sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Oásis

Não há ninguém mais solitário do que um adolescente sozinho no verão. Ter 13 anos e sentir o Sol – todos os sóis – à flor da pele, mas não dispor de um irmão, um amigo, um primo, um cachorro ou uma namorada, principalmente uma namorada, para entardecer pela cidade dói tanto quanto a ausência do mar na praia.
Era verão. Eu tinha 13 anos, acabara de entrar em férias e estava sem companhia. Irmão, amigo e primo continuavam penando no colégio, às voltas com provas de recuperação. O cachorro dormia o sono quase contínuo dos cachorros envelhecidos. Faltavam-lhe o ânimo e a fidelidade de outros tempos. Já a namorada, inexistente, existia apenas nas minhas invencionices de rapazinho imberbe, magro e muito tímido.
Às vinte para as três, resolvi perambular sob o mormaço das ruas, como um tuaregue de walkman e bicicleta. Pedalei, pedalei, pedalei até desembocar na praça imensa e alta, de onde conseguia avistar meu bairro inteiro, o mais verde de uma metrópole pouco verde. Àquela hora e debaixo daquele calor, só meia dúzia de pardais e um sorveteiro entediado ousavam derreter por lá. Sentei-me num banco de cimento e aguardei a única coisa que os rapazinhos imberbes, magros e muito tímidos costumam esperar: um milagre capaz de torná-los menos imberbes, magros e tímidos.
Foi quando surgiu um anjo de shortinho jeans, camiseta vermelha e uns brincos hippies que me pareceram reluzir como diamantes da Tiffany, os mesmos usados pela Audrey Hepburn num filme que a Globo vivia exibindo. Então os anjos não precisavam de asas e podiam se transfigurar em meninas?Embora recém-caída dos céus, a morena de olhos inteligentes e cabelos joãozinho esbanjava umas pernas imaculadas – nenhum arranhão, nenhum hematoma –, que caminhavam com desembaraço para o meu lado. Será possível que irão estacionar diante do banco em que me encontro? Estacionaram. Será possível que irão se sentar praticamente coladas às minhas? Sentaram-se. E logo se remexeram, e logo se cruzaram, mas não disseram uma palavra. Contentaram-se em permanecer ali, misteriosas, roubando-me o ar e o prumo.
Tenho que romper o silêncio! Arriscar um “oi”, sacar da cartucheira alguma observação matadora, sugerir um rolê de bicicleta ou, quem sabe, iniciar uma canção e uma dancinha, na esperança de transformar a tarde em videoclipe. Elas, as pernas e a dona das pernas, já deram os primeiros passos. Tudo agora depende de mim. De mim, de mim, de mim!
Não faço ideia de quantos séculos perdi em tais conjecturas. Só lembro que, quando a pressão mostrou-se insuportável e um AVC se avizinhava, ameaçando me converter numa improbabilidade médica, abandonei o banco depressa, peguei a bike e chispei dali, enfurecido com minha covardia.
Idiota! Merece apodrecer na solidão! Do nada, o acaso lhe manda um presente e você o recusa? À medida que me aproximava de casa, a indignação e o arrependimento cresciam. Vai realmente zombar da sorte, infeliz? Vai? Vai?! Não vai! Enchendo-me de uma insuspeitada bravura, resolvi dar marcha à ré e disparei de novo para a praça. Que o presente ainda esteja lá, que ainda esteja lá, que ainda esteja lá.
Não estava, claro – nem lá, nem acolá, nem em lugar nenhum. Mesmo sem asas, o anjo voou, deixando-me apenas com o sorveteiro entediado (ou o tédio morava em mim?) e a meia dúzia de pardais, que já não somavam meia dúzia e talvez nunca tenham sido pardais.

