A vizinha

Ela surgiu de repente à minha porta com uma história perturbadora

Eram dois, mas pareciam um – e cochilavam na porta de minha casa. Dividiam um edredom muito limpo, que estenderam próximo de uma árvore, sobre a calçada de pedras portuguesas. Cobertos com um lençol, se abraçavam tão umbilicalmente que, de longe, julguei se tratar de uma única pessoa. Ou melhor: de um rapaz. Eu o avistei mal saí do pequeno hall que abriga os elevadores do prédio onde moro há nove meses. Apenas os cabelos dele – encaracolados, curtíssimos – e parte do rosto estavam à mostra. O restante se escondia sob o lençol branco, salpicado de estampas florais. Passava um pouco das 14 horas. A profusão de nuvens carregadas não combinava com aquele Primeiro de Maio. Por decreto, os feriados no Rio de Janeiro deveriam ter sempre sol, brisa e céu azul. Mesmo sob a promessa de chuva, decidi passear de bicicleta. “Estranho… Os sem-teto do bairro costumam dormir mais para lá”, pensei, enquanto empurrava a bike até o portão de grades marrons que me separava da rua. Somente quando o abri é que notei alguém junto do moço – uma companhia miúda, inteiramente oculta pelo lençol. “Uma criança? Seu filho?”, aventei. Perto da dupla, repousava uma gigantesca mala de viagem, relativamente nova, com rodinhas e inúmeros zíperes.
Pedalei duas quadras, em direção à praia de Copacabana, e segui pela ciclovia que beira o mar. Nas proximidades do Leme, me lembrei de um comunicado que a síndica do meu prédio distribuíra em março. O aviso de 21 linhas me despertou a atenção por expressar um conceito francamente higienista de cidade. Dizia que usuários de crack tinham se instalado nas redondezas e que “a ocupação irregular” dos “nossos quarteirões” exigia providências urgentes. Recomendava, então, que os condôminos baixassem um aplicativo da IplanRio – a empresa municipal de informática – e o acionassem sempre que se deparassem com os forasteiros. Bastaria denunciar os invasores à prefeitura, e as autoridades dariam um jeito de removê-los. Para onde? A circular não se preocupava em esclarecer. Embora reconhecesse que “vivemos uma fase difícil” e que dependentes químicos precisam de tratamento adequado, o informe enfatizava que adictos costumam sujar as calçadas, além de ameaçar, assaltar e agredir os transeuntes. “Vamos agir juntos para que saiam daqui”, conclamava.
O apelo, claro, me incomodou. Eu não sabia propriamente como lidar com os novos vizinhos, mas expulsá-los das imediações sem fazer ideia do destino que os agentes públicos lhes reservariam me soou descabido. Será que os internariam à força? Será que os confinariam em regiões menos abastadas do Rio? Entretanto, a apatia que cada vez mais se apossa de mim quando estou diante das infinitas mazelas urbanas me impediu de procurar a síndica ou mesmo a prefeitura para estudar a melhor maneira de enfrentar a situação.
Num primeiro momento, cogitei que o rapaz à minha porta pudesse ser um dos craqueiros mencionados na circular. Logo, porém, descartei a hipótese. O edredom limpo e a mala imensa pareciam indicar que o jovem se tornara morador de rua muito recentemente. Perdeu o emprego em razão da crise que há quatro anos corrói o país, ficou sem dinheiro para o aluguel e acabou despejado com o filho, concluí ainda pedalando, agora rumo à orla de Botafogo. Por onde andaria a mãe da provável criança? O enredo que imaginei não incluía a resposta.
Desde o começo de 2018, sinto que aumentou a quantidade de desabrigados no Rio. Em todo canto – praças, avenidas, viadutos, largos, praias –, veem-se grupos de sem-teto. A Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos não corrobora nem rejeita minha impressão. Afirma que lhe faltam estatísticas atualizadas sobre o assunto e que prepara uma pesquisa a respeito, embora não informe quando a divulgará. O levantamento mais novo e abrangente é de 2016. Realizado pela própria secretaria, sob a gestão do prefeito Eduardo Paes, indicava que 14 279 pessoas dormiam nas ruas da cidade. O índice praticamente triplicara em relação a um estudo de 2013. Mas recenseamentos não me importavam naquele feriado. A abstração dos números pouco significava perto da concretude de dois indivíduos que, repentinamente, se acomodaram diante do meu edifício. Estavam ali, mais do que uma pedra no meio do caminho, e já não havia como reduzi-los à invisibilidade.
Tão logo voltei do passeio, resolvi desafiar minha apatia recorrente e abordar a dupla. Guardei a bicicleta, retornei para a rua e me sentei na calçada, que se mantinha seca – apesar do céu nublado, a chuva não viera. Os dois sem-teto ainda cochilavam. Esperei dez ou quinze minutos até que o rapaz acordasse. Ele me olhou ressabiado e, lentamente, se livrou do lençol. Negro e esguio, usava bermuda, camiseta e sandálias de borracha.
