terça-feira, 2 de junho de 2020

"Eu não aguento mais chorar"

Fragmentos de revolta contra o assassinato de negros pela polícia explodem em manifestação no Rio

D
e máscara branca sobre a boca e o nariz, Mônica Cunha – uma educadora negra de 54 anos – vociferava na frente do Palácio Guanabara, sede do governo fluminense: “O Estado não pode matar. O Estado não pode achar que somos descartáveis. Não somos! Somos humanos! O Estado não pode nos mastigar e jogar fora.” Em torno dela, umas vinte ou trinta pessoas incentivavam com aplausos e exclamações o discurso improvisado, que se tornava cada vez mais cortante. “Temos que sair às ruas! Não podemos ficar em casa como pedem a Organização Mundial da Saúde e o governador. Sabe por quê? Porque o Estado não para de nos assassinar, mesmo na pandemia do coronavírus. A vida dos meus filhos, a vida do meu povo importam! Eu não aguento mais chorar!”
Em 2003, a manifestante fundou o Movimento Moleque e o comanda desde então. O coletivo luta pelos direitos de jovens infratores. Domingo à tarde,  enquanto protestava, a ativista protegia o rosto com uma viseira translúcida e vestia uma camiseta larga que estampava a foto de um rapaz sorridente. Era Rafael, o segundo de seus três filhos. Ele tentou roubar um carro na adolescência e, por isso, cumpriu medidas socioeducativas durante quase nove meses. Mais tarde, se envolveu com o tráfico de drogas. Acabou morto pela Polícia Civil em dezembro de 2006, entre as favelas do Rato Molhado e do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Testemunhas contaram que o moço levou um tiro de fuzil perto do estômago quando já se encontrava rendido, de joelhos. Tinha 20 anos.
“Ou a gente dá um basta agora, ou amanhã você vai estar igual a mim”, prosseguiu a educadora, apontando para uma negra bem mais nova que a observava. “É inadmissível! O meu povo precisa continuar a viver. Povo negro vivo! Jovens negros vivos! Mulheres negras vivas!”, concluiu Mônica, que não usava megafone nem alto-falantes. Ela gritava com a voz nua, como todos os que se pronunciavam ali.
Sem carros de som ou palanques, a manifestação não dispunha propriamente de uma liderança. As centenas de pessoas – duzentas, trezentas, quatrocentas? – que decidiram quebrar o isolamento social e se juntaram às 15 horas diante do palácio, no bairro de Laranjeiras, dividiam-se em vários grupos. Cada um deles constituía um fragmento autônomo, onde alguém discursava ou lançava palavras de ordem, prontamente repetidas pelos que estavam ao redor. Entre o nascimento e a dispersão deste ou daquele grupo, passavam-se apenas poucos minutos.
Um aspecto nada desprezível garantia a unidade do protesto: a fúria dos manifestantes contra os excessos cometidos por policiais do Rio, que não raro culminam no assassinato de negros. Esse tipo de violência – que os ativistas chamavam de “genocídio” – é antiquíssima e já alimentou toda sorte de denúncias. Seis acontecimentos recentes, porém, serviram de estopim para a ação de domingo:
* Em 15 de maio, a Polícia Militar e a Civil enveredaram pelo Complexo do Alemão, na Zona Norte carioca, atrás de drogas, munições e armas. Moradores relatam que presenciaram ou escutaram intensos tiroteios. A operação resultou em doze mortes. Somente um policial se feriu, sem gravidade.
* Em 18 de maio, o adolescente negro João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, morreu após receber um tiro de fuzil pelas costas. Ele brincava com os primos na casa de um tio em São Gonçalo, município da Grande Rio, quando a Polícia Federal e a Civil invadiram o imóvel à caça de traficantes.
* Também no dia 18 de maio, familiares de Iago César dos Reis Gonzaga disseram que policiais militares torturaram e mataram o jovem negro de 21 anos durante uma incursão pela Favela de Acari (Zona Norte do Rio). A PM não comentou a denúncia.
* Em 20 de maio, uma troca de tiros entre criminosos e a Polícia Militar na Cidade de Deus (Zona Oeste) interrompeu a distribuição de duzentas cestas básicas por voluntários locais. A batalha provocou a morte de João Vitor Gomes da Rocha, negro de 18 anos. Segundo a PM, o rapaz fazia parte de uma quadrilha que pratica sequestros relâmpago. A mãe dele, empregada doméstica, nega a versão das autoridades.
* No dia 21 de maio, enquanto patrulhava o Morro da Providência (Centro), a Polícia Militar entrou em confronto com bandidos. O tiroteio – que atrapalhou outra doação de cestas básicas, desta vez promovida por alunos de um pré-vestibular comunitário – ocasionou a morte de Rodrigo Cerqueira da Conceição. Os policiais afirmam que o rapaz negro de 19 anos portava uma pistola e um carregador, além de entorpecentes. Testemunhas, entretanto, alegam que o jovem trabalhava numa barraquinha quando o conflito eclodiu.
* Em 30 de maio, Matheus Henrique da Silva Oliveira – um barbeiro negro de 23 anos – tomou dois tiros e morreu enquanto andava de moto perto do Morro do Borel (Zona Norte). Vizinhos do moço contam que PMs fizeram os disparos. O caso ainda está sob investigação.
Os seis episódios de maio se deram após um mês particularmente sangrento. Em abril, 177 óbitos no estado do Rio decorreram de intervenções policiais. O número, divulgado pelo próprio governo, é 43% maior que o de abril do ano passado.
Coletivos de favelas e militantes do movimento negro recorreram às redes sociais para convocar a manifestação. No sábado, o Instagram de Raull Santiago – ativista do Alemão – já disseminava mensagens em português, espanhol e inglês sobre o protesto. “Infelizmente”, lamentava uma delas, “a polícia insiste em assassinar nosso povo durante a pandemia. Se não morremos por causa do vírus, a violência policial nos mata.”
No domingo de manhã, a agência de notícias Alma Preta Jornalismo informava que a ação estava se organizando “de maneira espontânea” pela internet. Duas imagens ilustravam a nota: a do menino João Pedro e a de George Floyd, o negro desempregado que o policial branco Derek Chauvin assassinou por asfixia em Minnesota, há uma semana. O homicídio gerou uma onda de rebeliões populares nos Estados Unidos, que agora inspiravam os brasileiros.
À tarde, diante do Palácio Guanabara, Raull Santiago profetizou: “Este não é apenas um ato. Este não é o único ato. Este não é o último ato. Este é só o início!” Palmas e gritos de “arrasou” festejaram o presságio.
As mensagens digitais que anunciavam o encontro pediam para os manifestantes não abdicarem dos cuidados sanitários. “Ponham máscara.” “Levem álcool em gel numa mochila ou no bolso.” “Fiquem a dois metros das demais pessoas.” “Retornem para casa logo depois do protesto.”
Quase todos os presentes procuravam respeitar as regras. Muitos não apenas usavam máscaras como viseiras, óculos de segurança e luvas. Também limpavam as mãos regularmente. O problema era guardar distância. Com frequência, surgia uma aglomeração aqui ou ali. “Olha o espaçamento!”, berrava alguém. Os aglomerados, então, abriam os braços em cruz e buscavam se afastar uns dos outros. A estratégia, no entanto, só funcionava por alguns segundos.
Entre os ativistas, mal se avistavam bandeiras de partidos. Em compensação, proliferavam faixas e cartazes improvisados, geralmente escritos a mão: “A periferia grita!”; “Dor de mães de filhos assassinados não tem preço”; “Parem de nos matar”; “Vidas negras e faveladas importam”; “Meu grupo de risco é outro”.
Os brados e cantos seguiam na mesma linha: “Contra o genocídio do povo preto, nenhum passo atrás!”; “Fascistas! Racistas! Não passarão!”; “Chega de chacina, polícia assassina!”; “Povo preto unido é povo preto forte, que não teme a luta, que não teme a morte”; “Acorda, classe média!”; “Não acabou, tem que acabar! Eu quero o fim da Polícia Militar!” De vez em quando, ecoava um “Fora, Bolsonaro!” ou um “Bozo miliciano!” O governador Wilson Witzel mereceu igualmente alguns “afagos”: “Ei, Auschwitzel, vai tomar…”
Com muita verve, a advogada negra Valéria Lúcia dos Santos mencionava os filhos no meio de um discurso. “O meu mais velho tem 19 anos e o meu caçula fez 17. Eles só continuam vivos porque resolvi tirá-los do Brasil. Hoje os dois moram nos Estados Unidos, um país que também é extremamente racista e que se encontra em guerra. Os pretos de lá brigam, gente! Eles lutam! Os pretos dos Estados Unidos mandaram um recado para o mundo: ‘Nós não vamos mais suportar humilhações, não vamos mais aceitar isso. Basta!’”
Habitante de Mesquita, na Baixada Fluminense, Valéria dos Santos é ex-mulher de um norte-americano, “o pai dos meus garotos”. Ela não vê os filhos pessoalmente desde 2011. “Deixei que o pai os levasse para a Flórida. Lá os meninos estudam, vivem melhor do que aqui. Eles não teriam futuro em Mesquita. O pai agora os protege e já conversou seriamente com os dois: ‘Se a polícia abordar vocês, fiquem quietos, não digam nada, não façam movimentos bruscos.’ Essa é a sina do negro em qualquer lugar do mundo: nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra. Desgraçadamente…”
A advogada cível ganhou certa notoriedade em setembro de 2018, quando discutiu com uma juíza leiga de Duque de Caxias, outra cidade da Baixada, durante uma audiência. Por causa do entrevero, os policiais plantonistas do fórum algemaram Valéria. Três vídeos que registraram o ocorrido circularam pelas redes sociais e indignaram a Ordem dos Advogados do Brasil. “A juíza e os policiais cometeram flagrante ilegalidade contra a colega”, avaliou a OAB. Alvo de uma representação da Ordem, a juíza foi absolvida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
No fim do discurso de domingo, Valéria declarou: “Eu lamento pela mãe do João Pedro, porque sou mãe igual. É revoltante! Quando gritamos, parece que estamos loucas. Não! Nós estamos sentidas.”
O protesto reunia principalmente jovens na faixa dos 20 e 30 anos. Os negros, óbvio, imperavam, mas os brancos também compareceram, ainda que nenhum tenha ousado discursar. Às tantas, um casal que passeava pelas redondezas, ambos de pele bem clara, xingou os manifestantes. Parte deles saiu atrás dos ofensores. “Volta! Volta!”, berraram outros. “Não vamos aceitar provocação dos fascistas!” Embora se inspirassem nas rebeliões dos Estados Unidos, os ativistas de Laranjeiras apregoavam a paz. “Nada de violência, galera!” O casal entrou ileso num prédio das imediações e os ânimos serenaram.
A PM acompanhou todo o ato de perto, sem se alterar, mesmo quando as palavras de ordem a citavam. A partir das 15h40, a manifestação se dispersou. Pouco depois, um grupo de retardatários chegou à frente do palácio, e a confusão começou. A polícia afirma que alguns dos atrasados jogaram pedras contra a sede do governo e tentaram invadi-la. Para afugentá-los, a corporação utilizou “instrumentos de menor potencial ofensivo”, como costuma dizer: bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e tiros de borracha. Não houve registro de feridos.
(site da revista piauí)

