15 milhões de visualizações. Empolgada, a veterinária decidiu gravar outros vídeos do gênero. Ela só mudava os petiscos do macaco – cenoura, queijo cottage, maçã, blueberry, melancia… O público de diversos países continuou aplaudindo. A glória suprema chegou quando o filhote e a tutora compartilharam um punhado de morangos. A gracinha ultrapassou 180 milhões de visualizações. Lógico que Valentina pegou carona no êxito planetário de Tosya para difundir, em inglês, o trabalho da Vet Crew.
Com a guerra, os fãs do macaquinho resolveram doar remédios, ração e dinheiro à causa dos Stoyanov. “Os donativos possibilitam que a gente atenda todas as necessidades dos animais resgatados. Sempre que sobra alguma coisa, encaminhamos para outros ativistas”, explica Leonid. A maioria das doações estrangeiras advém da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos, da Alemanha e do Brasil. “Nós amamos os brasileiros! Que povo generoso e simpático!”, derrama-se o veterinário. “As mensagens de vocês nas redes sociais nos enchem de calor e afeto. Se tudo correr bem, conheceremos a Amazônia e o Pantanal em breve.”

Fascistas. É assim que o casal define os militares da Rússia. “Vamos expulsá-los! Queria muito estar em combate. Tentei ingressar nos batalhões civis de resistência, mas me barraram porque não sei atirar”, conta Leonid. Valentina faz coro: “Eu também queria ir para o front. Somos pacifistas e não nos metíamos em política. Só que a guerra exige coragem e perseverança de cada ucraniano. Se os russos pretendem usurpar a nossa liberdade, não vamos permitir. Eles imaginavam o quê? Que invadiriam a terra alheia e logo ditariam as regras? Pois vão se dar mal!”
Os dois evitam citar o nome de Putin, “o chefão dos inimigos”. “Basta pensar no cara que sinto calafrios. Idiota!”, esbraveja Leonid. Para a dupla, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, se revelou um líder excepcional, “o único em toda a história ucraniana que abdicou dos próprios interesses e priorizou a nação”. “Qualquer outro já teria fugido do país. Votamos no Zelensky e não nos arrependemos”, diz Valentina.
Os Stoyanov cortaram relações com os amigos e colegas russos. “Eles simplesmente não acreditam que há um genocídio por aqui. Parece que o governo daquele imbecil os hipnotizou”, resmunga Leonid. Ex-praticante de luta livre (ou wrestling), o veterinário perdeu 11 dos 113 kg que pesava antes da guerra. “Culpa da tensão… Há algumas semanas, um míssil passou em cima da nossa casa. O barulho nos acordou às quatro da manhã. Por enquanto, as tropas fascistas não tomaram Odessa. E se tomarem? O que será de nós?”
Em 23 de abril, dezenove dias depois da entrevista, a cidade amargou o pior ataque aéreo desde o começo do conflito. Os russos lançaram sete mísseis contra Odessa. Um dos artefatos atingiu uma zona residencial e matou pelo menos oito pessoas, incluindo um bebê de 3 meses. No TikTok, os Stoyanov informaram estar bem, apesar do susto.
(revista piauí)

terça-feira, 1 de março de 2022

A dor como herança

Uma neta diante das revelações deixadas por escrito pela avó

S
e lhe pedissem para definir a avó materna em poucas palavras, a carioca Nanda Félix não hesitaria em pegar emprestado o título de uma antiga opereta: A Viúva Alegre. Composta pelo austro-húngaro Franz Lehár, a peça cômica narra a trajetória de Hannah, uma jovem bonita, sedutora e espirituosa que herda a fortuna do marido banqueiro. A primeira montagem, de 1905, não agradou. Com o tempo, porém, o espetáculo alcançou tamanho sucesso que acabou ganhando pelo menos três versões cinematográficas. Em março de 1982, quando enviuvou, Maninha – a avó de Félix – já não exibia a mocidade de Hannah (beirava os 60 anos) nem ficou milionária, embora gozasse de boas condições financeiras. Mesmo assim, a neta costumava associá-la à protagonista da opereta famosa. “Como nasci em outubro de 1981, mal conheci o meu avô. Não sei quase nada sobre a personalidade ou os hábitos dele. Em compensação, pude conviver bastante com minha avó, que me dava a impressão de esbanjar felicidade. Era carismática, sagaz, engraçadíssima e, principalmente, curiosa. Ela se interessava por tudo e todos. Não fugia da vida.”