– Boa tarde! Moro aqui em frente e queria saber se vocês precisam de alguma coisa.
– Ô, tio, estou cheio de fome. Me paga uma quentinha? Ali no bar, vendem comida por quilo. Não é cara, não.
– Só para você? E para a criança?
– Criança?! Que criança?
Depois de uns segundos, caiu na gargalhada e cutucou a pessoa com quem rachava o edredom.
– Caraca! Ele pensa que tu é criança, Kika! Criança nada! Tu só se esqueceu de crescer.
Uma mulher negra, que vestia apenas uma camisa larga e comprida, saiu de baixo do lençol. Devia medir 1,45 metro ou menos. Magra, descabelada e sonolenta, com cara de poucos amigos, se espreguiçou e não disse uma palavra. No lábio inferior, exibia um piercing rudimentar, em formato de argola, que me deu a sensação de machucá-la.
****
tevê do bar transmitia a semifinal do mais importante torneio europeu de futebol, a Liga dos Campeões. O Real Madrid enfrentava o Bayern de Munique. Assim que entrou no boteco, caminhando depressa, uns bons passos à minha frente, o rapaz parou diante da televisão. “Torço para o Real Madrid”, comentou. “Na verdade, meu time do coração é o Vasco. Mas, fora do Brasil, sou Real. Os caras jogam à beça. Estão até enjoados de ganhar. Uma pá de malucos elogia o Barcelona. Não sei o motivo. Timinho xexelento… O Real é mil vezes melhor. Um milhão de vezes melhor. Tritura o Barcelona, o Bayern, o Manchester… Sem contar que o Cristiano Ronaldo joga no Real. Baita craque! Sinistro! Me inspiro muito no Cristiano.” Àquela altura, o atacante português ainda integrava a equipe espanhola. Dois meses depois, a Juventus, da Itália, o contrataria.
– Você é boleiro? – perguntei.
– Eu? Jogo pra caralho, tio! No ataque ou no meio de campo. Chuto com a direita e a esquerda. Também sou driblador. Pego a bola e, tuf, tuf, driblo um, driblo outro. Em seguida, pow, mando o canhão e peço música no Fantástico.
Ele falava tão rápido quanto os lances que descrevia. Atropelava as frases, engolia os pontos e as vírgulas, perdia a respiração. No bufê, demonstrou avidez idêntica. Encheu duas quentinhas de macarrão, frango assado, contrafilé, arroz, feijão, batata, farofa, tomate, alface, cenoura… “Faço embaixadinha à vera. Bem demais!”, prosseguiu. “Um dia, mostro para tu.”
De volta à minha porta, se ajeitou sobre o edredom e devorou uma das quentinhas. A moça, em compensação, mal tocou na dela.
– Quantos anos vocês têm?
– Vinte e oito – respondeu o jovem. – A Kika já completou 30.
Ela continuava quieta, mas agora parecia menos emburrada.
– São namorados?
O rapaz abriu um sorriso. “A gente se trombou em Del Castilho, lá na Zona Norte, sabe onde é? A Kika andava ligeiro pela rua, carregando alguns livros. Ela se amarra em leitura e tal. Eu andava ligeiro também, com a mente vazia, distraidão. De repente, a gente se esbarrou, e os livros despencaram. Eu logo me desculpei: ‘Foi mal, gata, vou pegar.’ Abaixei para catar a livralhada toda. Ela abaixou igual, e os nossos olhares se cruzaram. Bum! Maior bomba atômica. Meu peito explodiu. Fiquei doido pela bandida.”
A moça esboçou uma risadinha e finalmente se pronunciou: “Não é mentira, não. Rolou do jeito que o Cicatriz acabou de contar.”
Cicatriz… O apelido me intrigou. À primeira vista, ele não portava nenhuma cicatriz. “Está escondida, debaixo do meu cabelo. Quando era moleque, levei um tombo, arrebentei a cabeça e brotou um coágulo. Quase morri.”
– Como vocês vieram parar em Copacabana? – indaguei. – É muito longe de Del Castilho.
– Divido uma casinha na Zona Norte com dois irmãos e um sobrinho, mas trabalho em Copa – explicou o rapaz. – Passo a maior parte do tempo aqui. Guardo e lavo carro na rua. Também engraxo sapato. Só às vezes volto para Del Castilho.
– E onde você dorme quando fica em Copacabana?
– Onde calhar, ué. Eu me viro, paizão!
– Paizão? Agora há pouco, você me chamava de tio.