domingo, 1 de novembro de 2015

Uma aparição

Como Paulo Coelho me ajudou a encontrar Jesus em Bogotá

“Precisamos fazer um pacto. Eu e você, numa igreja católica. De preferência, amanhã mesmo. Só assim levarei o projeto adiante.” O best-seller Paulo Coelho – em carne, osso e aura – estabeleceu a condição uns 15 minutos depois de nos conhecermos pessoalmente. Era abril de 2001 e estávamos num Boeing da Avianca. A aeronave, que partira do Rio, seguia para Bogotá, onde o autor lançaria O Demônio e a Senhorita Prym. Ele viajava na classe executiva (óbvio) e sabia que um jornalista da econômica iria procurá-lo durante o voo. Havia poucas semanas, uma editora me propusera escrever a biografia autorizada de Paulo. O romancista carioca simpatizara com a ideia, mas avisou que não a aprovaria sem antes me encontrar. Queria ver se nossos santos batiam. Sugeriu, então, que o acompanhasse à capital da Colômbia. Até aquela ocasião, nenhum de nós visitara a cidade.
Chegamos à noitinha e logo nos dirigimos para o luxuoso hotel Estelar La Fontana, que se parece com um castelo. Na manhã seguinte, pedimos à concierge que nos indicasse a igreja mais próxima (o Google Maps ainda não existia). Esqueci o nome do pequeno templo em que, diante de Cristo, firmamos o tal pacto: o compromisso de nos respeitar mutuamente enquanto trabalhássemos juntos. Mas lembro que se localizava na Praça de Usaquén, um lugar agradabilíssimo, rodeado de sobrados coloniais.
Quando deixamos a igreja, resolvemos caminhar pelos arredores. Paulo observava as casas sem demonstrar grande interesse. De repente, uma lhe despertou a atenção. “Gostei daqui”, comentou. A construção, aparentemente, não exibia nada de especial. Mesmo assim, o mago interrompeu o passeio para examiná-la melhor. Um rapaz, que saía do sobrado, o reconheceu de imediato. “Don Paulo! Que prazer tê-lo à minha porta!”, festejou. “Entre, por favor. Sempre sonhei em recebê-lo.” Bastou darmos uns passos para notar que o interior da casa evocava O Alquimista, talvez o livro mais famoso do escritor. Partes do romance, transcritas e ilustradas, se espalhavam pelas paredes e compunham um vasto painel. O moço explicou que ali funcionava um híbrido de café e escola para jovens pobres. “Tomei coragem de inaugurar o espaço depois de ler O Alquimista e aprender uma lição preciosa: devemos buscar aquilo que desejamos profundamente.” O romancista perguntou como o rapaz se chamava. “Jesus”, respondeu. Quase caí para trás. “Vá se acostumando”, me disse Paulo, risonho. “Eu atraio coincidências.” De fato, enquanto convivemos, pude testemunhar muitas outras situações intrigantes. Em 2002, porém, o romancista acabou desistindo do projeto e nunca mais nos falamos.
(revista Viagem e Turismo)

segunda-feira, 30 de junho de 2014

O mulherzinha

Por que destilamos contra uns a crueldade que não arremessaríamos contra outros?

Recentemente, me lembrei do Maurício. Era um menino de 7 ou 8 anos à época em que o conheci. Estudávamos na primeira série de uma pequenina escola católica, sob a vigilância severa de madres franciscanas. Maurício tinha os cabelos negros e encaracolados, o corpo miúdo, as pernas tortas e a voz fina – mais fina que a de todos nós, os machinhos com quem tentava brincar durante o recreio. Não gostávamos dele e não permitíamos que se enturmasse. “Fora daqui, piolho!”, berrávamos às gargalhadas. Garotos deveriam se expressar de outra maneira, nunca daquele jeito molenga e agudo que insistia em contaminar as palavras do Maurício. Garotos tampouco deveriam chorar, e o Maurício chorava à beça, por qualquer bobagem. “Notou como o paspalho rebola quando corre?”, comentávamos, impiedosos. “É um mulherzinha mesmo…” Falávamos exatamente assim: “um mulherzinha” – o artigo no masculino e o substantivo no feminino, talvez para reiterar a estranheza do Maurício, o lugar confuso que ocupava diante de crianças ávidas por encaixar tudo em espaços bem definidos.

