Um pé na cozinha e outro na pós

A elite branca está preparada para ter uma empregada negra que faz mestrado?
GIZELE MACHADO TORRES, em depoimento a Armando Antenore

A tristeza ainda teima em reinar, como a pandemia do coronavírus não nos deixa esquecer. No entanto, mesmo sob o império da tragédia e do luto, a alegria encontra maneiras de nos acalentar. Foi o que concluí, boquiaberta, em dezembro do ano passado, assim que deparei com meu nome no visor do celular. “Você conseguiu, Gizele! Entrou no mestrado de uma universidade pública!”, festejei em silêncio enquanto conferia pela enésima vez a lista de aprovados. Eu tentava cursar a pós-graduação da UFMG, a Federal de Minas Gerais, desde 2018. Depois de amargar duas rejeições, finalmente me saí bem. Passei em terceiro lugar na prova de admissão e conquistei uma das treze vagas disponíveis. Agora vou estudar no Departamento de Comunicação Social, onde pretendo analisar como os telejornais populares do Brasil retratam os direitos humanos. Salvo algum imprevisto, as aulas começarão neste mês. Serão de manhã ou à tarde e sempre online, pelo menos até a superação da crise sanitária. Não tenho palavras para exprimir o quanto me sinto orgulhosa por estar na pós. Difícil acreditar que cheguei tão longe. Mineira do interior, nasci numa família de negros pobres, em que praticamente ninguém terminou o ensino médio, e trabalhei como empregada doméstica ou cuidadora de idosos por duas décadas – dos 18 aos 38 anos. Em setembro, vou completar 39. Para tirar o diploma superior, me esforcei um bocado. Encarava a faculdade de pedagogia à noite, também na UFMG, depois de ralar o dia inteiro. O curso duraria nove semestres, mas tive de fazê-lo em quinze. Entre outras razões, o atraso se deu porque precisei adequar a grade curricular à minha rotina atribulada. Houve semestres em que só arranjei tempo para cursar três matérias.

Embora representem 56% da população brasileira, os negros ainda são minoria dentro das universidades. Em 2019, o ensino superior do país totalizava 8,6 milhões de alunos na graduação. Cerca de 38% (ou 3,2 milhões) se afirmavam negros, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Na pós, o descompasso se revelou bem maior. Um levantamento do Ministério da Educação demonstrou com números aquilo que muitos de nós já supúnhamos. Dos 401 mil estudantes que frequentavam o mestrado ou o doutorado em 2019, 208 mil (52%) declararam o próprio tom de pele. Desses, somente 61 mil (29%) se definiam como negros.
Sou, portanto, um ponto fora da curva não apenas entre meus parentes e os trabalhadores domésticos. O topo da pirâmide acadêmica também não costuma se relacionar com gente da minha cor e classe social. Imaginei que cruzar o funil estreitíssimo da pós-graduação iria me trazer benefícios financeiros, além dos evidentes ganhos intelectuais. Eu cuidava da dona Iolanda,[1] uma senhora de 93 anos, quando ingressei no mestrado. O emprego me parecia sólido. Fui admitida em dezembro de 2011 e, desde então, nunca escutei reclamações. Tenho certeza de que dona Iolanda e os filhos dela gostavam dos meus serviços. A família me pagava 3 mil reais por mês como autônoma. A pós não me impediria de executar nenhuma tarefa profissional. Bastavam pequenos ajustes no horário de trabalho para que tudo se acomodasse. De quebra, o mestrado me possibilitaria requisitar uma bolsa estudantil de aproximadamente 1,5 mil reais por mês. Se o governo federal a concedesse, meus rendimentos subiriam para 4,5 mil reais, os maiores de toda a minha carreira. Nada mal…
Pena que os de cima jamais se cansam de sabotar os de baixo. Tão logo soube que entrei na pós, o caçula da dona Iolanda – responsável por minha contratação – me dispensou. Convivi nove anos com aquele pessoal e, de repente, as portas se fecharam. O filho de minha patroa alegou que seria impossível adequar meu cronograma de trabalho às obrigações do mestrado. Desculpa esfarrapada. Como disse, havia margem para adaptações na dinâmica da casa, mas creio que meu empregador não desejava equacionar o suposto impasse. Por quê? Complicado responder sem pensar em racismo. Talvez seja demais para a elite branca dividir o teto com uma mestranda negra, mesmo que a mestranda negra continue lhe servindo.