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Isolamento à beira-mar

Como idosos lidam com a pandemia num prédio de Copacabana

Pela manhã, quando abri a porta de casa para apanhar o jornal, ouvi uma conversa nada corriqueira no andar logo acima do meu. “Que barbaridade, Seu Zé! O senhor tem certeza?”, indagava a moradora da cobertura. Ela vive ali com o marido e sem empregados ou animais de estimação. Nunca vi o casal, nem sequer de relance, mas sei que amos já passaram dos 90 anos e estão no prédio há quase seis décadas. “Tenho certeza, sim! Internaram o moço ontem, lá no Copa D’Or. Um rapaz novinho de tudo, universitário”, respondeu Seu Zé com um quê de impaciência. “Quer dizer, não posso garantir a data da internação. Foi ontem à noite, parece. Ou hoje bem cedo? Não importa…”
O cearense José Cordeiro de Farias é zelador no pequeno edifício de Copacabana para onde me mudei em outubro de 2017. Ele e minha vizinha, imagino, conversavam à beira da escadaria acinzentada que percorre os onze andares do prédio. Embora não pudesse enxergá-los, escutei perfeitamente: “Deus do céu! O que vai acontecer agora?”, perguntou a vizinha, mais para si mesma do que para o zelador. “Será que a gente corre perigo?”
Era dia 18 de março, quarta-feira. Na antevéspera, o novo coronavírus levara à morte um aposentado em São Paulo. O Ministério da Saúde o identificou como a primeira vítima fatal da Covid-19 entre os brasileiros. Até o início daquela quarta, o vírus contaminara 33 pessoas no Rio de Janeiro, mas ainda não havia provocado nenhum óbito. Com o intuito de retardar a pandemia, o governador do estado, Wilson Witzel (PSC), começou a semana anunciando uma série de restrições temporárias, como a suspensão de aulas em instituições públicas ou particulares, o fechamento de teatros, cinemas, academias e shopping centers, a proibição de eventos esportivos e a recomendação para que ninguém fosse às praias. O isolamento social ganhava corpo, e o lema “Fique em casa” se espalhava.
Assim que tive oportunidade, procurei o zelador:
– Desculpe, mas ouvi parte da conversa de vocês na cobertura. Algum morador está internado?
– Morador, não. Um rapazinho que veio olhar o 301 no final da semana passada. Ele queria alugar o apartamento, que vagou faz uns dias. Espiou tudo bem espiado e depois bateu papo comigo aqui no hall de entrada. Agora me contaram que pegou o tal do vírus pouco antes de assinar o contrato.
– Quem contou?
– A faxineira que limpa o apartamento. Ela falou que já puseram o moço na UTI. Misericórdia! Eu cheguei perto do rapaz, apertei a mão dele… Não posso me contaminar. Sou do grupo de risco! E a Lourdes também!
O zelador se referia à sua mulher, a pernambucana Maria de Lourdes Barbosa de Farias, com quem divide as tarefas do condomínio. Em tese, o casal realmente figura entre os alvos preferenciais do novo coronavírus – não porque sofra de diabete, asma, bronquite, enfisema pulmonar ou hipertensão arterial, mas pela idade avançada. Taurinos, os dois aniversariam em maio. Ele vai completar 78 anos. Ela, 75. No entanto, jamais os tomei por velhos, embora tampouco os considerasse jovens, é claro. Eu simplesmente não pensava sobre o tempo quando os flagrava em plena atividade. Desde 1992, Farias e Lourdes são os únicos funcionários do edifício: limpam todos os andares, cuidam da portaria durante o dia (à noite, a partir das oito, não há porteiro), fazem reparos miúdos nas áreas comuns, recebem encomendas, distribuem correspondências e recolhem o lixo. Labutam como formiguinhas, sem muito tempo para o dolce far niente das cigarras. “Consigo subir do térreo até a cobertura, pelas escadas, num pique só”, gosta de trombetear o zelador. Não se trata de exagero.
O térreo, aliás, é onde o casal mora. Eles ocupam um apartamento com quarto, sala, cozinha, dois banheiros, lavanderia e um quintalzinho. No imóvel abarrotado de coisas, terminaram de criar a filha, Giseli, uma dona de casa que cursou administração de empresas e direito, mas nunca se formou, e lhes deu um par de netos. Bem menor que a cobertura dúplex da vizinha nonagenária, a residência do casal revela-se maior que os demais vinte apartamentos do prédio, cada um com 50 m2 e apenas um dormitório.
Inaugurado em 1964, o edifício também abriga salas comerciais. Tem uma garagem modesta, com apenas duas vagas, e não exibe nenhum “penduricalho”: nem playground, nem salão de festas, nem piscina. Apesar de franciscano, fica muito perto da praia, numa região privilegiada do Rio, o ponto em que Copacabana se aproxima de Ipanema – divisa batizada pelos cariocas de Copanema.
“Sou do grupo de risco!” A frase do zelador não só me fez atinar que o prédio se encontra sob a guarda de dois “velhinhos” – dispostos, prestativos, mas agora ameaçados – como me lembrou que moro no epicentro da terceira idade.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) calcula que o país reúne, atualmente, 34 milhões de pessoas com 60 anos ou mais. Cerca de 1,5 milhão está no município do Rio de Janeiro. Apenas São Paulo, entre as capitais, o supera. Lá vivem 2,3 milhões de indivíduos que pertencem àquela faixa etária. Em termos relativos, porém, a situação muda – e o Rio se converte na capital com a maior porcentagem de idosos. Essa população representa 22,7% dos 6,7 milhões de habitantes. Porto Alegre, Vitória e Belo Horizonte aparecem, respectivamente, em segundo, terceiro e quarto lugares no ranking (22,3%, 19,7% e 18,8%). Florianópolis, Curitiba e São Paulo compartilham a quinta colocação (18,4%).
O IBGE também estima que Copacabana seja o bairro carioca com maior número de idosos. O Censo de 2010 – a pesquisa mais recente sobre o assunto – indicou haver 43,4 mil moradores sexagenários ou acima dos 70 anos por aqui. Depois, vinham Campo Grande (41,4 mil) e Tijuca (39,5 mil).
O zelador, sua mulher e eu moramos, assim, no bairro com mais idosos da capital que detém a maior proporção deles. Um epicentro, portanto, ou algo do gênero. Alheio à demografia, Farias se angustiava cada vez mais: “Quem entrou em contato com um infectado precisa se isolar? A Lourdes pode pegar o vírus de mim? Como vou me isolar se tenho que ganhar a vida?”

O casal se conheceu em Copacabana mesmo. Ele trabalhava de garagista num edifício da Rua Bolívar. Ela, comerciária, costumava andar pelos arredores do prédio. “Eu vendia de tudo naquele tempo: roupa, sapato, qualquer coisa. Era empregada de lojas finas, sabe? O Zé manobrava carro, e a gente se paquerava de leve.” Um dia, o flerte vingou, enveredou para o namoro e… “Casamos em 1972”, recorda o zelador, que foi garçom “numa pensão de português” antes de se tornar garagista.
Depois do casamento, Lourdes virou depiladora e manicure. Farias comprou um Opala Comodoro (“o melhor carro da ocasião”) e se transformou num híbrido de motorista e guia turístico. Levava hóspedes do hotel Sheraton para visitar as atrações do Rio. Em abril de 1992, quando surgiu uma vaga de porteiro no nosso edifício, não titubeou. “Me ofereceram carteira assinada e a chance de sair do aluguel. Dava para recusar? Aqui moro de graça. Não pago nem a luz. Sem contar que contrataram a Lourdes também, como auxiliar de portaria.” Ele só ganhou o cargo de zelador há poucos meses – apesar de, na prática, exercer a atividade desde que chegou. Sua parceira segue com a mesma função.
Hoje ambos estão aposentados, mas permanecem na ativa porque ajudam financeiramente os familiares. “Nosso neto mais jovem peleja com uns problemas de saúde e, por causa disso, a Giseli não pode trabalhar. Precisa cuidar do menino”, explica a auxiliar de portaria. O que o genro deles fatura como taxista não é suficiente para saldar as contas.
Farias e a companheira têm origem parecida. Filho de um caixeiro-viajante e de uma dona de casa, o zelador nasceu em Santa Quitéria, cidadezinha do interior cearense. Ainda bebê, perdeu o pai (“Dizem que morreu de nó nas tripas”) e acabou educado pelos avós maternos. “Minha mãe tolerou a viuvez por um período curto e depois se casou de novo. Formou outra família. Somos treze irmãos no total – dois do primeiro casamento dela e o resto do segundo.”
Exímio boiadeiro, o avô de Farias gerenciava uma fazenda. “Era uma propriedade gigante, com açude e quinhentas cabeças de gado. Se um boi escapasse do pasto e desaparecesse mata adentro, um punhado de vaqueiros saía à procura do bicho. Demoravam três, quatro, cinco dias para encontrar, tamanha a imensidão daquelas terras.”
Em 1958, Farias trocou Santa Quitéria pelo Rio. Estava com quase 17 anos, mas ainda não concluíra o ensino fundamental. “Meu padrinho, um carpinteiro, veio antes. Ele já morava no bairro de Botafogo quando me convidou: ‘Esquece a roça! Você não vai ter futuro nenhum se ficar no Nordeste.’ Eu escutei o conselho e parti.” No Rio, não retomou os estudos. “Só quis saber de trabalhar.”
A auxiliar de portaria também é de uma pequena cidade interiorana – Gravatá, em Pernambuco – e passou parte da infância na zona rural. “Meu pai plantava fumo, milho, aipim, feijão, café, inhame, algodão, batata-doce… Tudo no nosso sítio, um cafundó sem iluminação, sem vizinho, sem nada. Me lembro apenas de um senhor que morava perto da gente, um ex-escravo velhíssimo. Ele vivia num ranchinho. Vivia, não. O homem se escondia… Ficava assustado quando via algum de nós e se enfurnava dentro do rancho. Sempre que dava tempestade, os coqueiros do sítio balançavam à beça e os relâmpagos cortavam a escuridão. Eu morria de medo.” Depois de cada colheita, o pai transportava a produção para um armazém dele próprio, onde a negociava.
“Tive 27 irmãos”, prossegue a auxiliar de portaria. “Minha mãe se casou duas vezes, e meu pai, três. Por isso, espalharam tanto filho pelo mundo. Uma porção já morreu. Nem sei quantos. Não conheci todos.” Beirando os 9 anos, Lourdes se mudou para o Recife com a família. “Estudei bem pouco. Desisti da escola porque a matemática nunca entrou na minha cabeça. Somar, dividir, multiplicar, resolver expressão… Complicado demais para mim.”
Durante a adolescência, mesmo sem terminar o antigo ginásio, conseguiu “um empregão” na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Como recepcionista e ajudante geral, servia um grupo de técnicos oriundos da França, principalmente engenheiros agrônomos. Em 1967, assim que saiu da autarquia, decidiu migrar para Niterói, onde já estavam duas sobrinhas. “Mas não gostei de lá, não. Preferi tentar a sorte no Rio.”

Baixa e rechonchuda, a auxiliar de portaria tem a pele muito clara, com manchas de sol tão numerosas que a deixam um tanto rajada. “Sou do tipo galega”, resume. Na juventude, orgulhava-se dos cabelos loiros, que agora se tornaram avermelhados. “Tintura, né? Quando não pinto, ficam brancos como as páginas de um caderno.” Ela não dispensa uma boa conversa e normalmente a tempera com ironias sutis ou expressões em francês. Aprendeu o básico do idioma na Sudene. Bonjour! Comment ça va?, costuma me dizer pela manhã.
De poucas palavras, Farias se considera “pavio curto, um sujeito sem papas na língua” e não aparenta a idade. Embora meça apenas 1,60 metro, é troncudo e aprumado, uma herança da época em que praticou jiu-jítsu. No horário de trabalho, veste invariavelmente calça escura e camisa social de mangas curtas, azul ou amarela.
À diferença do marido, a auxiliar de portaria não se alarmou quando tomou conhecimento do rapaz internado. “Vou me apavorar com vírus? Tenho mais medo de levar uma facada ou de um carro me atropelar. Se bem que é besteira pensar nessas infelicidades também. Estamos todos nas mãos de Deus. Ele decide a nossa hora. Nem vírus, nem ladrão, nem motorista bêbado vai nos matar se o Senhor não quiser.”
Evangélica há trinta anos, ela pertence à Igreja Internacional da Graça de Deus – denominação neopentecostal liderada pelo pastor R. R. Soares –, mas já integrou a Universal do Reino de Deus, capitaneada por Edir Macedo. “Hoje percebo que, no fundo, não seguia religião nenhuma antes de virar crente. Eu às vezes acompanhava a missa dos católicos. Outras vezes, botava o cordão protetor da Igreja Messiânica ou aparecia no centro espírita para jogar búzios. E jamais deixava de olhar o horóscopo. Era viciada. Comprava o jornal mesmo quando o dinheiro minguava, só para checar o meu signo.”
A auxiliar de portaria acredita que Deus “mandou a pandemia” com a intenção de alertar a humanidade. “A Bíblia afirma que Jesus vai voltar, certo? Que vai caminhar novamente sobre a Terra. Acontece que Jesus é santo. Como um santo vai andar num lugar tão pecaminoso feito a Terra de agora? Enquanto o pessoal cometer erros, as pestes vão atormentar a gente. As pragas não são novidade. Já enfrentamos muitas, e outras piores virão. Peste serve para os humanos se corrigirem. O campo precisa ficar mais limpo, entende? Caso contrário, Jesus não pode voltar.”
E o que ocorrerá quando Cristo retornar? “Ele vai salvar todos os que se converteram. Vai levar os fiéis para o Céu. Depois, meteoros atingirão a Terra. O planeta vai se consumir em fogo, e os raros que não se converteram sofrerão as consequências. Vão continuar na Terra, mas uma Terra destruída, sem água, sem comida. Pior: vão ganhar uma marca na testa, o número 666, que é o da Besta.”
Ela observava a inquietação do marido e comentava: “O Zé ainda não se tornou evangélico. Então treme de medo quando pensa na morte. Ele toma todo o cuidado para se manter vivo, mas não adianta: se Deus chamar, tchau! A minha salvação é Jesus. A do Zé, o álcool em gel e lavar a mão.”
O zelador, sorrindo, retrucou: “A Lourdes adora me tachar de ateu. Bobagem! Sou católico. Rezo o Pai-Nosso antes de dormir e me levantar, gosto de Nossa Senhora Aparecida e, se passo na frente de uma igreja, me benzo. Só não vou à missa nem acredito que Deus envia praga. Ele não tem culpa da nossa desgraça. Imagina se iria mandar coisa ruim para a gente… O Satanás, talvez. Deus, nunca!”