(mais…)

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Faro afiado

Um rato africano contra as minas terrestres

Ele não dava nenhuma bandeira de que defendia os fracos e oprimidos. Pelo contrário: quem o avistasse numa savana ou floresta logo se assustaria e sairia correndo. Dificilmente alguém imaginaria que aquela criaturinha dentuça salvara inúmeras almas por causa de um insólito superpoder, o olfato afiadíssimo. O herói sem capa nem escudo chamava-se Magawa e nasceu na Tanzânia, país da África Oriental, mas virou lenda graças às façanhas que protagonizou em outra região: o Sudeste Asiático. Era, por incrível que pareça, um rato.
Com pelagem castanha, inevitáveis orelhas de abano, cauda maior que o resto do corpo e bigodes tão longos que matariam Salvador Dalí de inveja, pesava 1,2 kg e media 70 cm de comprimento. Não tinha, está claro, o porte de um rinoceronte ou hipopótamo. Mesmo assim, os zoólogos o classificavam como um rato-gigante-do-sul. A espécie atende pelo nome científico de Cricetomys ansorgei e é bem mais parruda que os hamsters, camundongos e outros bigodudos.

(mais…)

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

"Nunca deixe de se divertir, cara!"

Uma carta para o nadador Gabriel Araújo, que ganhou três medalhas em sua primeira paralimpíada, a de Tóquio

DANIEL DIAS, em depoimento a Armando Antenore

Gabrielzinho,
Como vai? Embora não sejamos muito próximos, me sinto à vontade para chamá-lo assim, pelo diminutivo carinhoso que o acompanha desde criança. Espero que você não se importe. Logo que nos conhecemos, há dois anos, em Lima, durante os Jogos Parapan-Americanos, notei certa semelhança entre nós. Não me refiro apenas às nossas deficiências motoras. Você sofre de focomelia, doença congênita que impede o desenvolvimento normal dos membros superiores e inferiores. Eu tenho má-formação nos braços, na perna direita e no pé esquerdo. Também não estou falando propriamente de nosso apego à natação, o esporte que já nos deu tantas alegrias e nos possibilita rodar o mundo. Penso, acima de tudo, nas características menos notórias que nos unem. Por exemplo: você reparou que nossos pais nos batizaram com nomes de anjo e de profeta? Gabriel e Daniel, uma rima celestial que serviria perfeitamente para qualquer dupla sertaneja! Você é mineiro até a medula – nasceu em Santa Luzia, cresceu em Corinto e se radicou em Juiz de Fora. Eu sou paulista de Campinas, mas me criei numa cidadezinha de Minas, Camanducaia. Por isso, me considero um pouco mineiro também. Você parece tocar a vida com leveza. Esbanja carisma e dança de um jeito engraçado quando vence provas importantes. Eu me julgo igualmente extrovertido e procuro manter o alto-astral mesmo diante dos piores desafios.

(mais…)

domingo, 1 de agosto de 2021

"Acaba, pelo amor de Deus! Acaba!"

Um grupo de PMs no WhatsApp e a matança do Jacarezinho

Com deboche, espírito corporativo, fake news, ataques contra a TV Globo, demonização da esquerda e panfletos em favor do presidente Jair Bolsonaro. Foi assim que um grupo de PMs reagiu à mais agressiva e letal de todas as incursões já realizadas por forças de segurança pública na cidade do Rio de Janeiro. A operação do último dia 6 de maio começou logo cedo, invadiu a tarde e terminou com 28 mortos, incluindo um policial. A favela do Jacarezinho, uma das 1 018 que se espalham pela capital fluminense, serviu de palco para a matança. Naquela quinta-feira, 250 agentes da Polícia Civil ocuparam a localidade sob a justificativa de capturar 21 denunciados por associação ao tráfico e suspeitos de pertencer à facção Comando Vermelho (CV). Helicópteros blindados – os “caveirões voadores”, como ironizam os cariocas – apoiaram a investida terrestre.