Fortuna de Minas. Sempre adorei o nome de minha cidadezinha natal. O gentílico de lá é fortunense, mas brinco que deveria ser afortunado. O lugarejo, que fica a 100 km de Belo Horizonte, tem só 3 mil habitantes e conserva um forte senso comunitário. Os moradores se apoiam mutuamente. Quem tem ajuda quem não tem. Por isso, nunca vi pessoas em situação de rua no município. Qualquer fortunense que aparecer à míngua pelas calçadas encontrará abrigo. Com certeza, alguém vai acolhê-lo.
A vila que originou Fortuna de Minas surgiu em meados do século XIX. De início, apenas os familiares e agregados de José Teixeira da Fonseca Vasconcelos, o visconde de Caeté, a ocupavam. Assim que cresceu um pouco, o arraial se tornou distrito de Sete Lagoas e, depois, de Inhaúma. Somente em 1962 adquiriu o status de cidade. Dizem que, nos primórdios do vilarejo, diversas cabeças de gado sumiram de uma fazenda. Os colonos procuraram o rebanho por vários dias até o avistarem às margens de um riacho. Os animais lambiam nacos de sal-gema, rocha sedimentar muito comum na região. “Que fortuna!”, exultaram os colonos quando perceberam que os bichos se mantinham em perfeitas condições de saúde. O episódio teria motivado o nome do município.
Hoje, 81% da população se declara católica. Santo Antônio, o patrono da igreja matriz, inspira a mais concorrida festa religiosa da cidade. A comemoração ocorre todo dia 13 de junho, data em que o casamenteiro morreu e que acabou virando feriado local. Fortuna de Minas dispõe igualmente de uma capelinha onde os fiéis cultuam Nossa Senhora do Rosário. O pequeno templo só abre em outubro, por ocasião do Congado. O folguedo, de raízes ibéricas e africanas, homenageia a santa e outras divindades cristãs que os escravos reverenciavam, como São Benedito.
A extração de areia e cascalho, embora nem sempre regularizada, se converteu numa das principais atividades econômicas do município. A pecuária leiteira e o setor terciário também se destacam. Entretanto, a maioria dos negócios é modesta, de tal modo que os trabalhadores formais da cidade ganham, em média, 1,7 salário mínimo por mês.
Sou a caçula de seis irmãos. Não me recordo de enfrentar privações excessivas quando criança e adolescente. Meu pai, vigia, zelava pela portaria de uma fábrica durante a noite. De dia, engordava o orçamento capinando roças de milho, arroz, feijão ou cana. O coitado mal arrumava tempo para dormir. Já minha mãe se alternava entre a lavoura e as funções de empregada doméstica. Os dois, que permanecem juntos há uns sessenta anos, ganhavam uma ninharia, mas o bastante para nos garantir o necessário. Criávamos porcos e galinhas no quintal, plantávamos boa parte do que comíamos e desfrutávamos de uma mesa farta, ainda que sem refrigerantes, iogurtes e outras guloseimas. Erguidas com adobe, um tijolo de terra e fibras vegetais, as paredes da nossa casa precisavam de acabamento, à semelhança do piso rústico, de cimento cru. A gente costumava vestir roupas usadas, que os vizinhos nos doavam. Eu só punha sapato ou chinelo para ir à escola. Como vivia descalça, a sola dos meus pés esbanjava rachaduras e cascões.
Naquela época, existia um único colégio em Fortuna de Minas. Era estadual e tinha nome de militar: Coronel Américo Teixeira Guimarães. Às voltas com a sobrevivência, meus pais não prestavam muita atenção em nossos estudos. Preferiam exaltar o pragmatismo dos filhos, a capacidade de resolverem problemas básicos do cotidiano. “Se não nos falta comida, estamos bem”, repetiam. O mantra serviu de guia para quase todos os meus irmãos. Nenhum se preocupou em concluir o ensino fundamental, à exceção da mais velha, que fez o magistério, mas nunca lecionou.