– Mudei. Você não é tio. É paizão! Sentou do nosso lado, puxou conversa, liberou as quentinhas… A Kika, paizão, nasceu no Rio, mas não conhecia o mar, acredita? Viveu sempre na Zona Norte, a mil léguas da praia. Ontem, resolvi fazer uma surpresa: “Bora para Copacabana, Kika! Vou te apresentar o oceano Atlântico.” Me baseei naquela música: “Quero te levar para o altar/Lua de mel em frente ao mar/Eu quero aliança com teu nome/Na tua assinatura, quero ver meu sobrenome/Morar contigo de papel passado/No estado civil, ser homem casado/Diz que sim, amor/E fica do meu lado.”
Ele cantarolava um sucesso do Trilogia, grupo de pagode romântico.
– A Kika topou. Pegamos umas conduções e descemos em Copacabana. Quando anoiteceu, bateu na minha ideia o seguinte: vamos dormir embaixo das estrelas! Na areia mesmo, escutando o barulho do mar: tchá, tchá! E o vento: fuuuuuu! A Kika curtiu a parada: “Já é, Cicatriz!” A gente, então, dormiu na praia. Experiência maravilhosa, paizão! Do outro mundo!
– Uma história de amor. Quem diria… Mas tudo isso aconteceu ontem, certo? E hoje, por que a Kika continua em Copacabana?
– Porque acabou o dinheiro. Faltou grana para o ônibus. Ela não pôde voltar. Tentei descolar um trocado guardando carro, só que o movimento anda fraco.
– E a mala, o edredom, o lençol? Vocês trouxeram de Del Castilho?
– Não, arrumamos por aí. O lixo de Copacabana é rico. Está cheio de tesouros. Basta ter olhos treinados. Grandona a mala, né? A Kika, se bobear, cabe inteirinha dentro dela.
Pela primeira vez, a moça riu sem amarras, com muito gosto, e revelou os dentes frontais, parcialmente quebrados.
– Ei, papi, arranja vinte contos para o busão da Kika – pediu Cicatriz.
– É ruim! Já comprei as quentinhas.
– Pô, vai decepcionar, paizão? Tu é o nosso protetor!
Escarafunchei a carteira e achei somente 15 reais.
– Não entrega a grana para mim. Odeio dinheiro – avisou Kika. – Desde menina, não consigo lidar com grana. Se dinheiro pinga na minha mão, gasto rapidinho. Prefiro me ver longe dele. Suponha que rolasse um milagre do tipo: “Kika, tu ficou milionária!” Sabe o que aconteceria? Eu ficaria pobre de novo. Ia construir hospital para criança doente, casa para o povo da rua. Deus me livre de acumular fortuna.
****
Nove dias depois, no finzinho da tarde, cruzei outra vez com o casal. “Salve, papai!”, acenou Cicatriz. Ele e a namorada descansavam novamente à minha porta, sobre o mesmo edredom, já um tanto sujo. A mala permanecia em bom estado.
– Voltou para Copacabana, Kika? – assuntei.
– Pois é… Ela não me larga mais. Grudou em mim – provocou Cicatriz.
– Ô, garoto, se enxerga! – rebateu a moça. – Quer me deixar boladona?
O rapaz se levantou e alongou os braços. “Pode cuidar da Kika um instante, paizão? Preciso zanzar um pouco, arejar o pensamento.” Sem me dar chance de responder, saiu em disparada. Enquanto corria, saltitava e arriscava uns rodopios. “Crianção”, zombou Kika. Ela também exibia um quê de menina. Usava sandália rasteira de couro e um vestidinho leve, todo florido. As unhas dos pés estavam pintadas de marrom.
– Sabe como eu me chamo de verdade?
– Cristina? Já vi muita Cristina com o apelido de Kika.
– Quase. Me chamo Cristiane. E tenho outro nome na frente: Treissiellen.
– Graciellen?
– Não! Treis-si-e-llen. Fizeram sorteio. Minha mãe queria Cristiane e só. Mas minha avó achou pouco: “Vamos botar um nome antes.” Qual? Sete pessoas da família escreveram sugestões em papeizinhos. Sortearam, e venceu justo o nome escolhido pela minha avó. Ficou assim, então: Treissiellen Cristiane Almeida Arruda.
– Nome raro. Nunca conheci nenhuma Treissiellen.
– Também não conheço outra. Sou diferentona, filho!
Filho? Depois de tio, paizão, papi e papai, virei filho…
– O que há de tão diferente em você, além do nome?
– Nasci numa sexta-feira 13, à meia-noite. Pode espiar o calendário: 13 de novembro de 1987. Era sexta-feira. Já me julgaram muito por isso: “Xi, nasceu no dia das trevas. Melhor manter distância dela.”
– Quem julgou?