(mais…)

domingo, 1 de agosto de 2021

Viva Nossa Senhora do Café!

Entrevista imaginária com a criadora do projeto Entreviste um Negro

Helaine com H? Sim, Helaine Braga Martins Pereira, um nome de responsa, quase tão extenso quanto os da nobreza. Mas, na prática, é menorzinho: Helaine Martins e ponto final. Bem mais adequado à plebeia aqui, né? Decidi encurtá-lo quando me tornei jornalista. Nomes grandes não funcionam na hora de assinar uma reportagem. Herdei o H dos parentes maternos. Vovó se chamava Helena. Mamãe se chama Heloísa. Meus tios, Hélio e Helenice. Só o Alan escapou da sina. Privilégio de caçula… Ele é meu único irmão. Apelido? Carrego uma infinidade. Lane, Nani, Lany, He… Deixo a escolha por conta do freguês.

(mais…)

sábado, 19 de junho de 2021

Nome aos números

No dia em que o Brasil ultrapassa a marca de 500 mil mortos pela Covid, um pouco da história de 137 deles

Celia Kamiya Abdala, de 75 anos, adorava roupas com mangas compridas e largas, que lembravam as asas de um morcego. Não por acaso, ganhou o apelido de Dona Batman. Acácio Cardoso Duarte, 68, cochilava à mesa durante os almoços de família. Humberto Vitach Gambaro, 86, fazia palavras cruzadas diariamente. Heládio Ferreira de Sousa, 91, nunca dormia sem rezar. Gessner Augusto Daré Júnior, 55, imitava o Incrível Hulk. Fernanda Caiuby Novaes Salata, 64, retratou em aquarelas os amigos imaginários dos filhos. Antonio Carlos Durans Diniz, 36, se levantava de madrugada para conversar com as plantas.
Getúlio Omito, 83, chamava a neta de “meu ouro”. Elcio Candido Moreira, 61, se orgulhava de operar empilhadeiras. Madalena Gomes Barbosa, 77, tinha fascinação por papagaios. Jacyr Simão, 80, cuidava de bonsais. Eric Barros Martins, 42, tomava cafezinho com os pães que ele próprio assava. Quando considerava algo espetacular, Ilza Garcia, 98, exclamava: “É federal!” Nerice Laura Eduardo de Mendonça, 56, não gostava do presidente Jair Bolsonaro. Gustavo Barreto Alcântara, 11, curtia viajar para a Disney. Ana Carolina Guimarães dos Santos, 38, detestava suco de goiaba. Robert da Luz Barradas, 62, comia somente a borda das pizzas. Gonçala Nicolau Fernandes, 86, assobiava cânticos religiosos enquanto cozinhava. Peladeiro, Élio Guedes Dias, 53, se vangloriava de jogar melhor que o Zico.
João Ferreira Lima, 79, fumava cigarro de palha. Adair Benedita da Silva, 61, presenteava as visitas com flores e mudas que cultivava em casa. Firmina Marques de Sousa, 97, reservou um par de sapatos para calçar assim que entrasse no Céu. Brazil Montalvao Marques, 64, trabalhava como guia turístico, mas não tirava foto de lugar nenhum. Hisazy Shikasho, 75, andava de bicicleta pelas manhãs. Fã de Taylor Swift, Glauco Moreira Beraldo, 26, não teve tempo de escutar o álbum mais recente da cantora. Jonas Félix de Oliveira, 83, falava esperanto. Edgard Viana de Sant’Ana, 95, leu toda a saga de Harry Potter só para discuti-la com os netos. Hildebrando Brito da Silva, 56, apreciava trocadilhos baratos. Quando lhe perguntavam como se chamava, respondia: “Ih, deu branco…” Nicette Bruno, 87, acreditava em reencarnação. Jonathan Neves, 31, fazia cover de Tim Maia na Avenida Paulista. Elza Maria Alves Gomes, 66, previa o futuro com a ajuda de um pêndulo. A refugiada síria Khadouj Makhzoum, 55, sempre repetia um ditado árabe: “O Paraíso sem as pessoas não é o Paraíso.” José Naves, 93, aprendeu inglês com John Wayne nos faroestes que os cinemas de Uberaba (MG) costumavam exibir. Gleycyely Costa Barros, 28, herdou da mãe, Rosiany, o apreço pelo y e o transmitiu para o filho, Byel.