Na quinta-feira, 19 de março, Farias me interfonou:
– Era mentira!
– O quê, Seu Zé?
– O papo da internação. O rapaz não pegou a doença. Está com a saúde em dia.
– Como assim? Quem inventou a história?
– A própria faxineira que cuida do 301. Inventou porque queria me assustar. Filha da mãe! Brincadeira mais sem graça! Fiquei sabendo quando liguei para a proprietária do apartamento, atrás de notícias do moço.
Um boato, afinal – ou uma fake news à moda antiga. O zelador, porém, não parecia bravo. Pelo contrário: dava a impressão de que levou a “pegadinha” macabra na esportiva.
– Que alívio! Porra! – suspirou.
Àquela altura, a síndica do prédio, Rosa Maranhão, já tomava uma série de providências na esperança de minimizar os perigos corridos pelo casal de funcionários e pelos moradores ao longo da pandemia. Fixou regras para o recebimento de entregas e o uso dos elevadores. Solicitou que o zelador e a mulher colocassem luvas antes de mexer com o lixo. Explicou como desinfetar o hall de entrada e os corredores.
Recomendou que utilizassem máscaras e álcool em gel durante o serviço. “O ideal seria conceder licença remunerada para os dois e arranjar substitutos temporários”, admite a síndica, uma psicanalista que ocupa o cargo desde 2012. “Só que, infelizmente, nosso caixa não tem reserva. E aumentar o condomínio em plena crise provocaria um fuzuê.”
Disciplinado, Farias procura seguir tanto as orientações da síndica quanto as das autoridades sanitárias. Suspendeu as visitas da filha e dos netos, guarda certa distância dos condôminos e entregadores, põe a máscara com regularidade, evita ir à rua e limpa tudo compulsivamente. “Sabe os botõezinhos dos elevadores? Passo álcool em cada um depois que alguém sobe ou desce.” Fumante dos 14 aos 38 anos (“Queimava dois maços de cigarro por dia”), sofreu um infarto há pouco menos de duas décadas, mas se recuperou bem. Para preservar a saúde do coração, andava à noite pela orla de Copacabana. Agora, perambula apenas dentro do edifício. “Caminho da porta de casa até a porta do prédio e volto. Faço isso um monte de vezes. Só paro quando completo 1 km.”
No resto das horas vagas, engrossa a audiência da Rede Globo (não assina canais pagos). Vê o Jornal Nacional, a novela das nove e o Big Brother Brasil. “Gosto demais do BBB! Não perco um.” Ele também adora futebol e torce pelo Flamengo, o que não o impede de acompanhar outras equipes. “Botafogo, Vasco, Fluminense… Jogo de qualquer time me interessa, e os da Seleção, mais ainda.”
Sua mulher, em contrapartida, quase não toma precauções. Vai às compras frequentemente e zanza sem necessidade pelo bairro. Não costuma usar máscara nem fica com “aquela psicose de álcool em gel pra cá, álcool em gel pra lá”. Agarra-se às crenças religiosas e à convicção de ter um sistema imunológico excepcional. “Na infância, comi um bocado de feijão, além de manga, jenipapo, laranja, banana, jaca, goiaba, araçá… Por isso, ganhei muita resistência. Minha única doença é a gula.”
Como o casal possui dois televisores, a auxiliar de portaria consegue driblar a Globo. “Deixo o Zé assistir às imoralidades dele e fujo para as novelas bíblicas ou para os cultos da Record.” De vez em quando, prestigia o apelativo Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes, comandado pelo jornalista José Luiz Datena, de quem se declara fã.
À semelhança do parceiro, jamais consulta a internet. “Não lidamos com negócio de computador, e-mail ou Facebook, e meu celular é de mil novecentos e bolinha.” Para “ouvir louvores”, mantém no apartamento um toca-CDs, que ela insiste em chamar de rádio.

“Não votei no Bolsonaro logo de cara, mas o homem está certo. A quarentena precisa acabar. Os idosos e as pessoas com sintomas devem permanecer em casa, lógico. Os jovens, não! Por que trancar um moço de 30 anos, uma mulher de 40? Se a turma não voltar rapidinho para o trabalho, o prejuízo será imenso. Vai começar a bagunça, o quebra-quebra, o fogaréu nos ônibus.” Quando discorre sobre o isolamento social que freou o país, Farias se exalta. No primeiro turno das últimas eleições presidenciais, ele votou em Alvaro Dias, do Podemos, “um político sério, limpo e competente”. No segundo, optou por Bolsonaro. “Deixar o Fernando Haddad vencer? Deus me defenda! Sou trabalhador, mas detesto o PT!”
A birra do zelador com os petistas começou no fim de 1989. Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva disputavam a Presidência da República. Farias apoiava o “caçador de marajás” e colou uma propaganda do candidato no vidro do Opala Comodoro. “Eu estava levando um turista para conhecer o Mosteiro de São Bento, se não me engano. Perto da Praça Mauá, tinha uns cabos eleitorais do PT. Assim que os caras viram a propaganda do Collor, me mandaram parar. ‘Tira o adesivo agora!’, gritaram. ‘Se não tirar, vamos destruir o carro!’ Me assustei à beça. Nunca vou perdoar aquele absurdo. Me fizeram arrancar a propaganda só porque eu não queria votar no Seu Lula?!”
Pelas mesmas razões do marido, a auxiliar de portaria advoga o término da quarentena. “Quem não é do grupo de risco deve pegar no batente. O país vai acabar se a maioria continuar de braço cruzado. Por enquanto, a favela está quieta, mas quando a fome apertar… O pessoal do morro vai descer e o pau vai cantar aqui embaixo.” Nas eleições de 2018, ela não compareceu às urnas. “Passei dos 70 anos. Não tenho mais que votar.” Mesmo assim admira Bolsonaro. “Também simpatizo com o Lula. Os dois falam a língua do povão. Só que, no prédio, ninguém suporta o Lula. Chamam de ignorante, de ‘sem-dedo’, de vagabundo. Por causa disso, não fico espalhando que gosto dele. Je ferme ma bouche, compreende? Calo a minha boquinha.”
Dirigindo o Opala Comodoro, Farias tomou outro susto – dessa vez, junto da família. “Foi em 1990. A gente voltava do Espírito Santo depois de quinze dias em Guarapari. Umas nove e meia da manhã, estacionamos num posto da estrada para abastecer. Aproveitei e bebi uma dose de conhaque. Um pouquinho mais tarde, cismei de ultrapassar um caminhão num trecho complicado da rodovia. Acho que o conhaque me tirou o juízo… No meio da ultrapassagem, percebi que iria me estrepar, porque o caminhão acelerou em vez de reduzir a velocidade. Resultado: joguei o Opala para a esquerda e capotei. Caí numa ribanceira. Estava com a Lourdes, a Giseli, uma amiga e um bebê de 8 meses. Ninguém se feriu, acredita? Um milagre dos grandes! Enquanto capotava, me lembrei de rezar: ‘Perdão, meu Deus! Fui muito descuidado. Se a gente ainda merecer, nos salve!’ Nunca vivi nada tão horroroso. Coronavírus é fichinha perto daqueles segundos em que o carro rolou pela ribanceira.”

No edifício de Copacabana, há mais nove idosos, além do zelador e da mulher. Dois resolveram passar a quarentena em outro lugar. Entre os que permaneceram, alguns se isolaram por completo e não aceitaram nem mesmo conversar. A pernambucana Gina, do 701, topou, mas com ressalvas: “Não venha aqui. Prefiro que você me encontre no térreo. E, por favor, não revele meu nome de verdade. Bote só o apelido. Odeio me expor.”
Ela acabou de comemorar 72 anos. Viúva de um motorista particular, deu aulas de matemática nos ensinos fundamental e médio até os 54. “Sou do tempo em que os professores acompanhavam os estudantes de perto. Se um aluno faltasse demais, a gente ia à casa dele e tentava descobrir o problema.” Gina conta que lecionou sempre no Rio, tanto em escolas públicas como em privadas. Mudou-se para a capital fluminense ainda criança, após deixar São José do Belmonte, onde nasceu.
Agora que está aposentada, virou estudante de novo. Cursa o último semestre de teologia na Pontifícia Universidade Católica (PUC). Também frequenta oficinas semanais de interpretação bíblica em igrejas da Zona Sul.
Embora tenha três filhas e sete netos, vive sozinha, o que nunca a incomodou. Com a chegada do novo coronavírus, porém, a solidão se transformou num fardo. Hipertensa e diabética, cumpre à risca o isolamento social. “Sai pouquíssimo, apenas para o mercado ou a farmácia, geralmente de luva, máscara, calça comprida e sapato fechado. Quando volta, se despe, toma banho, lava as roupas e esteriliza as compras. A contragosto, abandonou as caminhadas diárias pelo calçadão e já não papeia com os amigos nos cafés do bairro nem vai à missa ou à praia. Interrompeu as oficinas bíblicas e substituiu as aulas presenciais da PUC por virtuais.
Confinada no apartamento acanhado do sétimo andar, resta-lhe ouvir a JB FM, ler, cozinhar, ver filmes em canais pagos, fazer crochê e se exercitar sob a orientação de tutoriais que garimpa na internet. “Me ocupo bastante. Mesmo assim, é bem duro… A fase mais difícil que atravessei em 72 anos. Sinto saudades da antiga rotina e principalmente da família. Tenho adoração por meus netos. Sou chameguenta. Sofro muito com a distância deles.”
Recentemente, Gina recebeu o telefonema desesperado de uma conhecida. “Fiquei péssima. Uma senhora tão bonitinha, uma artesã de mão-cheia, pensando em se matar… ‘Não aguento mais, Gina! Só aparece notícia ruim na televisão.’ Respondi: ‘Então desliga a tevê! Você precisa se desintoxicar! Suicídio é pecado mortal!’”
Às vezes, a professora se pergunta o que Deus está querendo nos dizer. “Ele parou o mundo inteiro. Por quê? Será que se entristeceu com tanta prostituição, tanto homossexualismo, tanto travesti?”

De tão magro, elétrico e desengonçado, o recifense Edmundo Amaral, do 801, lembra os mamulengos, aqueles fantoches típicos do Nordeste. No prédio, todos o tratam por Comandante. Ele próprio se apresenta desse jeito: “Muito prazer, Comandante Amaral.” Ingressou na Marinha quando adolescente e se aposentou em 1987, como capitão de mar e guerra. “Passei quase mil dias a bordo de navios.” Tem 82 anos e três filhos, incluindo um enteado. Com frequência, usa bonés, camisetas e bermudas que exibem o distintivo do Flamengo.
Foi morar sozinho em 2017, após se separar da segunda mulher, e ainda não aprendeu a cozinhar. “Sobrevivo à base de congelados. Lasanha, almôndega, essas bostas. Se me dá na telha, encomendo um franguinho de padaria.” Hoje goza de boa saúde, mas já amargou um câncer de pulmão.
Concordou em me encontrar no térreo e, durante nossa conversa de meia hora, proferiu uma enxurrada de declarações contundentes:
“Você é da Folha? Do Globo? Se for, não quero papo. Jornalecos sem-vergonha! Mentirosos, terroristas, ‘subversas’, comunas, safados, apátridas! Um nojo! Tomara que o Clube Naval cancele a assinatura dos dois.”
“Não me separei de ninguém, não. Ela é que se separou de mim. Resolveu cuidar da mãe doente em São Paulo. Compreendo, mas não dá, né? Até parece que vou me mudar para São Paulo… Lugarzinho irritante… Sem praia, com um clima terrível e repleto de gente dizendo ‘Orra, meu!’ Tô fora!”
“Como me definir em poucas palavras? Escreva: flamenguista e contra o PT. Ponto final.”
“Note bem: não gosto do Bolsonaro. Gosto é do que o Bolsonaro defende.”
“Se o entregador da farmácia pode trabalhar em plena epidemia, por que o vendedor de sapatos não pode? Isolamento, sim, mas só para o grupo de risco.”
“O coronavírus é uma sacanagem da China, meu amigo! Tenho certeza. Comunista não presta. Todos filhos da puta! Se necessário, matam sem dó. Os chineses deixaram o vírus se espalhar porque desejam que a economia do mundo vá para o buraco. Assim, conseguirão levar as empresas dos outros países a preço de banana. Está na cara!”
“Respeito a quarentena, claro. Sou velho pra cacete, porra! Mas acho um saco! Ridículo! Vontade de chutar o balde! Manja o leão trancado na jaula? Não posso nem ver as namoradas. Para suportar o tédio e diminuir a ansiedade, encaro dois fitoterápicos por dia, um de manhã e outro à noite.”
Toda vez que há panelaço nas redondezas contra o presidente da República, o Comandante vai até a janela e grita: “‘Fora, Bolsonaro’, merda nenhuma! ‘Fora, corona’, pô!”

Em meados de abril, quando desci para pegar uma encomenda, Farias me chamou. Ele tomava conta da portaria, como de hábito. “Andei pensando…”, me disse, circunspecto. “No fundo, estou em isolamento desde que cheguei aqui, há quase trinta anos. Zelador trabalha seis dias por semana e só folga um. Vive sempre confinado. É uma espécie de Big Brother, mas sem a piscina…
(revista piauí)

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

O infortúnio de João Gostoso

Pesquisadores encontram reportagens que motivaram poema de Manuel Bandeira

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sábado, 1 de junho de 2019

Hércules do morro

Quando o homem mais forte do Pavão-Pavãozinho fraquejou

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sábado, 1 de dezembro de 2018

Xô, esquerda!

Pastores da Universal agora livram os fiéis de possessões comunistas?