– Os vizinhos. Eles tomaram conhecimento de que nasci numa sexta 13 e me condenaram. Proibiram as crianças de brincar comigo. Sofri uma perseguição terrível na infância: “Kika amaldiçoada! Kika esquisita!” Aquilo me afetava, doía, não vou mentir. Eu chorava. Ninguém merece passear de boa pela comunidade e ouvir esculacho. O resultado é que me tornei esquisita mesmo. Sou quieta, na minha. Gosto de ler. Detesto fazer grupinho. Passei a vida no subúrbio, distante do tumulto, das multidões. Às vezes, olho para o céu e imagino coisas. Depois, escrevo ou desenho o que imaginei. Minha mente é 100% imaginativa.
Os pais de Kika, uma faxineira e um catador de material reciclável, moram numa das favelas mais antigas da Zona Norte carioca, a Vila Cruzeiro, que derivou de um quilombo. Conta-se que escravos foragidos se abrigavam por ali durante o século XIX porque recebiam apoio de um padre abolicionista e republicano, capelão da Igreja de Nossa Senhora da Penha. Foi na Vila Cruzeiro que Kika se criou, junto de seis irmãos – quatro mulheres e dois homens.
– Mas não nasci dentro da favela, nem em hospital. Nasci na calçada.
– Como assim?
– Na calçada, filho! Não é caô! Meus pais viviam na rua. Só depois se mudaram para a Vila Cruzeiro. Hoje moram numa casa meio de tijolo, meio de madeira. Eles próprios levantaram, com o suor das mãos e do rosto. Mas antigamente passavam necessidade. Não tinham nada de nada – nem teto. Como sou muito interessada no mundo, uma vez cheguei para a minha mãe e perguntei: “Onde vocês me fizeram?” Queria saber por curiosidade sincera e não por safadeza, putaria, sem-vergonhice. Ela me olhou de canto: “Que pergunta, menina!” Eu insisti: “Onde?” E ela: “No bairro da Penha, próximo do parque Ary Barroso.” Os dois fuc-fuc em cima da calçada.
Kika se aquietou por alguns segundos, reflexiva. “Quiabo!”, exclamou de súbito. “Eu adoro quiabo, mas minha mãe odeia. Mesmo assim, na quarta-feira, dia 11 de novembro de 1987, a boca dela salivou. Minha mãe estava grávida e sentiu uma vontade enorme de comer quiabo. ‘Coisa estranha’, comentou com meu pai. Na quinta, dia 12, teve desejo de beber cerveja. E bebeu. Tomou uma porção de latinhas. Na sexta-feira 13, vieram as contrações. Perto da meia-noite, minha mãe procurou um hospital público. ‘A gente só aceita quem fez pré-natal’, disseram os funcionários. Ela, então, pariu na rua, com ajuda de outros sem-teto. Uma senhora arrumou um lençol limpo. Depois, esterilizou uma tesoura e despejou água quente numa lata de leite Ninho. Pronto: nasci! Tão gordinha que me pesaram em balança de açougue.”
– Seus pais nunca se separaram?
– Nunca! Vivem juntos há 36 anos. Entre trancos e barrancos, mas continuam lá, unidos. Eu admiro o meu coroa e a minha coroa. Aqueles dois são tudo para mim. Batalharam muito, andaram um bocado pela Penha. Tu não suportaria caminhar o tanto que caminhavam. Custou até sossegarem no terreninho da Vila Cruzeiro. Por isso, pergunto sobre o passado. Quero conhecer a história deles para gravar na memória e escrever cada detalhe num caderno.
– O que você aprendeu com seus pais?
– Dizer sempre a verdade. Ser cristalina como a água, pura, transparente. E jamais mexer nos bagulhos dos outros. Pedir não é vergonha. Roubar é. Meus pais só me ensinaram coisas maneiríssimas. Eu, graças a Deus, aprendi. Já minhas irmãs… São umas ignorantes! Não sabem dar bom-dia nem boa-tarde. Se tu cumprimentar as pentelhas, capaz de te olharem com cara de nojo, empinando o nariz. Bancam as patricinhas, mas não têm merda no cu para cagar.
A noite acabara de cair, e Cicatriz ainda não havia retornado. “Onde o bobalhão se meteu?”, resmungou Kika. “Vou atrás dele.” Ergueu-se agilmente, dobrou o edredom e guardou na mala.
– Você não me contou o que sentiu quando avistou o mar pela primeira vez – lembrei, antes que a moça partisse.
– Senti que o mar não tem fim. Começa na areia, avança uma imensidão e se encontra com o céu naquela listra lá do fundo.
– O horizonte.
– Isso. Depois da listra, o mar segue adiante. Vai que vai e não termina nunca. Termina?
– Sim, uma hora termina.
– Será? Desconfio que não. É muita água. Muita, muita, muita água. Aquilo não tem fim, não.
****
Na tarde seguinte, Kika reapareceu à minha porta. Estava sem o namorado e usava o mesmo vestidinho florido do dia anterior. Sentada no meio-fio, vasculhava a mala meticulosamente. De vez em quando, bufava. Observei-a por uns minutos de longe. Foi só então que percebi: Kika não morava mais na Zona Norte. Ela agora morava em Copacabana. Ou melhor: nas ruas de Copacabana. “Verdade”, confirmou. “Decidi viver com o Cicatriz.”