Quitéria Cordeiro dos Santos, 85, sonhava em aparecer na tevê. Não conseguiu. Zenilde Alves da Silva, 58, alfabetizou os irmãos. Alayde Antônia Rossignolli Abate, 73, não desgrudava do cachorro Paçoca. Juntos, ouviam canções de Roberto Carlos. “Seu pretinho chegou!”, anunciava Eduardo Marques de Lima, 41, quando o ônibus urbano que dirigia parava em algum ponto. Angelo Campanerut, 64, devorava livros de ficção científica. Guiomar Guerreiro Alvares Spedo, 86, praticava hidroginástica com o marido três vezes por semana, havia quase trinta anos, na mesma academia. Marden Washington Pires Cavalcante, 65, inventou a palavra “caximbrema”, mas ninguém sabia direito o que significava. “Quer dizer problema”, arriscavam uns. “Não! Quer dizer saudades”, rebatiam outros.
Vanessa Pereira, 27, tingia os cabelos com cores marcantes: lilás, azul ou rosa-choque. Jaime Antunes, 92, beijava o retrato da mãe logo depois de acordar. Ildiko Êmese Holfinger Farias, 40, prometia à comadre: “Vamos envelhecer juntas e comer acarajé na beira do mar.” Donizete Luiz Frederico, 65, se gabava de ter bebido cerveja com Alceu Valença. José Pinto Neto, 74, viajou pela primeira vez de avião em 2019. Foi para Fortaleza. Abdon Albuquerque Cavalcante, 82, guardava palitos de dente em caixas de sapato. Jorléia da Silva Santos, 51, não recusava uma Coca-Cola. Patydan Castro, 34, estava grávida de seis meses. O bebê também morreu. Helena Hissacko Iwauchi, 79, confeccionava as próprias roupas. Iloivaldo Araújo Rodrigues Júnior, 44, se parecia com Fabio Assunção. Por ser muito culto, Danilo Guimarães Fenelon, 62, ostentava o título de “Google da família”. Geraldo Camilo Gomes, 85, acreditava que a pandemia acabaria no quadragésimo dia da quarentena.
O vaqueiro Ananias Manoel dos Santos, 74, nunca deixou de encontrar boi fujão. Celso Schreiber, 66, se sentia velho demais quando os netos o tratavam por vovô. “Me chamem de parente”, sugeria. Embora fosse brasileiro, Oswaldo Sanchez, 88, não abdicava de falar português com o sotaque espanhol dos pais. Ana Beatriz Cordeiro, 53, gostava de caminhar na mata. O taxista Benedito de Paula Silva, 75, rezava durante vinte minutos para Nossa Senhora Aparecida antes de trabalhar. Cecília Guimarães Mendes, 93, se esbaldava de rir com o seriado do Chaves. Alessandro Ricardo Corrêa, 44, perdia as estribeiras caso alguém o definisse como motoqueiro. “Sou motociclista!” Jorge Pereira de Oliveira, 65, se fantasiou de faraó para comemorar o último aniversário. Louca por novelas, Abigail Pinto Magalhães, 88, interagia com as tramas: “Xiii, sei bem onde isso vai dar…” Alcirene Aires Moura, 59, conheceu o marido num baile de servidores públicos. Ele a tirou para dançar Say You, Say Me, de Lionel Ritchie.