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quarta-feira, 1 de agosto de 2018

A vizinha

Ela surgiu de repente à minha porta com uma história perturbadora

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terça-feira, 1 de maio de 2018

A revanche da babá

Uma atriz em busca da própria cura

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segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Próximos capítulos

Um sem-teto à espera da tevê digital

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sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Meu guri

A mãe, a avó e a mulher de um dos 250 mil brasileiros presos antes do julgamento*

Quando o celular tocou, Conceição sentiu uma fisgada no estômago. “Coisa boa não deve ser”, intuiu enquanto caçava o telefone. Não espiou o relógio, mas sabia que passava um pouco das cinco horas. Só notícia ruim chegaria tão cedo. Como de hábito, a empregada doméstica já estava de pé. No banheiro da casa inacabada, aprontava-se para o demorado trajeto até o apartamento dos patrões, em Copacabana. “Um ônibus, dois metrôs e uma sandália de primeira”, gracejava sempre que lhe perguntavam quantas conduções tinha de enfrentar logo pela manhã. Moradora da Baixada Fluminense, dificilmente desembarcava no mais célebre dos bairros cariocas em menos de noventa minutos. “Ceição, prenderam o Jeremias”, disparou uma amiga mal a doméstica pegou o aparelho. “O meu filho? Não é possível! Tu se enganou.” A amiga confirmou: “O Jeremias, sim. Mas não me contaram o motivo.” Entre a vertigem e o desespero, Conceição acordou o marido: “Amor, tu não vai acreditar…”
Na véspera, dia 2 de outubro de 2016, um domingo de eleições, a doméstica deixou o sobradinho em São João de Meriti e seguiu para Belford Roxo, outro município da Baixada, onde se criou. Iria votar. Num boteco de Belford, avistou o filho de 20 anos, que jogava conversa fora com um grupo de conhecidos. Não precisou se aproximar demais para perceber que o moço bebera além da conta. “Que horror, Jeremias! Encher a cara desse jeito… Vamos embora!”, pediu inúmeras vezes, sem conseguir dobrá-lo. Não por acaso, quando digeriu minimamente a notícia da detenção, imaginou que o rapaz se metera numa briga. “Trocou socos de madrugada e acabou preso”, comentou com o marido depois de avisar à patroa que iria faltar.
O casal de negros sobressai pela discrepância física. Conceição, à época com 38 anos, é relativamente baixa e pesa 141 quilos. Já o marido, uma década mais novo, mede 2 metros de altura e se conserva magro. Segurança de um mercado, se casou com a doméstica em março de 2015. Apesar de não ser o pai do jovem aprisionado, fez questão de acompanhar a mulher à 64ª Delegacia de Polícia Civil, no Centro de Meriti.
“Cadê meu filho? Quero ver o menino agora”, suplicou Conceição assim que a atenderam. “Não pode”, retrucaram os policiais. “Onde botaram o documento dele? Quem me garante que vocês não prenderam outro Jeremias?”, prosseguiu a mãe. Os policiais explicaram que se tratava mesmo do rapaz, mas não mostraram a carteira de identidade. “Ele cometeu que tipo de crime?”, indagou a doméstica. “Um cinco sete”, informaram. “É briga?”, assuntou. “Não, senhora. Artigo 157 do Código Penal. Roubo.” Roubo? “Deus do céu! Eu falhei…”, murmurou Conceição segundos antes de desmaiar.

Emoji
Como um autêntico representante da geração que cresceu sob a égide da internet, Jeremias gosta das redes sociais. No Facebook, reúne um número considerável de amigos (4 251) e publica diversos posts de caráter pessoal, ainda que telegráficos. Ora relata o próprio cotidiano, ora escreve sobre seus relacionamentos amorosos. No sábado, 1º de outubro de 2016, abriu a rotina digital com um anúncio: “Festinha da Árvore. Hoje, às 21 horas, mulherada que quiser brotar é só chamar no chat que a tropa busca em casa.” Gíria comum entre jovens fluminenses, “brotar” significa “aparecer”. E a expressão “festinha da árvore” provavelmente deriva de um funk: “Hoje é Festa da Árvore, tá?/Só vai quem trepa.” Mais tarde, Jeremias registrou: “Comecei, hein?” Associou à frase um emoji inequívoco: duas canecas de chope fazendo um brinde. No dia seguinte, se gabou: “Onze da manhã. Estamos aqui no pique, sem dormir.” Àquela altura, o primeiro turno das eleições municipais já se desenrolava em todo o país. Vários estados impunham a Lei Seca e proibiam tanto a venda quanto o consumo público de álcool durante as votações. O Rio de Janeiro, porém, não adota a restrição desde 1996.
À noite, quando as urnas se fecharam, o peemedebista Waguinho soube que se tornara prefeito de Belford Roxo (uma semana depois, um recurso judicial da oposição levaria a disputa para o segundo turno, vencido igualmente pelo candidato do PMDB). O ótimo desempenho eleitoral empolgou os correligionários do vitorioso, que distribuíram cerveja em alguns pontos da cidade. Jeremias aproveitou a boca-livre e, aceso havia mais de 24 horas, continuou se embriagando.
O negro esguio, de cabelo bem curto, bigodinho, cavanhaque ralo e brinco, passava uma temporada em Belford, na casa de Madalena, a avó materna, que ajudou a educá-lo. Estava separado da mulher, Isabel, com quem estabeleceu uma relação bastante instável e gerou um menino, que acabara de festejar 3 anos. A moça e o garoto moravam na Zona Norte carioca, em companhia da família dela. Grávida de dois meses, Isabel esperava o segundo filho, uma menina, também de Jeremias.
Ele, que não concluiu o ensino fundamental e trabalhava desde a adolescência, arranjara emprego numa transportadora como ajudante de caminhão. Faturava 980 reais por mês, sem carteira assinada. Ainda criança, já se proclamava flamenguista doente e expert em futebol. Tentou, inclusive, virar jogador. Chegou a treinar em clubes modestos – Nova Iguaçu, Duque de Caxias –, mas não vingou. Fã do argentino Lionel Messi, cogitou batizar o filho com o nome de outro ídolo, Felipe Anderson, meia da Lazio que abocanhou uma medalha de ouro pela Seleção Brasileira nas Olimpíadas de 2016. Isabel o dissuadiu da ideia.
madrugada do dia 3 encontrou Jeremias e seus amigos em plena farra. Às tantas, um jovem de 17 anos se aproximou do bar onde o grupo se divertia. Saltou da moto que pilotava – uma Honda 125 cilindradas, sem placa – e entrou. Era um “bucha”, garoto que presta serviços miúdos para narcotraficantes, embora não pertença às facções criminosas. Os baladeiros o conheciam. Na turma, havia um sujeito que carregava uma pistola falsa. Conversa vai, conversa vem, o motoqueiro sugeriu: “Topa um rolê, Jeremias? Podíamos ir para os lados de Meriti.” Muito bêbado, o ajudante de caminhão aceitou o convite.
Antes de deixar o boteco, o “bucha” pegou emprestada a arma de mentira e a guardou na cintura. Cerca de 8 quilômetros separam Belford de Meriti. Às 2h55, já no município vizinho, o piloto da moto viu uma morena caminhando por um lugar escuro. “Vamos catar o telefone dela. Depois a gente vende e divide a grana”, propôs enquanto transferia a pistola para Jeremias – que, num arroubo, pulou da garupa e intimidou a vítima. A mulher, sem esboçar reação, entregou o celular e o carregador. O aparelho Samsung custara aproximadamente 150 reais. No bolso, Jeremias trazia um modelo bem mais caro, de 800 reais, que ele próprio havia comprado.
Tão logo os assaltantes fugiram, dois PMs que vigiavam as redondezas os abordaram. No mesmo instante, a vítima correu até a patrulha. “Esses moleques me atacaram”, gritou. Capturada, a dupla seguiu para a 64ª DP. Ali, Jeremias – que não tinha antecedentes criminais – contatou a família de Isabel: “Me ferrei.” Ela, estranhamente calma, tentou acionar os parentes do rapaz. Como não conseguiu, procurou a amiga de Conceição. Só mais tarde, lembrando o calvário que um primo enfrentara no xadrez, se alarmou e desandou a chorar.
Às 5h45, um investigador registrou a ocorrência. Iniciou-se, então, o inquérito policial – que se encerrou às 6h31. O delegado adjunto Fabrício Costa determinou a apreensão da moto e da pistola falsa, encaminhou o motoqueiro para a Vara da Infância e Juventude, devolveu o celular à mulher e prendeu Jeremias em flagrante. Indiciou-o não apenas por cometer um roubo “sob grave ameaça” (artigo 157 do Código Penal), mas também por outro crime: realizar o assalto com um menor de 18 anos, o que fere o Estatuto da Criança e do Adolescente. De quebra, aconselhou à Justiça que transformasse “a prisão flagrancial em preventiva”. Ou melhor: que impedisse Jeremias de responder o processo fora do cárcere. Para justificar a recomendação, o delegado invocou a premência de garantir “a ordem pública”, uma vez que delitos como o praticado pelo ajudante de caminhão provocam “intranquilidade no seio social, pânico e sensação de insegurança”.
Poucas horas depois, Yedda Christina Filizzola Assunção, juíza da 1ª Vara Criminal de Meriti, acatou a recomendação e determinou a prisão preventiva de Jeremias. Ratificou a necessidade de assegurar “a ordem pública” e acrescentou a de permitir “o bom andamento” do processo: a vítima, que ainda testemunharia no tribunal, poderia se sentir ameaçada caso o indiciado estivesse solto. Com o intuito de demonstrar o quanto a cidade – notoriamente violenta – precisava de paz, a meritíssima mencionou um decreto do então prefeito Sandro Matos, que em junho de 2016 declarou a segurança de Meriti sob estado de emergência por 180 dias. O político demandava, assim, que o batalhão local da PM ganhasse um reforço de pelo menos 200 policiais e que a Força Nacional passasse a atuar no município. Nem o governo estadual, nem o federal atenderam às reivindicações.
A decisão da magistrada converteu Jeremias numa espécie de preso bastante comum. Em 2015, o Ministério da Justiça divulgou uma alentada radiografia do sistema penitenciário brasileiro. Trata-se do levantamento mais extensivo e atual sobre o tema (uma nova versão deve sair brevemente). Segundo a pesquisa, no dia 31 de dezembro de 2014, 40% da população carcerária do país se encontrava em situação idêntica à de Jeremias: atrás das grades, sem ter ainda nenhuma condenação. Eram quase 250 mil detentos, num universo de 622 mil. A França, em contrapartida, ostenta uma taxa de 27%. Os Estados Unidos, de 20,5%. E a Alemanha, de 20%. Mesmo na América Latina, o Brasil não se sai muito bem. Perde para a Colômbia (36%) e o Chile (30%). Mas supera a Bolívia (86%) e o Paraguai (75%).
O quadro revelava-se tão mais dramático quanto menor o foco do estudo. Entre os 26 estados do país, dezessete exibiam índices maiores que a média de 40%, incluindo o Rio, berço de Jeremias (42%). Tocantins liderava o grupo com uma cifra igual à paraguaia. Já na seara dos estados em que a proporção não ultrapassava os 30%, figuravam apenas Mato Grosso do Sul (30%), São Paulo (29%), Acre (27%) e Santa Catarina (26%).
Outra análise, agora do Conselho Nacional de Justiça, mostra que hoje os sem-julgamento permanecem no cárcere de 172 a 974 dias até a promulgação de uma sentença. O período oscila conforme a região. No Rio, a média é de 375 dias.