– Mas na rua? É perigoso. Você, tão pequenininha…
– Já me acostumei, filho! Moro na rua há um tempão.
– Um tempão?
– Sim! Nasci na rua e para a rua voltei.
– Sério? Na Zona Norte, você não morava em casa?
– Não.
– Por quê? Desde quando você mora na rua?
– Desde que…
Ela me encarou seriamente. “Quer mesmo saber?” Fechou a mala, se aprumou e cruzou as pernas em posição de índio. “Minha família é católica. Por isso, sempre me amarrei em papo de igreja. Fiz catecismo e primeira comunhão. Depois, virei evangélica. Ingressei na Assembleia de Deus, conhece? Eu participava do coral de jovens. Um dia, antes do jantar, avisei minha mãe: ‘Vou para o culto, mas não demoro. Beleza?’ Beleza. Na igreja, orei e cantei um monte de louvores. Às nove em ponto, o culto terminou. Uma colega – a Letícia – me pegou pelo braço e disse: ‘Kika, vamos ali comigo.’ Eu recusei: ‘Ali onde? Prometi à minha mãe que não demorava.’ A Letícia insistiu: ‘Logo ali, garota! Rapidão. Gosto de um moleque, mas estou sem coragem de me declarar. Vou te mostrar quem é. Daí tu cola nele e expõe meus sentimentos.’ Concordei, inocente da silva. Eu tinha 17 anos e mal saía de casa. Era virgem. Curtia ficar no quarto, lendo, escrevendo, ou frequentar a igreja. Nada mais. Quando chegamos, vi três meninos – dois brancos e um preto. ‘É o moreno’, indicou a Letícia. Chamei o garoto: ‘Boa noite! Dá licença…’ E o garoto: ‘Qual foi, novinha?’ Fiquei bolada: ‘Qual foi, não! Te desejei boa-noite. Educação não tira pedaço.’ O garoto ignorou: ‘Qual foi?’ Expliquei: ‘Minha colega gostou de tu, mas tem receio de abrir o coração. Interessa?’ O garoto se animou: ‘Já é.’ Um dos branquelos meteu o bedelho: ‘E tu, parceira? Não quer nada?’ Respondi: ‘Não, muito obrigada. Vou querer o quê?’ E o branquelo: ‘Tu sabe.’ Rebati na lata: ‘Não sei de coisa nenhuma. Me deixa em paz.’ O outro branquelo tomou as dores: ‘Ih, a mina é bocuda. Cheia de marra!’ Espiei em volta e me liguei que a Letícia estava de beijos com o moreno. Ela e o peguete entraram num beco. Os dois branquelos aproveitaram para me agarrar. Eu gritei. Eles taparam minha boca. De repente, apareceu um barraco. Juro, não faço ideia de como aquele barraco surgiu. Já me perguntei milhares de vezes, mas não consigo lembrar. Os branquelos me levaram para o barraco e… Foi assim que perdi a virgindade. Os dois me… O primeiro gozou dentro. O segundo barbarizou também, mas gozou fora. Em seguida, me bateram. Porrada feia, feia, feia. Apaguei. Só acordei no hospital, de roupão, toda suja e dolorida.”
Ela contava a história com uma altivez comovente. Evitava as lágrimas talvez para não ofuscar a crueza do que relatava. “No hospital, pedi um espelho. Queria checar o tamanho do estrago. A boca estava cortada. O olho, roxo. A testa, inchada. ‘Eu não desejava me perder tão cedo’, pensei. ‘Eu fazia planos. Eu estudava. Eu sonhava com uma faculdade. Eu buscava meu príncipe encantado. E agora… Eles destruíram tudo.’”
Aturdido, me flagrei sem palavras. Senti vontade de abraçá-la, mas não consegui me mover. Kika prosseguiu: “A polícia examinou o meu corpo e encontrou vestígios dos dois. Esperma, pele, cabelo. Providenciaram exame de DNA e descobriram o nome deles – um se chamava Hudson e o outro, Jonathan. Os desgraçados tinham passagem, entende? Eram fichas sujas. Só que não moravam na favela. Viviam em Olaria, bairro de classe mais ou menos. Por causa disso, a polícia não prendeu ninguém. Ficou a minha palavra de favelada contra a dos bacaninhas. ‘Ela pediu. Estava doidona.’ Doidona?! Não acharam uma gota de álcool no meu sangue, filho! Somente um policial acreditou em mim. Um pretinho magro e alto. ‘Eu confio em tu, menina.’ Cansada daquela patifaria, resolvi entregar o caso para Deus. A justiça divina tarda, mas não falha.”