Era sagrado: toda noite, às nove e meia, Cirene Guilhermina Pires, 67, papeava com a filha pelo telefone. Ednilson dos Santos Escobar, 59, sempre lembrava que a sobrinha nasceu “no dia em que o Corinthians ganhou o Mundial”. Às vezes, Ely Marcelo Costa da Silva, 38, fazia voz de bebê. Helena Conti Guimarães, 79, ainda pirava com o Iron Maiden. Haroldo Barbosa Moraes, 66, amava mergulhar. Adélio Electo, 84, embaralhava a ordem das palavras sem perceber. Dizia “no escurema do cininho”, para a delícia de quem o escutava. Pouco antes de sucumbir à Covid-19, Agatha Lima, 25, viu um cavalo branco sair de uma parede. Deduziu que a miragem significava partida.
Jair Táparo, 61, permitia que a única neta o maquiasse. Paulo Azeredo Brito manteve o hábito de xeretar programas eróticos na televisão até os 90 anos. Morreu com 98. Elizabeth Barbosa, 56, só tomava cerveja sem álcool. Marly Gomes da Silva, 49, passou fome na infância. Certa ocasião, Willian Santiago, 30, cismou de ajardinar o próprio rosto. Cobriu um dos olhos com uma margarida e tirou uma selfie. Giovani de Jesus Pesuscki, 52, se vestia de Papai Noel na ceia de Natal. Luiz Fernando Cardoso, 40, mandava cartões postais para os amigos quando viajava. Bruno Cunha Soares, 31, se proclamava são-paulino roxo, mas às vezes torcia pelo Bragantino. José Duque Sobrinho, 75, evitava palavrões. Preferia substituí-los por neologismos, como “potranco” e “mucureba”.
Paulo Gustavo, 42, imitava a mãe perfeitamente. Gracinda dos Santos, 109, lotava os bolsos com balas em forma de coração, que distribuía para todo mundo. Larissa Blanco, 23, colhia frutas no pé. Helio Sebastião Pires, 78, dormia de touca. João Batista Alves dos Reis, 60, animava bailes como percussionista do Conjunto Extremunsom. “Desconheço carro melhor”, replicava Brasílio Gonçalves, 74, sempre que lhe indagavam por que ainda guiava um Passat 1982. Rafael Ramos, 33, visitou uma exposição sobre Game of Thrones com a irmã. Carivaldina Oliveira Costa, 79, caçava caramujo para fazer uma sopa típica dos negros que moram no Quilombo da Rasa, em Búzios (RJ).
Gutemberg da Silva Barbosa, 48, trajava calças jeans tão apertadas quanto as dos sertanejos Bruno & Marrone. O beatlemaníaco Cesar Augusto Martins Medeiros, 59, planejava tirar férias em Liverpool. José Adamastor Morgado Britto, 73, jamais revelou o segredo da batatinha com calabresa que servia à família. Kamilly Ribeiro, 17, se preparava para o vestibular de medicina. Paulo Sérgio Fabiano Bechelli, 53, considerava Sean Connery o melhor James Bond de todos os tempos.
Letícia Neworal Fava, 28, gostava de admirar o pôr do sol. José Lopes da Silva, 80, jurava que se comunicava com ETs. Aldevan Baniwa, 46, arrasava no nheengatu, língua do tronco tupi-guarani. Carlos Alberto Brasil, 75, deu um fogão para cada filho que saiu de casa. Edite do Nascimento Pereira, 83, nunca usava chinelos na rua. Ignez Branco Baptista acreditava que iria viver cem anos. Faltaram nove. Gastão Dias Júnior, 51, colecionava tartarugas decorativas. Braulino de Souza Valadão, 73, arrumava os cabelos com afinco e ficava irritadíssimo se um único fio abandonasse a posição que o pente lhe destinara. Marcelo Morellato, 62, não suportava comida fria. Erich Grossert, 78, xingava o juiz enquanto via jogos do Palmeiras pela tevê. Wellerson Calixto, 23, trabalhava como jovem aprendiz. Leitora compulsiva de biografias, Esther Godoy Penna, 97, concluiu que, no fim das contas, somos todos iguais: “As mesmas dores, as mesmas alegrias.”