Sabe-se lá o porquê, contrariei a regra e, desde cedo, enfiei na cabeça que estudar me permitiria superar a pobreza. Com 5 anos, já conseguia ler e escrever. Falam que aprendi sozinha, escarafunchando os livros didáticos das minhas irmãs. Fui uma aluna mediana, apesar de extremamente dedicada. Não figurava entre as melhores da classe nem entre as piores. Só derrapava feio em matemática. Equações, raiz quadrada, porcentagens e afins me tiravam o sono.
Se não estimulavam o aprendizado dos filhos, meus pais tampouco o boicotavam. Eles jamais me pediram para abandonar os estudos e arranjar um emprego, mesmo quando o cinto apertava além do habitual. Eu curtia assistir às aulas, mas detestava a atmosfera da escola. Sofria bullying incessante dos colegas maiores, que me oprimiam não apenas por ser acanhada e franzina. Os moleques zombavam especialmente da minha pele retinta: “Ô, poço de piche! Ô, brasa apagada! Ô, macaca fedorenta!” As ofensas partiam tanto dos alunos brancos, minoritários, quanto dos negros mais claros, que compunham o grosso do corpo estudantil. Pouquíssimas vezes os professores e bedéis recriminavam as condutas preconceituosas. Normalmente se omitiam ou davam broncas genéricas, do tipo: “Parem de amolar a menina!” Ninguém tomava a iniciativa de explicitar e condenar o teor racista daqueles impropérios.
Em determinadas circunstâncias, a escola até reforçava a discriminação, provavelmente sem notar. Lembro que, no dia 13 de maio, os professores montavam peças para celebrar o fim da escravidão. Garotas brancas interpretavam a princesa Isabel, com tiaras brilhantes e vestidos maravilhosos. Já os alunos negros representavam os cativos e se mostravam imensamente gratos à bondosa herdeira de dom Pedro II por assinar a Lei Áurea. Trajavam roupas confeccionadas com sacos de estopa e, nas mãos, exibiam grilhões de cartolina. Em nenhum momento as encenações questionavam os clichês relacionados à abolição.
Eu sentia um gigantesco incômodo diante dos xingamentos corriqueiros, embora não os enxergasse como racismo. Com o tempo, os insultos destruíram a minha autoestima. “Você é preta demais! Tem nariz de batata e cabelo ruim!”, me lamentava às escondidas. Não por acaso, evitava andar debaixo do sol para amenizar o escuro da pele, prendia o nariz com pregadores de roupa na esperança de afiná-lo e alisava meus cachos de maneira compulsiva.
Infelizmente, minha família também reproduzia os estereótipos raciais sem crítica e aderia à ideia de a negritude ser uma condição indesejável. Meus irmãos juravam de pés juntos que não se casariam com pretos: “Deus nos livre de botar negros no mundo! Para quê? Para penarem?” Os cinco acabaram cumprindo a promessa e arrumaram parceiros brancos. Dos meus catorze sobrinhos e oito sobrinhos-netos, todos são mais claros que seus ancestrais de origem africana.
Na minha infância, Fortuna de Minas carecia de hospitais. Restava à população se consultar num minúsculo posto de saúde, onde não havia médicos. Ali trabalhavam somente duas auxiliares de enfermagem, que atendiam os casos mais simples. Uma ambulância velha transferia os pacientes em pior situação para cidades das redondezas, como Sete Lagoas. Mesmo sem qualquer proximidade com médicos e hospitais, cismei que estudaria medicina quando crescesse, talvez influenciada pelo charme dos doutores que apareciam na televisão.