Agiota
“C
eição! Ceição!” Os gritos assustados e os tapinhas hesitantes que o marido lhe desferia no rosto finalmente reanimaram a doméstica. “Eu falhei. Eu falhei. Eu falhei.” O pensamento que antecedera o desmaio ainda teimava em assombrá-la. Conceição se sentia responsável pelo infortúnio de Jeremias, embora não compreendesse exatamente por quê. Faltou mais carinho, mais disponibilidade? Até aquele momento, acreditava que fizera o máximo para criar os três filhos, todos frutos da união com um funcionário da prefeitura carioca, que durou onze anos.
“Jeremias não ficará em Meriti. Vai para Bangu daqui a pouco.” Os policiais da 64ª DP deram a informação sem nenhum rodeio, quase com displicência, mas a doméstica a recebeu como um tiro: “Bangu?! A prisão onde enfiam os tubarões?!” De fato, o Complexo Penitenciário de Gericinó – antigo Complexo Penitenciário de Bangu, denominação que ainda prevalece informalmente – abriga milicianos, narcotraficantes e corruptos de peso. O ex-governador Sérgio Cabral e outros criminosos da Lava Jato estiveram ali. Construído na Zona Oeste do Rio, é o maior do estado, com 26 presídios. Por isso, também aloja os bagrinhos.
Enquanto aguardava a transferência de Jeremias, Conceição assumiu a penosa tarefa de comunicar o ocorrido para os familiares. O pai do rapaz, que nunca se afastara das crias, reagiu com indignação. Disse que o filho não merecia mais o apoio dele. Já a avó, Madalena, perdeu o chão. Pastora de uma pequena igreja evangélica, não parava de berrar à medida que a doméstica lhe detalhava o episódio por telefone. “Socorro! Socorro!”, pedia, talvez para Deus, talvez para a vizinhança. Berrou tanto que a acudiram. Quando sossegou, tratou de ir à delegacia. Assim que chegou, pousou as mãos sobre as paredes da DP e rezou demoradamente, de olhos fechados. Entre uma oração e outra, perguntava-se por que o neto fizera tamanha asneira. Ela e Conceição nutriam a esperança de vê-lo no instante em que saísse para Bangu. Não conseguiram.
Rapidamente, a notícia da prisão se alastrou e choveram mensagens solidárias no Facebook de Jeremias: “Logo tu?”; “Que aconteceu, menor? É verdade?”; “Estou cheio de ódio no bagulho!”; “Vontade de te bater, cara! Tem merda na cabeça? Eu te amo, meu amorzinho!”; “E agora, quem vai ficar me perturbando no Zap?”; “#SoltaMeuManoSeuJuiz”; “Moleque puro, sangue bom. Não dá pra acreditar.” Em vários posts, uma frase se repetia: “A cadeia é longa, mas não é perpétua.”
Na ocasião do assalto, Conceição e o marido ganhavam juntos 4 800 reais por mês. Se não passavam necessidade, tampouco dispunham de uma poupança significativa. Haviam economizado apenas 650 reais para emergências. Não à toa, mal descobriu que Jeremias precisaria de um advogado, a doméstica acionou a Defensoria Pública no fórum de Meriti. Lá soube que o defensor gratuito só poderia assumir o caso dentro de duas semanas. Era tempo demais para a agonia de uma mãe. Restava-lhe correr atrás de um advogado particular e barato.
Decidiu, então, bater à porta dos profissionais que se espalham pelo Centro do município. Na companhia de uma amiga, visitou inúmeros escritórios, mas sempre se deparava com preços salgados. Já cogitava desistir quando encontrou Maria Nalva Bezerra. “Fecho por 6 mil reais”, propôs a criminalista. Ela cobraria 2 mil de entrada e oito parcelas mensais de 500 reais, sem juros. O valor estava abaixo do preconizado pela Ordem dos Advogados do Brasil. Conforme a tabela de honorários que a seção fluminense da OAB divulgou em outubro de 2016, processos do gênero deveriam custar, no mínimo, 9 072 reais.
Mesmo sem fazer ideia de como arrumaria o dinheiro da entrada, Conceição aceitou a proposta. Pediu empréstimos para conhecidos e não arranjou nem um centavo. Ninguém tinha nada sobrando. “Fale com seus patrões”, sugeriram. Ela se negou: “Vou morrer de vergonha. E ainda corro o risco de me humilharem.” Sem alternativas, procurou um agiota e solicitou 2 mil redondos (pretendia guardar a poupança de 650 para gastos adicionais). “Por que tu quer tanta grana?”, inquiriu o sujeito. “Porque não consigo mais dormir. Ou tiro meu filho da cadeia, ou enlouqueço.” O agiota concordou. Iria lhe entregar a quantia, mas sob uma condição: a doméstica teria de devolver 4 800, em prestações de 600 reais.

Airsoft
C
earense de Ipueiras, às margens do sertão, Maria Nalva Bezerra já perdeu completamente o sotaque nordestino. A advogada deixou a cidadezinha na infância e logo se estabeleceu em São João de Meriti. “Sou do interior do interior do interior”, costuma dizer, com um híbrido de orgulho e zombaria. Desde que chegou à Baixada, mora na mesma rua, perto de uma favela. O pai ganhava a vida como servente de pedreiro e, depois, vigia. A mãe, dona de casa, se encarregava de educar os três filhos.
Quando ingressou na PUC do Rio para cursar direito, a primogênita se tornou referência entre os Bezerra. Uma doutora com nosso sangue? Louvado seja o Padim Ciço! Jamais um antepassado progredira tanto. Usufruindo de uma bolsa integral oferecida pela própria universidade, a jovem se formou em 2002. Antes, estagiou no corpo jurídico da Fundação Getulio Vargas. Tinha currículo para pleitear uma vaga em grandes escritórios cariocas, mas resolveu abrir o dela. “Queria me dedicar à população simples de Meriti. É uma gente que conheço bem.” Hoje, beirando os 40 anos, cuida de 300 ações. Prioriza a defesa do consumidor, os processos trabalhistas, os divórcios e os conflitos que envolvem pensões alimentícias. Na área criminal, evita casos de estupro, pedofilia ou homicídio. “Não sinto empatia nem por estupradores, nem por pedófilos, nem por assassinos. Seria embaraçoso defendê-los.” Esquiva-se igualmente do “narcotráfico pesado”. “Temo virar refém, entende? Se você trabalha para as facções, acaba escutando muita coisa, muito segredo, e não se livra mais dos caras. Prefiro as causas menores: porte ilegal de armas, roubos pequenos, comércio miúdo de drogas.”
Seu escritório ocupa dois pavimentos de 20 metros quadrados numa galeria comercial bastante franciscana. A advogada divide o espaço com um colega, um assistente e um estagiário. Na sala de espera, uma pintura chama a atenção. Traz a imagem de um Cristo quase fantasmagórico, que emite feixes de luz. Pouco adiante, afixada à parede, uma folha de sulfite exibe um texto atribuído ao papa Francisco. Título: Família, Lugar de Perdão. “Não me considero religiosa, mas vários dos meus clientes se consideram. Por isso, recorri à figura de Jesus. Ele é unanimidade, né? Quem não gosta de Cristo? Evangélicos, católicos, espíritas, o pessoal da macumba… Todo mundo gosta.”
Na manhã de 6 de outubro, depois que Conceição a contratou, a advogada baixinha e elétrica rumou para Bangu. Em torno do complexo penitenciário, comprou um short azul-marinho, uma camiseta branca, Havaianas da mesma cor, duas cuecas, uma escova, uma pasta de dentes, um sabonete, um aparelho de barbear, um desodorante e um pacote de biscoito doce. Quando entram na prisão, os detentos precisam tirar as próprias roupas e ganham somente uma t-shirt, uma bermuda, um par de chinelos, um kit básico de higiene e um cobertor. Se desejarem algo mais, devem contar com a benevolência de quem os visita.
Dentro do complexo, a criminalista recebeu a informação de que Jeremias se encontrava num presídio reservado à facção Amigos dos Amigos. O grupo – popularizado pela sigla ADA – domina uma parcela das comunidades pobres fluminenses onde existe tráfico de drogas. Seus rivais são o Comando Vermelho e o Terceiro Comando Puro. “Meu cliente não faz parte de nenhuma organização. Por que o puseram lá?”, protestou a advogada. Porque a favela onde vivia com a avó está sob o controle da ADA, esclareceram. “Deu ruim. Melhor botarem o rapaz numa cela mais neutra, em que não haja integrantes perigosos da facção. É possível?” Responderam que sim.
Ainda no dia 6, a criminalista conseguiu ver Jeremias. O jovem lhe pareceu arrasado. “Chorava sem parar e se declarava arrependido. Contou da bebedeira, perguntou da mãe e descreveu o que lembrava do assalto.” Também frisou que sabia ter usado uma pistola falsa.
De acordo com a lei federal 10826, de 2003, não se permitem no Brasil a fabricação, a venda ou a importação de objetos que se assemelhem às armas de fogo verdadeiras. O veto abrange até os brinquedos. Apenas colecionadores, esportistas ou instrutores podem requisitar do Exército a autorização para adquirir as réplicas. Mesmo assim, no país inteiro, praticam-se crimes com armamentos fictícios. Em 2016, o estado do Rio apreendeu 1 508 deles – contra 9 014 armas reais. Os números são do Instituto de Segurança Pública. Entre os arremedos, havia especialmente pistolas (1 158), além de revólveres, garruchas, carabinas, espingardas, fuzis, metralhadoras, submetralhadoras e artefatos empregados em dois jogos: o paintball e o airsoft.
A assessoria de comunicação da Polícia Civil não forneceu mais detalhes sobre o assunto. Por e-mail e telefone, indaguei de onde vêm os simulacros, quanto custam e como aportam no Rio. Prometeram apurar os dados, mas nunca retornaram.

Medidas cautelares
Depois de analisar o caso, Maria Nalva Bezerra decidiu pedir à Justiça que revogasse a prisão preventiva de Jeremias e o deixasse aguardar o julgamento em liberdade. Ela mandou a reivindicação para a 1ª Vara Criminal de Meriti no dia 27 de novembro. Ponderou que seu cliente tinha residência fixa, emprego e ficha limpa à época do assalto. Alegou também que o rapaz não integrava qualquer facção criminosa. Uma vez solto, não ameaçaria ninguém nem atrapalharia o andamento da ação penal. A criminalista afirmou, ainda, que o ajudante de caminhão precisava seguir trabalhando para sustentar a mulher grávida e o filho. “Nossa sociedade não necessita de mais jovens revoltados com o sistema por não merecerem uma segunda chance”, concluiu. Àquela altura, o Ministério Público já denunciara Jeremias, que se converteu em réu.
Os argumentos da advogada não comoveram o juiz em exercício, Antonio da Fonsêca Lucchese. No dia 2 de dezembro, o magistrado reiterou a prisão preventiva. Sob a ótica de Lucchese, as “eventuais condições subjetivas em favor do acusado, como residência e emprego fixos”, não se revelavam suficientes para tirá-lo do cárcere.
O artigo 5º da Constituição brasileira apregoa que nenhum cidadão pode ser responsabilizado por um crime antes do julgamento. Prendê-lo em regime fechado sem uma sentença condenatória se justifica apenas sob circunstâncias especiais, previstas no artigo 312 do Código de Processo Penal: quando existe o risco de o acusado destruir provas, coagir testemunhas ou tomar outras atitudes que prejudiquem o desenrolar do processo; quando há a possibilidade de o acusado fugir; quando existem indícios de que o acusado vai cometer novos delitos e, assim, abalar a ordem pública; quando há a chance de o acusado subverter a normalidade econômica.
Prisões em flagrante, claro, não exigem um julgamento prévio. Se a autoridade policial surpreender alguém praticando determinadas contravenções, cabe-lhe encarcerar o infrator. Um juiz, no entanto, precisa converter tal detenção em temporária ou preventiva o mais rápido possível. Do contrário, o aprisionado deve sair da cadeia. A prisão temporária ocorre em prol do inquérito – quando a Justiça avalia que o encarceramento do acusado contribuirá para a elucidação do crime. Chama-se temporária pelo fato de não poder ultrapassar certo período: em geral, cinco dias renováveis por mais cinco. Já a preventiva tem duração indefinida.
Caso o magistrado resolva soltar o preso antes do julgamento, o artigo 319 do Código de Processo Penal admite que se adote uma série de precauções – ou medidas cautelares – para propiciar o curso satisfatório da ação. Por exemplo: requerer que o acusado use tornozeleira eletrônica, prendê-lo em casa, impedi-lo de frequentar alguns lugares e proibi-lo de se encontrar com determinadas pessoas ou se ausentar da cidade.
A legislação autoriza, portanto, as prisões preventivas, mas as enxerga como remédios excepcionais. A regra deveria ser a manutenção da liberdade até o advento de uma sentença. Daí as medidas cautelares, que nasceram justamente com o intuito de oferecer alternativas às detenções provisórias.
Acontece que a exceção virou norma. Em 2002, 33% dos presos brasileiros aguardavam julgamento. Em 2014, como já se mostrou, a proporção saltou para 40%. Eis um dos motivos de o país reunir a quarta maior população carcerária do mundo. Ficamos atrás somente dos Estados Unidos, da China e da Rússia. Os 622 mil detentos do Brasil configuram uma taxa de aproximadamente 300 encarcerados para cada 100 mil habitantes. A média internacional é de 144 por 100 mil. Outros índices – compilados pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa, o IDDD, uma entidade privada sem fins lucrativos – desnudam ainda mais a gravidade da situação:
• Entre 2004 e 2014, a população brasileira aumentou 11%. A prisional, em contrapartida, registrou um salto de 85%.
• Se considerarmos o intervalo de 2000 a 2014, o número de prisioneiros cresceu inacreditáveis 167%.
• Em 2014, as cadeias do país somavam 372 mil vagas. Como abrigavam 622 mil detentos, estavam muitíssimo lotadas. Para neutralizar o déficit, necessitariam de 250 mil vagas extras – o que equivaleria praticamente à quantidade de presos sem julgamento.
• A superlotação dos cárceres, aliada às péssimas condições de vários deles, potencializa o risco de motins. Apenas na primeira quinzena de 2017, rebeliões em onze presídios totalizaram 133 mortos.
“A prisão preventiva se transformou num analgésico que diversos juízes receitam para compensar falhas da Justiça criminal, como a morosidade”, diz o advogado Fabio Tofic Simantob, presidente do IDDD. “Já que a sentença costuma tardar, pune-se antes e julga-se depois.” Em paralelo, ainda impera no Brasil a cultura de que o encarceramento é um antídoto eficaz contra a proliferação da criminalidade. “Trata-se de um senso comum que acaba contaminando o Judiciário”, afirma Simantob. A realidade, porém, não endossa a crença. A violência e a sensação de perigo nas ruas continuam altíssimas apesar de haver tanta gente presa. De acordo com as secretarias estaduais de Segurança Pública, o país contabilizou 28 200 assassinatos durante o primeiro semestre deste ano, cifra 6,8% superior à do mesmo período de 2016.
Quando se analisam as particularidades dos 622 mil detentos brasileiros, constata-se que a maioria é do sexo masculino (94%), tem entre 18 e 29 anos (55%), se declara negra ou parda (62%), traficou drogas ou roubou (53%) e não cursou ou não completou o ensino fundamental (60%). Em outras palavras: exibe características iguais às de Jeremias.