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quarta-feira, 30 de abril de 2014

Quão sujo você é?

Faça o “teste da pureza” e descubra

“Tirar xérox da própria bunda ou da pepeca?! Que bizarro! Quem ousaria uma asneira dessas?!”, indignou-se Marlene com um sotaque carioca tão inconfundível quanto persistente. A morena de 30 e poucos anos abandonara o Rio de Janeiro havia quase duas décadas, mas o “r” arrastado e o “s” à beira do “x” teimavam em persegui-la, como mortos-vivos foragidos do cinema. Soraia e eu gargalhamos sem rédeas frente àquela repentina exasperação – menos por imaginarmos moçoilas posando em cima de fotocopiadoras e mais pelo substantivo que Marlene escolheu para driblar a palavra “vagina”. Pepeca, ostrinha, ximbica, popoca, bacurinha, periquita, xandoca… Por que, quando se refere à genitália feminina, tanta gente privilegia os termos de sonoridade infantil?

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terça-feira, 1 de abril de 2014

Uma façanha

Senhores de 81 anos ainda podem escalar o Everest?

Era terça-feira de Carnaval. Subvertendo a tradição modorrenta de outros tempos, as ruas paulistanas se encontravam repletas de foliões, que desfilavam com muito ímpeto e pouca ginga em blocos um tanto improvisados. Na contramão da farra, o apartamento onde meu pai vive há três décadas continuava silencioso e recatado como de praxe.
– Por acaso você tem aquele livro sobre o sertão de Minas? Um romance famosíssimo… Qual o título mesmo?, perguntou o velho, displicentemente, enquanto assistíamos à novela das seis (se é que alguém ainda diz “novela das seis”).
Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa. Tenho, sim. Está na redação ou em casa, não lembro direito.
– Me empresta? Quero ler.

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sábado, 1 de fevereiro de 2014

Sobre a impossibilidade de cavalgar um tigre

Como conciliar a ligeireza da paixão com um casamento duradouro?