Curiosamente, demorei para compreender o que significava a palavra “faculdade”. “Quero ser médica”, dizia no colégio. “Que ótimo! Então você terá que entrar numa faculdade”, me respondiam os professores, sem alongar a conversa. Como assim? Faculdade? Eu intuía se tratar de uma escola mais refinada, só que desconhecia todo o resto. Onde existiam faculdades? De que jeito se ingressava numa delas? A timidez oceânica me impossibilitava de perguntar. Quem nasceu nas classes alta e média dos centros urbanos deve considerar as minhas dúvidas de pré-adolescente um tanto inverossímeis. Em Fortuna de Minas, porém, raríssimos estudantes das décadas de 1980 e 1990 almejavam o ensino superior. Geralmente, as famílias locais pensavam como a minha e não educavam os filhos para se tornarem advogados, engenheiros, arquitetos ou biólogos. Nem mesmo os professores do colégio necessitavam de diploma universitário. Daí a ignorância da garotada sobre o assunto.
Em dezembro de 2000, tão logo acabei o ensino médio, consegui meu primeiro emprego. Seria faxineira de uma vendinha e ganharia 28 reais por mês, quase um sexto do salário mínimo de então, mas trabalharia apenas nove horas semanais. Eu já sabia, àquela altura, que precisaria me mudar para Belo Horizonte se realmente desejasse fazer medicina. Também estava ciente de que não poderia bancar uma faculdade particular. Teria de passar na disputada UFMG ou abdicar da pretensão. Resolvi arriscar. “Vou embora daqui”, avisei para meus pais. Eles rechaçaram a decisão com todas as forças: “Loucura, Gizele! Fazer o que na capital?” Entretanto, não me impediram de partir. Larguei o emprego, e em janeiro de 2001 cheguei à rodoviária de BH.
Mal desembarquei, tratei de me matricular num cursinho relativamente barato. Em paralelo, virei empregada doméstica de uma idosa, a Marieta. Ela morava sozinha num apartamento de três dormitórios. Descolei o serviço por indicação de uma fazendeira da minha cidade. Eu pegaria no batente de dia e estudaria à noite. Achei o esquema muito vantajoso. Receberia 180 reais por mês, bem mais do que me ofereceram em Fortuna de Minas, e não gastaria com aluguel. Iria dormir na casa da patroa.
O cursinho rapidamente escancarou meu absoluto despreparo. Percebi que me faltavam bagagem cultural e, principalmente, o hábito de refletir sobre o que aprendia. O colégio estadual que frequentei não ensinava como estabelecer conexões entre um assunto e outro nem como aprimorar a criatividade. Nas aulas de história, por exemplo, os professores exigiam somente que decorássemos os fatos e as datas. Estimulavam a memória dos alunos, não o pensamento crítico. Foi um choque tomar consciência de tamanha defasagem. Por um triz, não desisti de tudo.
No final de 2001, prestei o vestibular para medicina pela primeira vez. Não alcancei a pontuação necessária, altíssima, mas persisti. Continuei me preparando, agora por conta própria, e enfrentei mais cinco ou seis vestibulares, sempre na UFMG. Nunca me dei bem. Frustrada, reduzi minhas ambições e ingressei num curso técnico de enfermagem, que durou cerca de três anos. A experiência me aproximou da rotina hospitalar e triturou as ilusões que a medicina despertava em mim. Conheci o lado menos glamoroso do ofício – o pedantismo de certos doutores, as jornadas exaustivas, o desrespeito à bioética – e odiei.
As decepções, porém, não aplacaram minha ânsia de entrar numa faculdade. Em meados de 2009, tive um daqueles insights capazes de mudar uma vida. Constatei o quanto o estudo havia me transformado. “A educação é de fato subversiva! Vou me tornar professora”, decidi. Meses depois, fiz vestibular para pedagogia e passei em sétimo lugar. À época, a UFMG ainda não implantara a política de cotas raciais que vigora atualmente. Por isso, me beneficiei de outro sistema reparatório: o bônus de 15% que a instituição acrescentava na nota dos candidatos negros e oriundos de escolas públicas.