Menstruada
F
oi só um mês e meio após a prisão do filho que Conceição pôde vê-lo. Antes, precisou se cadastrar no Complexo Penitenciário de Gericinó e tirar uma carteirinha de visitante. O primeiro encontro lhe dilacerou o coração. Para chegar à quadra esportiva em que os presos recepcionam os parentes, atravessou uma galeria, de onde avistou parte das celas. Baratas e ratos se espalhavam por todo canto. Um cheiro forte de podridão empesteava o ar. Quando finalmente abraçou Jeremias, a doméstica caiu no choro. O filho também desabou. De tão emocionados, nenhum dos dois conseguiu falar muito. Ele se desculpava incessantemente e perguntava de Madalena. “Peça perdão à vó por mim”, repetia.
O complexo dispõe de 15 500 vagas, mas aloja 27 788 detentos. O excesso de prisioneiros assombrou Conceição. “Olha aquele ali”, apontou o rapaz. “Ninguém visita. Têm vários assim por aqui.” Desde então, a doméstica procura ir semanalmente para Bangu, em geral às quartas-feiras ou aos sábados. É a única da família que comparece. O neto prefere que a avó não vá.
Entre São João de Meriti e o presídio, Conceição gasta mais de duas horas. Sai de casa às 4h40, pega três ônibus e desembarca no complexo por volta das 7 horas. Dirige-se para uma fila com uns 300 visitantes que aguardam o momento de entrar. Somente às 10 horas cruza o portão principal. Um ônibus interno a leva até a cadeia em que está Jeremias. Lá a doméstica encara outras quatro filas – para entregar a carteirinha, para adquirir uma senha, para mostrar seus pacotes e para ser revistada.
Normalmente, as revistas não a constrangem. Ela cumprimenta os seguranças, passa por um scanner e pronto. Houve um dia, porém, em que o procedimento mudou e Conceição se sentiu extremamente humilhada. “Certeza que tu não escondeu nada dentro dos bolsos? Passe de novo pelo scanner”, ordenaram. A doméstica passou. “Agora espere naquela salinha.” Uma moça surgiu à porta e, sem fechá-la, mandou:
“Abaixe a bermuda.”
“Por quê?”
“Não interessa. Abaixe.”
Conceição obedeceu.
“Abaixe a calcinha.”
“Eu estou menstruada.”
“Abaixe mesmo assim. E tire o absorvente.”
A doméstica, já bem nervosa, acatou.
“Vire de costas, abra a bunda e agache três vezes.”
A moça sacou uma pequena lanterna e examinou o ânus de Conceição. Depois, permitiu que a visitante se recompusesse. “Tudo em ordem. Liberada.”
Mulheres não podem adentrar a penitenciária de short ou minissaia. Também não devem usar sapatos fechados nem blusas verdes, brancas, pretas ou azul-escuras – cores restritas à indumentária de servidores e detentos. Interdições semelhantes recaem sobre os trajes dos homens.
O governo diz gastar 1 545 reais por mês com cada preso de Bangu, que recebe água potável, quatro refeições diárias e nada mais. Jeremias, como os parceiros de cela, reclama bastante da comida. “É azeda, mãe! Difícil engolir aquilo.” Por isso, a doméstica lhe traz salada, macarrão, farofa, arroz, carne assada, estrogonofe, hambúrguer, linguiça, frango desossado… Sempre cozinha porções extras e as oferece para alguns dos presidiários que ninguém visita. “Tenho pena dos garotos, filho.”
Conceição ainda abastece Jeremias de biscoitos (os recheados são proibidos), leite e chocolate em pó, açúcar, manteiga, repelente, produtos de limpeza, creme dental, sabonete de glicerina, desodorante, papel higiênico, remédios, toalhas de banho, lençóis, roupas e calçados. No fim das contas, despende cerca de 200 reais por semana, incluindo o custo do transporte. Quando possível, dá outros 20 ou 30 reais para o jovem desembolsar numa cantina que fica dentro do presídio. O pai dele se nega a visitá-lo, mas contribui com 300 reais por mês.
Às quatro da tarde, a doméstica deixa o complexo e inicia o extenso trajeto de volta.

Turma do Esculacho
Dos cinco ramais ferroviários que a concessionária SuperVia administra no Grande Rio, o que mais sofre com a guerra do tráfico e o vandalismo é o de Belford Roxo. A estrada de ferro que liga o município onde Jeremias cresceu à capital fluminense possui 31 quilômetros e atende diariamente uma média de 20 mil passageiros. A viagem da primeira até a última estação (Central do Brasil-Belford) costuma levar uma hora. O percurso abarca mais dezessete paradas, não raro em localidades pobres. Entre janeiro e agosto deste ano, houve dezenove interrupções na circulação de trens por causa de tiroteios. Boa parte dos confrontos aconteceu perto do Jacarezinho, uma das maiores favelas cariocas. Não bastasse, em 2016, registraram-se 45 ocorrências de objetos atirados contra os para-brisas das composições. Nesse ínterim, 156 veículos tiveram janelas arrancadas.
A concessionária já detectou 180 passagens clandestinas ao longo da ferrovia. As brechas possibilitam que se furtem cabos de sinalização e que se negociem drogas nos arredores das linhas férreas. A falta de muros em diversos trechos também estimula a construção de moradias à beira dos trilhos, o que afeta o desempenho do sistema. Quando cruzam tais ocupações, os trens – que poderiam atingir a velocidade de 80 quilômetros por hora – precisam reduzi-la para 30.
Com 494 mil habitantes, Belford Roxo padece de mazelas graves. Apenas 40% da cidade dispõe de saneamento básico e 37,5% das escolas públicas localizam-se em zonas de risco, que amargam frequentes conflitos armados. Problemas similares afligem os 461 mil habitantes de São João de Meriti, onde Jeremias cometeu o assalto, e os outros municípios da Baixada: Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Queimados, Nilópolis, Mesquita, Guapimirim, Magé, Paracambi, Japeri, Itaguaí e Seropédica. Espremida entre o litoral e a Serra do Mar, a região de baixas altitudes e superfícies planas concentra quase um quarto da população estadual e serve de dormitório para trabalhadores que ganham o sustento no Rio.
Em 5 de julho de 1962, um episódio sangrento marcou profundamente a Baixada. Na manhã daquela quinta-feira, uma greve geral convulsionava o país. O então primeiro-ministro Tancredo Neves renunciara havia pouco tempo e os grevistas pressionavam o Congresso para formar um gabinete “nacionalista e democrático”. No Centro de Caxias, milhares de passageiros se aglomeravam em torno da linha ferroviária, que se encontrava paralisada. Por volta das cinco da manhã, desencadearam um quebra-quebra e saquearam lojas das redondezas, sobretudo armazéns. À época, os alimentos estavam tabelados, mas inúmeros comerciantes praticavam preços acima dos oficiais ou guardavam os produtos na esperança de que os ventos econômicos mudassem. Daí a fúria do povão. O motim se alastrou pela Baixada e resultou em, no mínimo, quarenta mortes. Testemunhas relataram que os revoltosos capturaram o dono de uma padaria e o assaram no forno do próprio estabelecimento. Sem conseguir sufocar o levante, a polícia local teve de acionar o Exército. A sublevação só refluiu por completo após uma semana. Para proteger o comércio, jovens de classe média se uniram e formaram uma brigada transitória, a Turma do Esculacho.
Em 1963, ainda traumatizados, lojistas de Caxias decidiram arregimentar seguranças particulares e instituir na cidade um corpo de milicianos. O governo do Rio aprovou a ideia. A iniciativa acabou inspirando o nascimento dos grupos de extermínio que predominaram na Baixada entre os anos 70 e o começo do século XXI. Formados especialmente por policiais civis e militares, os esquadrões agiam de maneira clandestina, com o aval financeiro de empresários. Executavam ladrões, estupradores e homicidas – ou qualquer um que lhes parecesse criminoso. Alguns justiceiros alcançaram tamanha influência que se elegeram vereadores, deputados e até mesmo prefeitos.
Segundo o sociólogo José Cláudio Souza Alves, uma chacina impulsionou o ostracismo dos grupos de extermínio. Nova Iguaçu e Queimados presenciaram a matança que se deu em 2005. Na noite de 31 de março, PMs à paisana se deslocaram de carro por ruas dos dois municípios e alvejaram pessoas que esperavam o ônibus, caminhavam, batiam papo ou andavam de bicicleta. Assassinaram 29 delas, indiscriminadamente. Os homicidas reagiam à mão forte de um comandante que prendera policiais por má conduta. Dos onze denunciados pela carnificina, somente quatro foram condenados. Como o massacre repercutiu nacional e internacionalmente, todos os olhos se voltaram para os esquadrões da morte, que julgaram mais prudente sair de cena.
“Tempos depois, ressurgiram com uma nova configuração, a das atuais milícias”, explica Souza Alves, que estuda a Baixada desde 1993 e leciona na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. “Se os grupos de extermínio vendiam segurança, os neomilicianos expandiram os negócios. Ainda cobram taxas das comunidades para livrá-las dos bandidos, mas também exploram o transporte ilegal, a distribuição de água e gás, o comércio de terrenos e a instalação irregular de tevê paga.”
Hoje, além de policiais civis e militares, outros servidores públicos compõem as milícias. É o caso de agentes penitenciários e bombeiros. Os “anjos da guarda” recorrem à atividade paralela com o intuito de engordar os parcos salários e invocam como prova de autoridade o fato de trabalharem para o Estado. Quem ousa recusar a proteção sofre represálias severas. Habitualmente, nos lugares em que reinam, impõem o toque de recolher noturno. À semelhança dos antigos matadores, diversos milicianos enveredaram pela política e ocupam cargos tanto no Legislativo quanto no Executivo.
Em geral, as milícias combatem o narcotráfico. Ocorrem, no entanto, colaborações esporádicas entre as partes. Escutas telefônicas já flagraram os adversários negociando armas, por exemplo.
Durante anos, a comercialização de drogas na Baixada não envolvia as três principais facções do Rio – Comando Vermelho, ADA e Terceiro Comando Puro. Traficantes autônomos controlavam as bocas de fumo sem o emprego de munição pesada. Com frequência, perdoavam ou rolavam as dívidas de clientes em vez de penalizá-los brutalmente. A partir de dezembro de 2008, o panorama se alterou. As UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora, chegaram às favelas cariocas e empurraram as facções para a Baixada. O tráfico da região ganhou, assim, contornos mais organizados e cruéis. As quadrilhas rivais não apenas patrocinam chacinas e disputam espaço como se digladiam com as milícias e a PM.
Tradicionalmente, a Baixada apresenta taxas de homicídios maiores que as da cidade do Rio. A diferença aumentou depois das UPPs. É o que indica um levantamento do Instituto de Segurança Pública. Entre 2000 e 2008, a capital registrou uma taxa anual média de 41,2 assassinatos por 100 mil habitantes e a Baixada, de 54,3. Entre 2009 e 2016, a taxa carioca ficou em 22,5 e a da Baixada em 44,1.
A região também abriga contraventores que exploram o jogo do bicho e as máquinas caça-níqueis. Duas poderosas famílias se destacam no ramo: os Abraão David em Nilópolis e os Oliveira em Caxias. Ambas exercem influência sobre ricas escolas de samba: a Beija-Flor e a Grande Rio, respectivamente.
“A criminalidade na Baixada está sob o controle de cachorrões – buldogues ferozes que operam uma engrenagem cheia de tentáculos”, resume Souza Alves. “Nesse contexto, um assaltante como Jeremias é o quê? Uma pulga? Um ácaro? Talvez nem sequer um ácaro o Jeremias seja…”