“Passou umas semanas e deixei de tolerar café. Sou louca por café. Só que, naquela época, bastava tomar uns goles e babau: colocava todo o café para fora. Comida também me enjoava. Eu dava três ou quatro garfadas e vomitava. Uma tarde, no banho, apertei os seios. Doeu e jorrou uma aguinha. Estranhei. ‘Mãe, quando a senhora aperta os seios, dói e sai água?’ Ela respondeu que apenas quando ficava grávida. Ouvi aquilo e me apavorei. Enjoos, seios doloridos, quadris que não paravam de alargar… Eu ia ganhar um bebê! Caraca! Pretendia ter neném com 23 anos, jamais com 17. O que seria do meu futuro? Tão nova e já carregava um filho no bucho. Um filho do estupro…”
Pela primeira vez, Kika empregou a palavra “estupro”. “Durante a gestação, não consegui tocar na minha barriga. Os outros a alisavam. Eu, nunca. Não mexia na barriga nem para passar sabonete.”
– Você cogitou fazer um aborto? – ousei perguntar.
– Em nenhum momento. Meu bebê não merecia pagar pela brutalidade do pai. Era um anjinho. Mesmo assim, demorei para me apegar. Ele se apressou e nasceu de oito meses. Na maternidade, logo depois do parto, a enfermeira me mostrou a criança. “Veja, mamãe, o teu neném!” Eu olhei e não senti nada. Nada, nada, nada. Fiquei desse jeito por dois anos. Não sentia afeto nem raiva. Estava seca. Sem ânimo, sem amor, sem ódio.
– Você amamentou?
– Amamentei, mas com ajuda da minha mãe. Ela pegava o meu peito e colocava na boca do bebê. Se dependesse de mim… Eu não queria nem pisar na rua. Ficava deitada, paradona, com a alma vazia. Maior estátua! Sabe que meu filho nasceu branco e de olho claro? Castanho, mas bem clarinho, igual o do Hudson. O pai é o Hudson, o primeiro que me estuprou.
– Quando o bebê nasceu?
– Em 2005. Vai completar 13 anos e se chama Heitor[1]. Minha mãe escolheu o nome, inspirada no personagem de uma novela do SBT. Ela cuidou do menino durante quatro meses. Depois, entregou o bebê para a madrinha, que também mora na Vila Cruzeiro. É vizinha da nossa família. Uma santa! Cria o Heitor até hoje. Eu visito o moleque às vezes. Ele, um fofo, trata nós duas de mãe. Com o tempo, meti a cara na Bíblia e roguei muito para Deus aliviar meu coração. Tirar aquela sombra de mim. Tanto orei, tanto me ajoelhei que virei o jogo. Me apeguei à criança. Agora tenho loucura pelo Heitor. Beijo, abraço, faço carinho. Um dia, contei a real: ‘O teu pai é um vacilão. Não vale meio centavo.’ O garoto escutou em silêncio. ‘Um vacilão, compreendeu? Se te perguntarem quem é teu pai, tu responde assim: Meu pai é o meu avô.’”
– Você consultou um psicólogo na época do estupro?
– Consultei, mas não adiantou. Peguei amor pelo meu filho graças a Deus, não a psicólogos. Nenhum terapeuta vai me livrar do trauma. O passado sempre volta. Quando gritam comigo, fico encolhida, começo a tremer. Sinto medo de que vá acontecer tudo de novo. Dormir com a luz apagada? Nem morta! O escuro me deixa em pânico. Loló, cigarro, cachaça, crack, pó. Eu não ligava para nada disso. Hoje, ligo. Fumo, bebo e cheiro na tentativa de esquecer. Só que a gente nunca esquece, né? Reparou que meus dentes da frente estão quebrados? Caí de boca no chão, doida de loló.
– Foi por causa do trauma que você decidiu morar na rua?
– Sim. Com 20 anos, concluí que minha agonia precisava de mais espaço e botei o pé no mundo. Larguei a casa dos meus pais. Desde então, passo meses longe da Vila Cruzeiro. Quando volto para visitar o Heitor e os coroas, imagino que vou sossegar, que vou abandonar as calçadas de vez. Mas, de repente, aquela agonia ressurge e me estrepa.
– Você trabalha como o Cicatriz?
– Não, vivo à toa. Parei de estudar logo que o Heitor nasceu. Eu planejava ter uma profissão. Entrar na faculdade de dança… Levo jeito para o samba, o jazz, a lambada, o reggae e o break. Mas depois que o meu mundo explodiu, só deu ruim, abandonei todos os planos. Preferi manguear.
– Manguear?
– É pedir coisa na rua. Dinheiro, não peço. Sinto vergonha. Roubar, também não roubo. Nem me prostituo – mesmo porque passei dez anos sem chegar perto de homem. Entre os 18 e os 28, não me deitei com ninguém. Caso um engraçadinho lançasse a isca, eu, buf, recuava. Uma hora, percebi que não dava mais para me comportar assim. “Ó, Senhor, proteja vossa serva! Se aqueles dois me esculacharam, não significa que todos os outros irão me esculachar também, né?”