Marieta, minha patroa, já beirava os 80 anos quando me contratou. Mesmo assim, nunca precisei chamá-la de dona ou senhora. Desde o princípio, construímos uma relação de profundo carinho, respeito e companheirismo. Não hesito em dizer que ficamos amicíssimas. Branca de sangue libanês e divorciada, Marieta sustentou os três filhos como costureira. Só ascendeu financeiramente por causa dos rapazes – um engenheiro, um mastologista e um gerente de banco –, que lhe davam condições de viver num bairro abastado de Belo Horizonte. Eles e os cinco netos costumavam visitá-la. Jamais a abandonaram, mas se distanciaram dela em termos afetivos. É um fenômeno comum e sorrateiro: as famílias põem os idosos sob a responsabilidade de uma empregada e, quase sem perceber, vão delegando à funcionária também a missão de amar aquela mãe, aquele avô.
Eu me encarregava de tudo no apartamento da Marieta: cozinhava, lavava e passava as roupas, limpava os banheiros, organizava as compras… Simultaneamente, assumia papéis típicos de uma cuidadora. Levava Marieta para as consultas médicas, os exames laboratoriais, a pracinha, o shopping, o teatro e o cinema. Ela tinha algumas limitações físicas, mas estava perfeitamente lúcida. Era divertida, sagaz, curiosa, altruísta e linda. A velhice não lhe apagou a beleza.
Como Marieta professava o espiritismo, religião que sempre me interessou, líamos juntas os livros do Chico Xavier e frequentávamos um centro kardecista, onde acompanhávamos uma série de palestras, fazíamos cursos e trabalhávamos voluntariamente na biblioteca. Hoje me considero mais espírita do que católica.
Mesmo não sendo muito escolarizada, Marieta apoiava com entusiasmo meus sonhos acadêmicos e adaptava o funcionamento da casa às minhas demandas de estudante. “A cozinha é pouco para você, Gizele”, repetia sem descanso, como uma ladainha. “Você merece o mundo.” Ela me incentivou até quando resolvi tirar carteira de motorista: ia comigo à autoescola, sentava no banco traseiro do carro e não cessava de palpitar durante as aulas de direção, para desespero do instrutor.
Volta e meia, ainda me pergunto por que Marieta gostava tanto de mim. Será que, inconscientemente, me colocou no lugar da filha que não teve? Será que minha juventude lhe servia de bálsamo para suportar as agruras da velhice? Não sei… Sei apenas que o acolhimento dela me fez segurar a barra pesadíssima de largar os parentes e aportar numa cidade tão assustadora. Eu nunca havia deixado o interior antes de trocar Fortuna de Minas por Belo Horizonte. A surpreendente hospitalidade da Marieta me encheu de ânimo para não roer a corda nos momentos mais difíceis.
Em certas situações, quase acreditei que pertencia àquela família. Mas, por força de um bom senso que me é natural, sempre encontrei jeitos de firmar os pés no chão. Logo entendi que deveria enxergar Marieta prioritariamente como minha patroa. Em consequência, jamais abri mão de vestir uniforme durante o expediente ou dormir no quartinho de empregada e não num cômodo maior do apartamento. Também voltava com regularidade à casa dos meus pais. Foram poucas as folgas em que não retornei. Queria me manter unida à minha gente. Sinto pena das colegas que se confundem com os patrões e renegam os próprios laços familiares. Quanta ilusão… De que vale nos julgarmos parte de outra família se mais ninguém nos vê assim? No prédio em que Marieta morava, cansei de ouvir comentários discriminatórios entre os vizinhos: “Olha só como a Gizele é inteligente! Como conversa direitinho! Como não erra no português! Nem parece uma doméstica…” O edifício inteiro me considerava funcionária da Marieta. Por que justo a funcionária não se consideraria?
Eu tinha o comportamento de um soldado naquele tempo. Minha rotina não poderia ser mais espartana. Trabalho, estudo, trabalho, estudo. Não existiam brechas para uma festinha com as demais empregadas do prédio ou um boteco com a galera da universidade. Até mesmo quando visitava meus pais em Fortuna de Minas, não me permitia relaxar completamente. Ora os ajudava na roça e no preparo das refeições, ora alimentava os bichos e varria o quintal.