Horror. Eis o que Jeanne sentia quando o marido se aproximou do cômodo onde o casal iria passar a noite de núpcias. Ela, muito jovem e recém-egressa de um convento, aguardara sofregamente aquela ocasião. Estava apaixonada por Julien e imaginava que os dois construiriam juntos um futuro luminoso. Mesmo assim, não conseguiu evitar que um medo gigantesco lhe paralisasse todo o corpo tão logo a criada a despiu. Sozinha no aposento, escutou o companheiro bater de leve à porta – uma, duas, três vezes. E agora? “As moças costumam se impressionar com a realidade quase brutal que se disfarça por trás dos sonhos”, avisara-lhe o pai, enigmático, horas antes das bodas. Procurava alertá-la para o que ocorreria dentro do quarto. Igualmente dilacerado pelo nervosismo e pela inexperiência, Julien adentrou o recinto e se deitou perto de Jeanne. Usava apenas meias e cuecas. Mal esbarrou nas pernas frias e peludas do rapaz, a garota sufocou um grito de repulsa. Julien arriscou tocar-lhe os seios. Jeanne, ainda petrificada, resistiu. Impaciente e atrapalhado, o parceiro tentou lhe impor um abraço. Depois, a cobriu de beijos e roubou-lhe a virgindade. Dor e decepção. Eis o que Jeanne sentia quando o marido finalmente se afastou.
O triste episódio é descrito no romance Uma Vida, que o francês Guy de Maupassant lançou em 1883. Filha única de um barão, criada sob as rédeas da inocência e do pudor, Jeanne se decepcionou não só com a lua-de-mel, mas principalmente com a rotina conjugal que a esperava. Em pouco tempo, o desastrado Julien – um visconde da Normandia – se revelou também avarento, rude, infiel e pai de uma criança bastarda. Como tudo pôde sair tão errado? A pergunta certamente inquietou muitos leitores da época. Os personagens da trama, afinal, seguiram ipsis litteris a cartilha do romantismo e se juntaram por ingerência exclusiva do coração. Ninguém, exceto o Cupido, os forçou àquela aventura em dupla. Não houve pressões familiares nem legais. Jeanne e Julien deveriam, portanto, estar livres dos infortúnios que marcavam os casamentos arranjados. Era, pelo menos, o que se acreditava na Europa do século 19. O matrimônio imposto, que continua hegemônico em certas sociedades tradicionais, já se provara suficientemente desastroso. Entre os males que estimulara, sobressaíam o adultério, a prostituição, o tratamento opressivo reservado às mulheres e a proliferação de herdeiros ilegítimos. Não à toa, diversos pensadores sustentavam que o inferno doméstico se dissiparia caso a atração física e o apego mútuo determinassem a união dos pretendentes. O segredo para o happy end consistia em substituir a obrigação pelo desejo. Na prática, porém, a nova fórmula não livrou os casais da frustração, conforme reiterava a catástrofe protagonizada por Jeanne e Julien.
Cientes dos problemas que as núpcias consensuais ainda enfrentavam, Stendhal, Honoré de Balzac, Victor Hugo e outros intelectuais de renome ousaram sugerir como remédio a quebra de um tabu arraigadíssimo: o de as jovens só poderem transar quando casadas. Libertá-las de uma sina tão contrária às urgências da mocidade favoreceria tanto as damas quanto os cavalheiros, já que ambos passariam a dispor de um elemento fundamental para escolher a metade da laranja com quem dividiriam o resto dos dias. O bom entrosamento na cama, ratificado antes de os pombinhos trocarem alianças, reduziria bastante – ou mesmo anularia – o risco de o matrimônio naufragar. Os séculos 20 e 21 acabaram provando a inconsistência da tese. Hoje, é mais fácil o Irã ganhar a Copa do que uma ocidental se casar virgem. A mudança de comportamento, no entanto, não consolidou a paz entre os sexos nem desestimulou as separações.
Diante de tal quadro, me soa bem adequada a  indagação que serve de título para um pequeno livro do filósofo parisiense Pascal Bruckner: Fracassou o Casamento por Amor?. O ensaio, lançado recentemente no Brasil pela Difel, tem apenas 104 páginas. Embora saboroso, gira em torno de uma constatação amarga: sim, o casamento por amor fracassou. O castelo do afeto recíproco, que a maioria de nós julgava firme e encantador o suficiente, se mostrou incapaz de atender às nossas expectativas. Segundo Bruckner, o motivo é mais simples do que parece: relações desse tipo buscam conciliar dois polos antagônicos. Ou melhor, atribuem para si uma tarefa impossível. Por um lado, almejam tudo o que as uniões compulsórias reivindicavam – construção de um sólido patrimônio financeiro, perenidade, filhos e abrigo contra as intempéries da solidão. Mas, por outro, pleiteiam manter sempre flamejante a chama das paixões. Ocorre que, em geral, o erótico possui fôlego curto. Selvagem e fugidio, nutre-se da surpresa, do risco e da instabilidade. Como, então, conservá-lo vivo num cenário que se edifica sobre a ambição de controle? Seria o mesmo que pretender cavalgar um tigre. Cedo ou tarde, diz o autor, todos os casais se dão conta do paradoxo em que se meteram. Àqueles que não quiserem o divórcio, resta abdicar do êxtase e continuar aproveitando as benesses da mansidão. Loucura? Nem tanto. Para o filósofo, a obrigatoriedade infinita de gozo é somente mais uma das tolices que nossa época inventou.
(revista VIP) 

domingo, 8 de outubro de 2000

"Quem quer dinheeeeiro"

Tímidas, quase assustadas, sete jogadoras da seleção feminina de futebol lamentavam, na última segunda–feira, as mazelas cotidianas: falta de patrocínio, remuneração irrisória, desinteresse da mídia. Espalhavam–se, as sete, pelo sofá aconchegante de Hebe. A apresentadora, claro, as acarinhava com os adjetivos de sempre: lindas de viver, gostosas, umas gracinhas as nossas heroínas, que retornaram de Sydney sob as glórias de ‘um honroso quarto lugar’.

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