Em coma
A
s dores apareceram em março de 2017, logo após o chá de bebê. Isabel beirava o oitavo mês de gestação e já escolhera o nome da criança, Ana Clara. “Eu sentia umas pontadas esquisitas. Um troço na barriga que se prolongava pelas costas e me impedia de comer, respirar, viver. Era insuportável. Se eu me deitasse, não conseguia me levantar sozinha. Se me levantavam, não conseguia andar”, recorda a mulher de Jeremias, uma negra de 22 anos, alta, magra e bem eloquente. Ela continuava morando com o filho no apartamento da mãe e do padrasto quando as fisgadas começaram. O imóvel se equilibra em cima de um bar e margeia uma favela do Engenho Novo, bairro da Zona Norte carioca. O Comando Vermelho domina as bocas de fumo que se distribuem pelas imediações. Vira e mexe, troca tiros com a polícia, de tal modo que o quarto de Isabel tem a janela trincada. Obra de uma bala que passou perto demais.
Por causa das dores, num intervalo de quatro dias, a jovem baixou seis vezes em hospitais públicos. “Os médicos faziam exame de toque, falavam que meu corpo estava se preparando para o parto, que o colo do útero ia dilatar e blá-blá-blá. ‘Não é dor’, teimavam. ‘É contração.’ Receitavam umas gotas de dipirona e me mandavam embora, sem ultrassom, sem nada.” Na sexta vez, a mãe de Isabel explodiu. “Jurou que não sairíamos dali enquanto não me tratassem direito. Ela trabalha na área de saúde. É técnica em enfermagem, sabia que podiam investigar melhor a situação.”
Testes de sangue e de urina mostraram que, de fato, havia algo errado. “Resolveram me internar e garantiram que iriam monitorar o quadro. Fiquei a madrugada no hospital. De manhã, me transferiram para uma maternidade porque a dor só piorava. Lá pelo meio-dia, finalmente pediram o ultrassom. A nenê ainda se mexia, lembro direitinho. As horas voaram, a tarde caiu, e nem sinal do ultrassom. Quando o exame rolou, já era noite. Pela expressão do pessoal, compreendi o que estava acontecendo. ‘Dê a notícia para a menina’, ouvi o médico dizer à enfermeira. Não precisavam me dar notícia nenhuma. Eu tinha certeza do que escutaria. Tanto que as lágrimas correram antes mesmo de a enfermeira abrir a boca: ‘A bebê… ela morreu.’ Claro! Por deslize da maternidade, que não providenciou logo o ultrassom. ‘A culpa é de vocês!’, gritei. Depois, tudo apagou porque entrei em coma.”
Àquele dia, 22 de março, o ajudante de caminhão ainda permanecia na cadeia. Sua advogada fizera nova tentativa de libertá-lo em janeiro. Lançou mão das argumentações anteriores e requisitou um habeas corpus no Tribunal de Justiça do Rio. Não funcionou. Após um mês, voltou à 1ª Vara de Meriti e insistiu na liberdade provisória do acusado. O juiz em exercício, Guilherme Rodrigues de Andrade, indeferiu a solicitação e marcou para 16 de maio a audiência que juntaria a defesa, a promotoria, os PMs responsáveis pela prisão, a vítima do roubo e o próprio Jeremias.
O rapaz conheceu Isabel na ilha de Paquetá, um tranquilo bairro carioca, onde a moça nasceu. Os então adolescentes participavam de uma festa. Dançaram, conversaram, deram uns beijos e tchau. Não se encontraram pelos próximos quatro meses. Para compensar a distância, papeavam via internet. “Ele me propôs namoro. Eu aceitei sem piscar, e a gente anunciou que estava num relacionamento sério. Éramos um par de imaturos… Nunca nos trombávamos pessoalmente. Tudo acontecia só no Facebook. Eu, boba, exibia a foto dele para as amigas: ‘Ó, meu namorado!’ Uma tarde, Conceição levou Jeremias até minha casa. As famílias se apresentaram e aí, sim, iniciamos um namoro de verdade.”
Quando o casal transou pela primeira vez, Isabel engravidou. Tinha 17 anos e perdeu a virgindade com Jeremias. “Por que não nos protegemos? Existe tanta alternativa nas farmácias, né? Camisinha, pílula… A gente vacilou. Simples assim. Difícil explicar o motivo. Provavelmente não imaginávamos que transaríamos tão cedo.”
Diante da gestação precoce, Isabel experimentou sensações conflituosas. “Por um lado, pulava de alegria. Ia ganhar um filho do garoto que eu amava. Mas, por outro, temia a reação da minha mãe. Com o meu pai, não me preocupava. Nunca vi o cara. Sei o nome completo dele e só.”
A técnica em enfermagem acabou aceitando a gravidez e Jeremias trocou a Baixada pelo apartamento do Engenho Novo. Isabel largou a escola – cursava o ensino médio –, mas preservou o emprego de atendente no McDonald’s. Repartia as despesas domésticas com o companheiro, que trabalhava para uma firma de interfones.
Logo a jovem se afeiçoou à avó de Jeremias. “Sempre me julguei católica, embora frequente cada vez mais a igreja da pastora. Ela tem o dom da premonição. Numa quarta-feira, avistou um carro lotado de bandidos. Deus lhe ordenou que parasse o automóvel e avisasse o motorista: ‘Se não louvar o Senhor agora, você descerá à sepultura.’ Acontece que a pastora ficou com medo de encarar a bandidagem. Preferiu mandar o recado por uns conhecidos do motorista, que não louvou o Senhor coisa nenhuma. No sábado, assassinaram o sujeito.”
Isabel deixou o emprego depois de parir. Enquanto ela cuidava do filho, Jeremias pulava a cerca. “Me traía à beça. Era tão cara de pau que perdi a confiança nele. Eu morria de ciúme, desconfiava da minha própria sombra. Se pudesse escolher, jamais iria gostar de um moleque como o Jeremias. Mas gosto…” Não à toa, o casal protagonizou incontáveis idas e vindas. Numa das reconciliações, a moça engravidou outra vez – e novamente por descuido. “Pensei em abortar, não vou mentir.” Bebeu chá de canela, que pode provocar contrações uterinas. “Uma amiga me indicou. ‘Põe bastante canela e toma bem quente.’ Por sorte, não deu certo. Eu me arrependeria.”
O coma de Isabel durou seis dias. Mal recobrou a lucidez, a jovem descobriu que sofrera uma apendicite. As pontadas se originavam disso, não da gravidez avançada. Como as providências corretas tardaram, o apêndice inflamado se rompeu e expeliu pus no abdômen da gestante, contaminando o bebê. O enterro de Ana Clara não contou com a presença da mãe, que se mantinha inconsciente. “Tiraram uma foto dela no caixãozinho. É a única imagem que restou da minha filha.”
Isabel ficou três meses internada e peregrinou por sete hospitais – apenas dois particulares. Hoje se sente melhor. “Mas meus cabelos caem muito, não aguento carregar peso e arranjei uma cicatriz imensa, que começa embaixo do umbigo e vai até o peito.” Por ainda crer no futuro, decidiu retomar os estudos em vez de trabalhar. Sobreviverá temporariamente à custa dos familiares. Não raro, acessa o Guerreiras de Bangu e outros grupos que, nas redes sociais, agregam mulheres ou namoradas de presos. À revelia dos parentes, cogita visitar Jeremias. “Talvez valha a pena a gente se dar uma nova oportunidade.”
Recentemente, escreveu sobre Ana Clara no Facebook: “A dor da morte de um filho nunca passa.” Quando o primogênito quer saber do pai, Isabel mente. “O menino adora o Homem-Aranha. Então, invento que Jeremias arrumou emprego longe daqui e vai faturar um dinheirão. ‘Quanta grana, mamãe?’ O suficiente para comprar uma bicicleta do Homem-Aranha, meu bem.”

Prática delitiva
ajudante de caminhão saiu de Bangu em 16 de maio e se apresentou no fórum de Meriti para a audiência. Entretanto, a vítima do assalto e os policiais que o detiveram não compareceram. A juíza Mariana Tavares Shu lhes aplicou multa de um salário mínimo e determinou nova audiência para o dia 20 de junho.
Também em 16 de maio, Maria Nalva Bezerra reivindicou mais uma vez a soltura do preso à 1ª Vara Criminal. Relatou que Isabel se encontrava hospitalizada, que Ana Clara morrera e que o filho de Jeremias necessitava dos cuidados paternos. A promotoria, como nas outras ocasiões, se manifestou contrariamente à advogada. Defendeu a manutenção da preventiva porque, entre outras razões, “as circunstâncias pessoais favoráveis ao acusado – primariedade, ausência de maus antecedentes e existência de ocupação lícita e de residência fixa – […] não impediram a prática delitiva”. Tampouco o fato de “possuir filho menor e mulher gestante” fez Jeremias desistir de roubar. A juíza Tavares Shu assentiu e não o libertou.

Princesa
mensagem aterrissou em meu WhatsApp numa quinta-feira à noite. Era de Conceição: “Finalmente tomei coragem pra falar com você. Rsrs. Tô procurando emprego, mas tá difícil. Tô saindo direto pra procurar e nada. Aí queria te pedir, se você souber de algum trabalho e puder me indicar, vou ser grata. Sou arrumadeira, cozinho bem, passo roupa, tenho curso de cuidadora de idosos na carteira, tenho experiência como operadora de caixa. Sou honesta, não mexo nas coisas de ninguém. Se precisar de carta de referência, pego nos meus empregos anteriores. Se você souber de algum serviço, você me fale. Pode deixar que, se você me indicar, jamais vou fazer nada que te decepcione ou te envergonhe. Preciso muito de ajuda. As contas chegam no final do mês. Fico doida…”
Eu havia travado o primeiro contato com a doméstica em dezembro de 2016. Andava estudando o sistema penitenciário brasileiro e desejava contar a trajetória de algum preso. Quando Conceição resumiu o caso de Jeremias por telefone, resolvi acompanhá-lo. Encontrei-a uma única e rápida vez antes de receber a mensagem pelo WhatsApp. Assim que li o texto, em junho de 2017, escrevi que queria visitá-la. Ela concordou. Até então, parecia um tanto reticente às minhas tentativas de vê-la.
Quase três semanas depois, me aguardava na porta de um sobrado, em São João de Meriti. Foi calorosa quando me cumprimentou. “Tu ainda não conhece a minha casinha, né? Entre, por favor. Eu gosto demais do meu canto. Agora vivo como princesa. Enfrentei tanto aperto na infância… Pensava que Leite Moça custava uma fortuna. ‘A comida mais cara que existe é Leite Moça’, dizia. Imagine… Leite condensado!”
Conceição tem um jeito manso de se expressar. A voz suave às vezes denota tranquilidade. Outras vezes, melancolia. “Fica sossegado porque aqui não rola tráfico. Falam que rola milícia, mas ninguém nunca me cobrou taxa de nada.” Ela e o marido habitam o andar inferior do sobrado, que demanda acabamento. O teto não dispõe de forro e as paredes carecem de pintura. Naquela tarde, os cômodos, espaçosos, se destacavam pela limpeza e organização. O único dormitório exibia um pôster com o desenho de quatro coraçõezinhos e duas alianças, seis fotos do casal e uma data: 21 de março de 2015, o sábado em que Conceição e o parceiro se uniram. Na sala, retratos de família enfeitavam um aparador. Perto do banheiro, um quadro pequenino mostrava Tigrão se apoiando sobre a cabeça do Ursinho Pooh. Sorridentes, os personagens infantis proclamavam: “Nossa amizade é simplesmente um espetáculo.” Embora humilde, a casa ostentava bons eletrodomésticos – geladeira com freezer, micro-ondas, fogão de quatro bocas, liquidificador e um par de televisões.
“Fali”, suspirou a doméstica. A crise econômica a atropelou sem dó. “Os patrões de Copacabana me dispensaram em fevereiro. De lá para cá, não achei emprego fixo, apenas uns bicos. E olha que faço entrevista de montão, em supermercado, em farmácia, em lanchonete. Seria perfeito se me contratassem como caixa. Volto das entrevistas e colo no telefone. Fico esperando me chamarem. ‘Toca, toca, toca’ – é só o que peço. E o danado não toca. Quando pinta alguma grana, descolo umas bijuterias e lingeries em Caxias e tento revender. Ofereço para minhas amigas de Meriti e Belford.”
O marido de Conceição também estava sem trabalho. “Ele perdeu dois empregos, acredita? Agora tu avalia: a gente na pindaíba e com despesa extra por causa do Jeremias. Precisei renegociar as prestações da advogada. Pagava 500 reais todo mês. Desde abril, pago 250. Atrasei o dinheiro do agiota, e o cara quer me esfolar viva. O nosso carrinho – não me pergunte a marca, não entendo de carro – evaporou, coitado. A gente vendeu e já gastou tudo que entrou. Sabe quanto restou na minha conta? Anteontem, passei o cartão e tomei um susto. ‘Caraca! 2,49 reais!’ É o que me sobra. Se a máquina deixasse, sacava os 2,49 e comprava um ovo, um chuchu. Mas a máquina só deixa retirar múltiplos de 20. Ontem mesmo, caiu a ficha: como visitarei Jeremias? Meu marido saiu de manhã apenas com o Bilhete Único no bolso. Eu, nem Bilhete Único tenho. Mas Deus nos proverá. Roubar é que não vou. Odiaria ficar na situação do outro. Mofar em Bangu… Ninguém merece. O correto é trabalhar.”
A família de Conceição reúne muitas domésticas. “Minha mãe, antes de virar pastora, limpava residências no Rio. Minha avó também. Era uma guerreira. Com sacrifício, adquiriu o terreno de Belford Roxo em que minha mãe ainda vive. Ela, a vó, costumava me levar para o serviço. Eu não podia andar pela casa da patroa. A mulher não gostava. Então, a vó me arranjava uma boneca e me punha no quarto de empregada. Eu permanecia o dia inteiro ali, sem televisão nem outros brinquedos. De vez em quando, a vó aparecia com um biscoito, uma fruta, um mingauzinho de farinha láctea. Eu amava farinha láctea. Por isso, não ligava de ficar no quarto. ‘Daqui a pouco, vovó vai trazer farinha láctea.’ Eu, no quarto, só queria saber de farinha láctea. E de biscoito, fruta, iogurte. Imaginava as delícias que faltavam na minha casa e torcia para a vó me arrumar uma porção delas. Será que engordei tanto porque, na infância, passei necessidade? Tipo oito ou oitenta? Antes, comia quase nada. Agora, para compensar, como em excesso. Será?”
Ela preferia não trabalhar mais de doméstica. “Sinto prazer em cuidar das coisas. O problema é a humilhação. Veja o seu Oswaldo, o patrão lá de Copacabana. A mulher dele, um doce. Já o homem… O seu Oswaldo sentava para almoçar na cozinha, a televisão transmitindo negócio de assalto, e o seu Oswaldo: ‘Ah, por que não viro presidente do Brasil? Se fosse presidente, não deixava nenhum pobre pisar em Copacabana. Essas porras estão destruindo tudo aqui na Zona Sul.’ Eu lavava os pratos e matutava: ‘Cara, o seu Oswaldo não enxerga o meu sofrimento com a história do Jeremias? Ele pode até pensar besteira, mas precisa falar na minha frente?’ Só que o homem não aliviava. ‘Roubou? Enfia em Bangu, joga álcool e põe fogo nos vagabundos!’ Eu ouvi aquilo e não me segurei: ‘Poxa, seu Oswaldo, o senhor é um idoso, já devia saber certas verdades. Tem muita gente que não presta em Bangu. Mas ali tem muita gente boa também. Gente de cabeça fraca, que meteu os pés pelas mãos e, depois, se arrependeu.”
Em maio passado, Jeremias aniversariou. A doméstica aproveitou a ocasião e postou uma mensagem no Facebook dele: “Orgulho de você, meu filho. Me perdoe se não sou a mãe com que você sonhou. Tô fazendo o possível pra ser.” Ela tinha 18 anos no dia em que o menino nasceu. E 13 quando engravidou do mais velho. Já o caçula, gerou com 19. “Espio aquelas mulheres na fila de Bangu. Um monte de mulheres aguardando para visitar os familiares. Elas, sim, me parecem fortes. Eu, não. Sou banana. Uma tragédia dessas acaba comigo. Pensar que o Jeremias – tão fechado, tão tímido – ameaçou uma pessoa… ‘Me dá o celular senão te mato!’ Alguém pobre como nós, que provavelmente comprou o telefone com dificuldade…”
Conceição nutre a crença de que o filho nunca mais repetirá tamanho disparate. “Ele agora lê a Palavra. Analisa a Bíblia e aconselha os companheiros de cela: ‘Ninguém aqui pode se revoltar, culpar os outros pelo que nos aconteceu. A gente veio para Bangu com nossas próprias pernas. Se me livrar desse inferno, só vou tratar de curtir minha família. Natal, Réveillon, Páscoa, e a gente apodrecendo na cadeia… Quantas vezes minha mãe chegava do serviço, cansada, e me pedia que preparasse um arroz. Eu reclamava. Hoje, não vejo a hora de estar em casa para botar um arrozinho na mão da minha mãe.’”