Para piorar, os filhos da Marieta – que se responsabilizavam por minha carteira profissional – não me concediam férias, ainda que as pagassem. “Quem vai substituir você à altura?”, explicavam. Eu aceitava porque, no fundo, preferia me isolar. O excesso de compromissos funcionava como desculpa lapidar para uma jovem repleta de complexos, que temia a convivência social e sobretudo os jogos amorosos. Não é exagero dizer que eu fugia dos homens e de qualquer possibilidade romântica. Rejeitava-os, primeiro, por me achar predestinada à solidão (“Uma moça feia como você não merece ternura nem cuidados”, pensava). Depois, por recear que me usassem. Desde a adolescência, tenho horror daquele preconceito tão disseminado de que “as brancas são para casar e as pretas para transar”. A hipótese de virar um bibelô sexual me assombrava de tal maneira que refreava minha afetividade. Não se tratava de puritanismo, mas da convicção precoce e arraigada de que as mulheres negras devem ocupar outro espaço no imaginário brasileiro. Havia, igualmente, o medo de engravidar. Duas de minhas três irmãs se tornaram mães muito cedo. Eu não desejava trilhar o mesmo caminho.
Estudar pedagogia na UFMG significou um baque ainda maior do que fazer cursinho. Tudo me soava estranho dentro do campus: a metodologia de ensino, o discurso rebuscado de alguns docentes, os textos em inglês e espanhol, a obrigação de escolher disciplinas optativas. Recordo que escrevi meu primeiro trabalho universitário à mão. Ninguém me explicou que seria preciso digitá-lo. Quando o entreguei, a professora se espantou: “À mão?! Você não tem computador?” Não… Eu realmente não tinha nem sabia que necessitaria de um.
Naquela ocasião, a UFMG já adotara diversos programas de auxílio à parcela mais pobre da comunidade acadêmica. Foi com o dinheiro oferecido por um deles que comprei um notebook. Também ganhei vale-transporte, uma bolsa mensal de 180 reais, se não me falha a memória, e o direito de comer gratuitamente no refeitório. Não à toa, defendo com unhas e dentes as políticas de ações afirmativas que se espalham pelo país. Eu nunca alcançaria a universidade nem conseguiria terminá-la sem iniciativas do gênero. Não é só uma questão de mérito e empenho individuais, como muitos privilegiados insistem em apregoar. As reivindicações antirracistas dos que me precederam, as batalhas por uma sociedade mais igualitária, os movimentos em prol da educação pública e a ajuda cotidiana que recebi de outros estudantes contribuíram decisivamente para o meu êxito. Sou o resultado de um esforço histórico e coletivo.
Não tenho dúvidas de que a UFMG me revolucionou. Lá conheci o pensamento decolonial, que põe em xeque o eurocentrismo e prestigia o legado dos povos indígenas, afro-brasileiros e ribeirinhos. Lá participei de debates que me apaziguaram com a negritude – com meu nariz achatado, minha pele retinta e meu cabelo crespo. Lá me defini como uma cidadã de esquerda. Compreendi a luta de classes e o quanto a exploração dos trabalhadores se naturalizou. Um punhado de gente ainda considera normal não pagar hora extra para um funcionário ou não lhe garantir segurança ocupacional. No caso das domésticas, a opressão se manifesta inclusive pelas tentativas de estupro. Jamais enfrentei nada semelhante, mas sei de várias empregadas que sofreram assédio ininterrupto dos patrões.
Lamentavelmente, Marieta não me viu concluir a faculdade. Ela morreu no dia 24 de outubro de 2011, em decorrência de um câncer. Estava com quase 90 anos e exibia leves sintomas de demência, como a perda de memória. Fiquei arrasada, é claro. A morte da Marieta me abalou mais que a de meu irmão, em 2003, num acidente de carro. Nós dois convivíamos pouco. Ele já passava boa parte do tempo fora de casa quando nasci.
Por sorte, em dezembro de 2011, me empreguei outra vez. Fui trabalhar justamente com dona Iolanda, sogra do oncologista que tratou da Marieta. A nova patroa, octogenária na época, tinha seis filhos e dez netos. Era branca de ascendência italiana, viúva e professora aposentada de língua portuguesa. Morava com uma doméstica veterana, de uns 50 anos, num sobrado amplo e agradável. Eu exercia unicamente as funções de cuidadora porque dona Iolanda padecia de Alzheimer. Para alívio de todos, a doença ainda engatinhava. Mesmo assim, demandava atenções especiais.