Jairo Dornelles da Silva Sales, 34, recomendava à irmã e à mulher que guardassem momentos, não dinheiro. Genival Lacerda, 89, sempre esteve de olho na butique de Severina Xique Xique. Dagmar Thomé Gonçalves, 93, tecia sapatinhos de lã para os parentes. Givanildo Viana de Meneses, 46, estudava hipnotismo. Edgard Farah, 81, buscava os netos na escola com um Fusca bege. Alice Kikue Ishimine, 72, dominava os sete rituais do luto japonês. Madjer Okde, 30, ensinava jiu-jítsu para crianças pobres. Fernando Morais de Melo, 64, queria voar de balão pela Capadócia, na Turquia. Voou, mas em Boituva, no interior de São Paulo. Dalva Maria Portilho da Mata, 59, pedia bênção à mãe todos os dias. Quando atingiu a terceira idade, Joana Silveira, 61, constatou: “Não sou velha. Velho é o mundo!”
Adeilson Marinho da Silva, 39, gastava pelo menos uma hora no banho. O flamenguista José Mauro Brochado, 70, cumprimentava os outros com um bordão improvável: “Fala, vascaíno!” Agostinho Rodrigues Samias, 84, contava que já havia lutado contra um jacaré de cinco metros. João Gadelha da Costa Neto, 49, teimava em comprar brinquedos para si mesmo. Só assim conseguia afugentar as lembranças da infância pobre. Edigar Alves dos Santos, 61, limpava o carro com panos de prato que roubava da mulher. Na cidadezinha onde passou a juventude, Zilma Berriel de Toledo Piza, 82, aprontou tanto que até namorou o padre. Abel Augusto Teixeira, 65, sempre dizia que estava tudo bem, mesmo se não estivesse.
Iracema Amorim, 76, sabia entoar os cantos tradicionais dos guajajaras, povo indígena do Maranhão. João Batista da Silva, 68, pagava as contas antes do vencimento. Cairo José Ferreira Gama, 41, adorava perambular de chapéu pelas ruas de Manaus. Botafoguense fanático, Agnaldo Timóteo, 84, doou uma geladeira para o time carioca. Maria Angélica Rangel, 52, pretendia abrir uma loja de artesanato. Izaac de Souza Tavares, 67, se deleitava em “dar alicate” nos netos, aquele beliscãozinho com os dedos dos pés. Eloi de Lima Alves, 81, demorou muito para assumir os cabelos brancos.
Aldir Blanc, 73, imaginava que a lua, tal qual a dona de um bordel, pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel. Carmo Camilo da Silva, 42, se encarregava de lavar a louça por uma semana quando a mulher e a filha decidiam fazer as unhas. Giduvaldo de Souto Lima, 85, tinha o costume de beber cerveja enquanto acompanhava os telejornais. Mal abria uma latinha, perguntava para quem estivesse perto: “Vai uma água mineral com gás?” Renato Aurélio da Rocha, 77, se negava a apagar velinhas de aniversário. Benedita Aparecida Guicioli, 65, odiava o nome Benedita, mas não o trocou em respeito à mãe, que o escolhera. Depois do almoço, Francis Nunes, 84, saboreava religiosamente uma paçoca diet. Idalice Cordeiro dos Santos, 93, deu o primeiro banho em cada um dos dezesseis netos. Piadista, Filipe Roberto Conde, 40, garantiu para os sobrinhos que descobriria a cura da Covid-19.

* As informações deste texto foram extraídas do portal Inumeráveis e de obituários publicados na Folha de S.Paulo.
(site da revista piauí)

sábado, 1 de maio de 2021

Um pé na cozinha e outro na pós

A elite branca está preparada para ter uma empregada negra que faz mestrado?
GIZELE MACHADO TORRES, em depoimento a Armando Antenore
(mais…)
Contato | Bio | Blog | Reportagens | Entrevistas | Perfis | Artigos | Minha Primeira Vez | Confessionário | Máscara | Livros

Webmaster: Igor Queiroz