Teatro
T
erça-feira, 20 de junho de 2017. Jeremias deixou o Complexo Penitenciário de Gericinó para comparecer novamente à audiência. No fórum de Meriti, Conceição e a pastora pretendiam acompanhar tudo da plateia. Outras dez pessoas engrossavam a comitiva que encorajaria o rapaz a distância: tios, amigos e uma “prima de coração”.
“Vem cá”, chamou a doméstica. “Vou te apresentar minha mãe.” Negra e gorda como a filha, Madalena aparenta 50 e tantos anos. Fala pausadamente, usa óculos grandes e esbanja magnetismo. “Você mora onde?”, me perguntou. No Rio. Zona Sul. “Sei… Conheço bem a Zona Sul… Quando moça, fiz teatro em Copacabana. Trabalhava de empregada para pagar o curso.” Conceição se recorda de assistir à mãe numa peça. Era criança, e os atores jogaram uma bola multicolorida para o público. A menina a agarrou e não queria largá-la de jeito nenhum.
“Também morei em Copacabana. Um velho me sustentava”, continuou a pastora. “Eu, com 17 anos, junto de um sessentão. Praticamente uma prostituta, né? Tempos depois, por sorte, Jesus me escolheu.” Ele a escolheu, não o contrário? “Exato, ninguém escolhe Jesus. Ele é quem nos escolhe. Eu me dizia católica. Macumbeira, não. Nunca gostei de macumba. Só que professava aquele catolicismo de fachada. Um dia, Jesus me levou à Universal e me converti. Agora, lidero uma igreja em Belford. É pentecostal, mas não tem relação com a do Edir Macedo.”
Quando soube do assalto, Madalena se exasperou. “Por que me armaste uma cilada dessas, Senhor? Sou tua serva, e o Senhor me recompensa assim?” Na manhã seguinte, se deparou com uma fiel que lamentava a morte de um filho: “Melhor preso do que morto, pastora.” Madalena caiu em si e se arrependeu da indignação. “Tudo que Deus faz é bom, mesmo que doa”, concluiu.
Indaguei se me concederia uma entrevista mais demorada. Ela topou. Depois, voltou atrás. “Receio prejudicar meu neto. Não insista.”
Marcada para as três da tarde, a audiência começou às seis e dez. A vítima do delito não apareceu de novo, mas os dois PMs que flagraram Jeremias, sim. A juíza Mariana Tavares Shu, a advogada Maria Nalva Bezerra e a promotora os questionaram rapidamente sobre o episódio. Em seguida, o acusado adentrou a sala – de cabeça baixa, camiseta, bermuda, chinelo e algemas. Constrangido, não olhou para os amigos e parentes que o observavam da plateia. Admitiu e descreveu o crime sem evasivas. Enquanto o ouvia, Conceição chorava.
A sentença saiu em 5 de julho. Condenado por roubo e corrupção de menor, Jeremias pegou seis anos, dois meses e vinte dias de prisão. Pela lei, penas de reclusão superiores a quatro anos e inferiores a oito devem ser cumpridas, desde o início, em regime semiaberto. Nesse caso, os condenados vão à cadeia só para dormir. O ajudante de caminhão, portanto, amargou o regime fechado desnecessariamente.
Pouco depois da sentença, Conceição – que segue desempregada – teve um sonho. “Jeremias batia na porta da minha cozinha. Eu abria e não encontrava ninguém. ‘É tu, Jeremias?’ Ele, escondido, se mantinha em silêncio. ‘Não é ninguém, não? Então vou trancar já essa porta.’ Aí o menino se desescondia, me dava um abraço e prometia: ‘Mãe, não se preocupe mais. Agora vou zelar por você.’”
Até 27 de agosto, quando terminei esta reportagem, o rapaz permanecia em Bangu, aguardando os trâmites burocráticos que o libertariam.
* Para preservar a segurança e a privacidade do presidiário e de seus familiares, piauí optou por identificá-los com nomes fictícios.
(revista piauí)

terça-feira, 1 de agosto de 2017

O humor é meu pastor

Nasce uma igreja no Baixo Augusta

Será uma pegadinha? Impertinente, a pergunta teimava em me assombrar à medida que o roteirista e cineasta Newton Cannito discorria sobre religião. Estávamos em Ipanema, na Zona Sul carioca, e conversávamos havia quase trinta minutos. “Deus não perdoa ninguém”, apregoava o loiro grandalhão, de 43 anos e raízes sicilianas. “Sabe por quê? Porque Ele jamais se enfurece. Quem fica sempre de boa não necessita perdoar porra nenhuma.” Entre uma argumentação e outra, Cannito aspirava um pozinho marrom que esparramava na palma da mão. “Tsunu”, informou, separando bem as sílabas: ti-su-nu. “É um tipo de rapé. Conhece? Um híbrido de tabaco com as cinzas de uma árvore, o pau-pereira.” Para inalar a substância, se valia de um kuripe, pequeno apetrecho em forma de V, que funciona como um canudo. Arranjou-o no Acre, junto à tribo Kuntanawa. “Os índios disseram que o confeccionaram com ossos de onça. Não duvido.” Toda vez que o rapé lhe atravessava a narina, o roteirista fechava os olhos e dava um tranco para trás. “Arde à beça, cara! Parece que jogaram um Halls dentro do meu cérebro.”
Naquela tarde de julho, Cannito me contava que acabara de lançar uma igreja em São Paulo, onde mora. “Faz uns quatro meses”, calculou, enquanto manuseava o kuripe. Com absoluta naturalidade, declarou-se líder e apóstolo da tal congregação, ainda que rejeitasse o título de mestre ou guru. “Bregas demais… Terei de arranjar outra designação.” A notícia me soou inverossímil – e não apenas pelo nome esdrúxulo da igreja, Deus É Humor, que subverte o da evangélica Deus É Amor, concebida por David Miranda em 1962.
Criador de séries televisivas premiadas, como Unidade Básica, coautor da novela Joia Rara, na Globo, e diretor do filme Magal e os Formigas, Cannito vive principalmente de ficção. Às vezes, conduz os devaneios para fora dos sets e, em reuniões com amigos, assume a persona de um palhaço obsessivo, o Doutor Caneta, que toma notas de tudo. Um sujeito assim poderia – por que não? – fundar uma igreja de mentirinha e alardeá-la sarcasticamente pelos quatro cantos. Seria uma espécie de performance, que divertiria os cínicos e ludibriaria os incautos, caso existam tolos o suficiente para fisgar a isca. Embora mil pulgas já se refestelassem atrás de minha orelha, preferi não dizer nada, receoso de azedar a conversa.
“Nasci em São Bernardo do Campo, no AB paulista, e passei a infância com pavor do Lula”, prosseguiu o roteirista. “Ele despontava como líder sindical e me assustava muito, talvez por causa da barba negra e dos berros sobre os palanques. Naquela época, aliás, uma porção de coisas me amedrontava.” Não à toa, virou “fanático religioso”, um menino que precisava se cercar de rituais protetores. “Eu nunca perdia a missa e rezava o terço diversas vezes antes de dormir. Minha mãe, apesar de católica, não se mostrava tão fervorosa. E meu pai, um projetista de elevadores, transitava pelo extremo oposto. Era ateu convicto.”
Na adolescência, o futuro cineasta descobriu o niilismo do filósofo Friedrich Nietzsche e se afastou das trilhas espirituais. Só as retomou em 2004, quando se tornou usuário da ayahuasca. O chá amazônico, empregado durante cerimônias xamânicas, provoca alucinações ou, segundo os adeptos, “mirações” – vislumbres místicos que favorecem o autoconhecimento. “Graças à bebida, que tomo semanalmente, fiquei menos depressivo, arrogante e rancoroso”, avaliou Cannito. “Sem nenhum exagero: a ayahuasca me salvou.” Também o reconciliou com “o lado mais fofo do catolicismo”. “Hoje sou devoto de santo Antônio e admirador de são Francisco.”
Em 2016, num papo debochado entre colegas, o roteirista plantou a ideia de uma nova igreja. “Já sei até como chamá-la – Deus É Humor, a Seita que Dói Menos.” Todo mundo se esbaldou de rir. A receptividade assanhou o autor da troça. “Você vai achar bizarro”, me falou em Ipanema, “mas tenho um lema: se uma piada funciona, convém levá-la a sério.” Meses depois de fazer o gracejo, Cannito se reuniu com vinte conhecidos “para amadurecer a brincadeira”.

Mel e uva
encontro ocorreu em março de 2017, num apartamento do Baixo Augusta, zona boêmia de São Paulo. E ali se repete desde então, uma vez por semana. À turma inicial, uniram-se outros interessados – atores, clowns, músicos, youtubers, escritores, jornalistas. O grupo costuma não somente analisar textos espirituosos de Woody Allen, Millôr Fernandes e G. K. Chesterton como discutir as bases teológicas da nova denominação.
A igreja acredita num Deus misericordioso, que não exige nada dos fiéis: nem adoração, nem obediência. Ele permite, inclusive, que o ridicularizem e coloquem à prova. “Zombar e duvidar de nossas crenças é o melhor jeito de reforçá-las. Precisamos botar a fé em xeque o tempo inteiro. Só assim descobriremos o quanto conseguirá resistir”, pontificou Cannito. Questionar a credulidade e, em seguida, questionar o questionamento. Eis a linha mestra da Deus É Humor.
A liturgia da igreja ora remete à missa católica, ora lembra a mise en scène dos neopentecostais. Nos cultos, que acontecem mensalmente, há confissões públicas de baixarias, a consagração do mel e da uva (em vez do pão e do vinho), a releitura de orações cristãs (“Pai nosso, que estais nos céus/Santificado seja o vosso riso”) e a exaltação do nonsense. Rola, ainda, muita cantoria. O repertório abarca sucessos de Geraldo Azevedo (Sabor Colorido) e Ivan Lins (Bandeira do Divino), além de parodiar Sidney Magal (Tenho) e Alvarenga e Ranchinho (Valsa das Palmas).
Por enquanto, a Deus É Humor canonizou apenas duas personalidades: a comediante Dercy Gonçalves e o modernista Oswald de Andrade, que escreveu inúmeros poemas-piada e já dispõe de uma prece. “Vós, que viestes à Terra para alegrar nossas almas, renovai nossas utopias”, clama um trecho da reza. Brevemente, Chacrinha também ganhará o status de santo.

Dancinhas
A
 conversa em Ipanema terminava quando Cannito revelou que, aos sábados, entre 3 de junho e 8 de julho, a igreja realizou cultos-espetáculos num pequeno teatro paulistano, o Commune. “Promovemos um misto de cabaré, sarau e celebração mística, com esquetes cômicos, banda e dancinhas.” Mal escutei aquilo, decidi libertar todas as pulgas de minha orelha: “Você está me zoando? A Deus É Humor de fato existe ou não passa de um projeto artístico?” O roteirista pareceu surpreso: “Existe, claro! Tanto que registrei o nome como marca religiosa. Somos uma igreja que virou trupe. Ou uma trupe que virou igreja. Dá na mesma.” Confundir para explicar, explicar para confundir… Rogai por mim, são Chacrinha!
(revista piauí)

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