Em fevereiro de 2012, o caçula da dona Iolanda assinou minha carteira profissional. Comecei ganhando dois salários mínimos e meio, ou cerca de 1,6 mil reais. Com a segunda patroa, decidi estabelecer um relacionamento menos informal. Gostávamos uma da outra, mas faltava cumplicidade entre nós, o que não me impossibilitou de lhe proporcionar os melhores cuidados. Modéstia à parte, meus serviços primavam pela excelência. Só assumi uma postura mais distanciada por precaução. Não queria me apegar muito àquela senhora para evitar sofrer em demasia com nossa inexorável separação. O doloroso luto que recaiu sobre mim após a morte da Marieta me pareceu suficiente.
Vivi na casa da dona Iolanda até o início de 2016, quando finalmente cansei de tanta dedicação. Já não aguentava orbitar apenas em torno do emprego e da faculdade. Por me sentir mais amadurecida e confiante, desejava expandir meu círculo social. Um dia, tomei coragem e me mudei para uma república de moças. Foi sensacional! Pela primeira vez desde que pisara em BH, pude usufruir da separação entre moradia e local de trabalho. Eu chegava por volta das 8 horas à dona Iolanda, saía perto das 17 e baixava na UFMG. De lá, não raro, esticava para um chopinho, uma balada ou um restaurante com as meninas da república.
Um fantasma, no entanto, continuava me assombrando: o da inexperiência sexual. “Você vai fazer 34 anos, Gizele! Por que ainda não se permitiu transar?” A indagação, que partia de mim mesma, agora me atormentava sem tréguas. Eu passei a juventude zelando pelos corpos alheios – o da Marieta, o da dona Iolanda e os de alguns familiares –, mas não deixava que tocassem o meu intimamente. Com 20 anos, dei o primeiro beijo. Estava na Festa de São Geraldo, em Curvelo (MG), e avistei um rapazinho. Ele se engraçou. Eu retribuí. Ele se animou e… Daquela noite em diante, nunca mais me aproximei de ninguém. No máximo, cultivava amores platônicos. Conhecia fulano, me apaixonava loucamente e cogitava abrir o coração, só que o pavor de engravidar ou virar um bibelô dos homens acabava imperando.
Resolvi procurar terapia. Não funcionou. A psicóloga – branca e talvez rica – teimava em me responsabilizar integralmente por minhas limitações. Ela não conseguia perceber que meus bloqueios derivavam de todo um contexto socioeconômico, de toda uma lógica racista. Às tantas, abdiquei daquilo. Desisti das sessões e me inscrevi num curso virtual sobre feminismo negro, em que travei contato com os livros de intelectuais pretas formidáveis, como a mineira Lélia Gonzalez, a paulista Sueli Carneiro e a norte-americana bell hooks. Por incrível que pareça, as três me acolheram bem mais do que a terapeuta. Os ensaios delas esclarecem com precisão de que maneira o racismo estrutural rebaixa as mulheres da minha cor. Se a cultura hegemônica diz que somos inferiores, é previsível que nos vejamos assim também. Eu já pressentia a existência desse mecanismo perverso, mas não achava as palavras exatas para desnudá-lo até ler as reflexões do trio.
Certa manhã, em agosto de 2017, topei com um gordinho de cabelos grisalhos na fila de um hospital. Ambos esperávamos os resultados de uns exames. Papo vai, papo vem, senti atração pelo sujeito e aceitei encontrá-lo fora dali. Logo de cara, reparei que tínhamos diferenças expressivas. Ele se chama Weslei Torres Dutra, é 22 anos mais velho, já casou inúmeras vezes e tem quatro filhos, que lhe deram quatro netos. Natural de Belo Horizonte, só finalizou o ensino médio e trabalha como garçom. Nossos percursos tão contrastantes poderiam nos opor, mas ocorreu o inverso. A gente se complementa desde que nos cruzamos naquele hospital. Weslei rapidamente se mostrou atencioso, sereno, engraçado, jovial e perspicaz. Soube respeitar as minhas caraminholas e o meu timing. Nunca apressou as coisas. Com delicadeza, me ajudou a perder o medo de amar. Em janeiro de 2020, oficializamos nossa união.