– Você gosta do Cicatriz?
A indagação pareceu desconcertá-la. Em vez de responder, mangueou: “Tu me compra um caderno e uma caneta? Tenho saudade de escrever.”
– O que você pretende escrever?
– Uns versos que li em algum lugar: “Não choro porque você me ensinou a sorrir/Não sofro porque você me ensinou a amar/Não morro porque você me ensinou a viver/Mas se um dia você deixar de existir/Eu choro, sofro e até morro/Pois a única coisa que você não me ensinou/Foi viver sem você.”
– Bonito. Pensa em alguém quando recita esses versos?
– Penso.
– Em quem?
– No Cicatriz.
****
Fiquei algumas semanas sem rever o casal. Numa terça-feira de junho, Cicatriz me avistou a distância. “Ei, Schumacher!”, gritou. “Vai aonde com tanta pressa?” O rapaz, que guardava carros numa rua transversal à minha, saltitou até o meu lado e proclamou: “Hoje sou o Ibrahimović.” Risonho, apontou para a própria camiseta vermelha de manga comprida, semelhante à que o craque sueco vestia quando jogava no Manchester United.
– Como estão as coisas? – indaguei.
– A menstruação da Kika não desceu, papai. Atrasou geral.
Ele lançou a bomba displicentemente, sem exibir o menor sinal de inquietação.
– Jura?! Você não se previne?
– Não.
– Nem a Kika?
– O que tu acha?
– Vocês são malucos? E se a Kika engravidar?
– Tu ajuda a gente! Dá aquela educação show para o bebê.
Carioca da Zona Portuária, Cicatriz – ou Artur Medeiros da Silva – me contou que nunca teve filho. Seus pais, um ajudante de caminhão e uma empregada doméstica, já morreram. “Dois dos meus sete irmãos também.” Ele terminou o ensino fundamental, mas não iniciou o médio. Por um tempo, trabalhou para o narcotráfico no morro da Providência, o que lhe rendeu uns anos de prisão. Quantos? Não soube dizer. Tentou calcular e se atrapalhou.
– Por onde anda a Kika?
– Deixei na praça General Osório, paizão. Quer bater um papo com ela?
A praça se localiza num dos pontos mais movimentados de Ipanema, pertinho de Copacabana. Enquanto me dirigia para lá, comprei um caderno universitário, outro de desenho, uma esferográfica azul e cinco canetas hidrocores. “Sumido, hein?”, reclamou Kika, assim que cheguei. Esticada num banco, lia um exemplar surrado de Físico: A Epopeia de um Médico Medieval, romance do norte-americano Noah Gordon com quase 600 páginas. Junto dela, a mala estava aberta. Finalmente, pude ver o que continha: tesoura, espelho, pente, batom, esmalte, absorvente, condicionador para cabelo cacheado, o lençol e o edredom.
– Cadê suas roupas? Imaginei que você guardasse na mala.
– Nem sei mais onde enfiei meus panos, filho. Hoje só tenho os do corpo.
Entreguei os cadernos e as canetas. Ela agradeceu timidamente. Perguntei sobre a menstruação.
– Não veio ainda.
– Preocupada?
– De jeito nenhum. Já engravidei por causa de estupro. Engravidar por amor vai ser lucro.
– Mas como você vai cuidar do bebê?
– Sempre se encontra alguém para dar uma força. Não esquento.
– Estive pensando… Gostaria de conhecer o Heitor. Você me leva?
– Meu moleque? Fechou!
– Quando?
– Passe aqui no sábado de manhã e a gente segue para Vila Cruzeiro. Tu vai babar pelo menino.
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No sábado bem cedo, retornei à General Osório. Kika folheava O Físico enquanto penteava os cabelos. Trajava short e camiseta regata.
– Bebi muita água gelada – explicou, depois de tossir um bocado.
– Você dormiu na praça?
– Impossível! Se dormisse, os ratos iam me expulsar do edredom. Na moral: iam me devorar dos pés à cabeça! Sem contar que, de madrugada, ouço o Carma. Não gosto. Me arrepio inteira.
– O Carma?
– Sim, um espírito que vagueia pela praça. Espírito problemático! Ele tenta se comunicar com os vivos. Parece que, antes de morrer, sofreu alguma covardia. Era um homem inocente, que a sociedade cobrou demais. O fulano agia pelo certo, mas o pessoal tachava o cara de errado. Por isso, escuto gemidos. Uns gemidos de choro… Deus me guarde!
– Você ainda frequenta a igreja?
– Não. Deixei a religião, mas continuo acreditando no Altíssimo.
– Mesmo depois do estupro? Deus não abandonou você naquela noite?