Lógico que Weslei nem sempre comunga dos meus interesses acadêmicos. Há assuntos que simplesmente não discutimos. Se pretendo conversar sobre questões teóricas, busco colegas da universidade. Em casa, ambiciono outros tipos de interação, mais emocionais do que racionais.
Um ponto relevante: meu marido é branco. Por ironia, repeti o padrão familiar e não me casei com um negro. Acredito, porém, que minha escolha se baseou exclusivamente no afeto. Não enxergo Weslei como um passaporte para o “admirável mundo da branquitude”. Tampouco o exibo como um troféu capaz de me valorizar socialmente. Na verdade, as características físicas de meu companheiro até suscitam algum mal-entendido. Quando passeio com Weslei e os netos dele, muita gente imagina que sou a babá. Não ligo, mas noto o imenso constrangimento de quem se equivocou.
Também em agosto de 2017, três semanas antes de encontrar meu futuro marido, terminei o curso de pedagogia e convidei a parentada inteira para a colação de grau. Eu estava transbordando de felicidade. Era a primeira da família com diploma superior. Depois de mim, uma sobrinha se formou engenheira de produção e outra ingressou em odontologia.
Mesmo graduada, não larguei a dona Iolanda. Cuidava dela ao longo do dia e lecionava à noite. Dava aulas gratuitas de alfabetização para operários da construção civil. Queria adquirir experiência e devolver à sociedade um pouco do que aprendi na UFMG.
Como almejo a carreira de professora universitária, preciso de mestrado e doutorado. Por isso, em 2018, comecei os estudos para entrar na pós-graduação da própria UFMG. Foi mais ou menos quando o caçula da dona Iolanda sugeriu alterar meu regime de trabalho. Virei autônoma e tive um aumento líquido de salário. Com carteira assinada, embolsava 2,6 mil reais por mês. Na nova condição, faturaria 3 mil.
Inicialmente, tentei o mestrado na Faculdade de Educação, onde havia cursado pedagogia. A banca responsável por selecionar os candidatos me rechaçou duas vezes. Parti, então, para a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, que me aprovou. Ali se localiza o Departamento de Comunicação Social, em que defenderei minha dissertação sobre telejornais populares. Optei pelo assunto porque, enquanto alfabetizava os operários, observei como a televisão molda o pensamento deles. “Falemos hoje de direitos humanos. O que significa?”, perguntei à turma certa ocasião. Resposta unânime: “Direitos humanos é aquele negócio que protege vagabundo e bandido.” Contestei: “Não é, não!” E os alunos: “É, sim! A gente ouviu no programa do Datena.”
Fiquei muitíssimo decepcionada quando o filho da dona Iolanda me demitiu sob a alegação de que o mestrado rivalizaria com meus horários de trabalho. Eu vou fazer apenas duas disciplinas por semestre – e as aulas, embora diurnas, serão remotas. Claro que sobrava espaço para adequar a pós às minhas tarefas habituais.
O caldo só não entornou de vez graças a Fortuna de Minas. O prefeito da cidade – o emedebista Claudio de Nicote, amigo de meus pais há duas décadas – me ofereceu um cargo municipal, que exercerei em paralelo com a pós. Assim, no dia 1º de fevereiro, tomei posse como subsecretária de Cultura. Voltei à minha terra para ganhar 1.674,79 reais, praticamente a metade do que dona Iolanda me pagava. A falta de dinheiro, portanto, ainda me persegue. Nos momentos de desânimo, tenho a impressão de que escalei o Himalaia e, em troca, recebi uma medalhinha de lata. Mas logo afasto o baixo astral, invoco a resiliência dos meus antepassados, agradeço pelo trajeto percorrido e me sinto forte outra vez para desbravar novas cordilheiras.


[1] Neste artigo, decidi omitir os nomes verdadeiros de minhas patroas para não trair o respeito à privacidade que, acredito, deve nortear as relações profissionais de uma empregada doméstica ou cuidadora de idosos.
(revista piauí)

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