– Claro que não! Ele só me botou à prova. As mãos de Deus estão sempre sobre nossas cabeças. É assim que Ele nos protege e ilumina. Naquela noite, Deus não tirou as mãos de mim. Ele apenas encolheu um pouco os dedos, e o mal entrou pelo espaço que se abriu.
– Mas por que Deus encolheu os dedos se você frequentava o culto e cantava louvores?
– Porque não segui o caminho reto. Existem dois caminhos: o reto e o torto. Eu segui o torto. Em vez de voltar para casa, como tinha acertado com minha mãe, dei ouvidos à Letícia e me ferrei. Caí nas garras dos branquelos. Azar o meu. Não cumpri o prometido, e Deus arrumou um jeito de me ensinar. Tipo: “Sacou o que acontece quando tu não cumpre a palavra, Kika?”
– Um modo bastante duro de ensinar…
– Fazer o quê? Cada um carrega a cruz que merece. A minha nem é tão pesada. É de isopor e tem rodinhas.
– Fala sério!
– De isopor, juro! O mal me atingiu, mas depois a justiça divina imperou. Deus me vingou! O Hudson morreu queimado.
– O pai do Heitor morreu queimado?! Como assim?
Eufórica, a moça contou que, logo após o garoto nascer, Hudson e Jonathan, o outro estuprador, decidiram roubar um ônibus. No momento do assalto, porém, eclodiu um ataque. “Foi negócio de rebelião, de revolta. Uma galera incendiou o ônibus. Sabe quando metem gasolina dentro de umas garrafas e colocam pano na boca delas? Pois é… Acenderam os panos e jogaram as garrafas no ônibus. Alguns passageiros não conseguiram fugir. Uma mulher, coitada, ardeu com a filha no colo. O Jonathan se salvou, mas o Hudson, não. Queimou todinho.”
– Atacaram o ônibus justo na hora do assalto? Que coincidência macabra. Você tem certeza?
– Li no jornal, filho! O Hudson pegou aquele ônibus. Deus pôs o infeliz ali para me vingar.
– O nome do Hudson apareceu no jornal?
– Apareceu! Eu vibrei de alegria. Que delícia é o fogo! Levantei as mãos para o céu e agradeci.
O relato não me convenceu. Talvez Kika estivesse fantasiando. Talvez necessitasse de uma história redentora para se consolar. Uma narrativa à moda do Velho Testamento, com um Deus que purifica o mundo lançando mão da catástrofe. No entanto, se os estupradores eram o alvo do Senhor, por que outros passageiros morreram? E por que Jonathan escapou?
“Fiz bom uso dos presentes que tu me deu. Quer ver?” Kika mudou o rumo da conversa subitamente. Tirou da mala os dois cadernos e me mostrou primeiro o de desenho. Estava abarrotado de flores e coraçõezinhos multicoloridos. Às vezes, palavras flutuavam entre as ilustrações de aspecto infantil: amor, felicidade, paixão, ternura, harmonia, saudade, paz, compreensão, afeto, sinceridade, bênção, inteligência… Não havia nenhum termo negativo.
Já o caderno universitário reunia diversas anotações em letra cursiva, nem sempre decifráveis. Uma me chamou a atenção: “Querido filho, te amo muito, pois tudo o que eu sou agora é graças a você. Muito obrigado. Eu não seria nada sem você. Eu agradeço muito a Deus por você estar sempre comigo e nunca me deixar sozinha nesta vida. Muitos beijos e muito carinho da filha que ama vocês demais. Que Deus abençoe todos vocês e que tudo na vida de cada um seja repleto de muitas felicidades e harmonia e amor.” Kika começava a mensagem como mãe, mas a terminava como filha, sem distinguir claramente um papel do outro. A voz da mãe se amalgamava e confundia com a da filha. Nada mais simbólico e eloquente para alguém que virou mãe quando ainda se sentia apenas filha.
J, G, T, F, H. Enquanto a jovem manuseava os cadernos, notei que as cinco letras se distribuíam pelos ombros e pelas costas dela.
– O que significam as tatuagens?
– São as iniciais das criaturas que mais amo na Terra. J, de Juciara, minha mãe. G, de Gilson, meu pai. T, de Toni, um ex-namorado. F, de Fernando, um amigão. E H, de…
– Heitor! Combinamos de visitá-lo hoje, lembra?
– Lembro, mas não vai rolar. Uma colega me pediu para cuidar daquela mochila ali. Responsabilidade em primeiro lugar, filho!
Perto da mala, jazia uma mochila puída. De tão cheia, parecia à beira de estourar.
– Você vai passar o dia cuidando da mochila?
– Sei lá. Minha colega não avisou quando volta. Preciso esperar.
– Deixa a mochila com alguém.
– Pirou? Não vou decepcionar minha colega, não. Valeu?
Insisti, mas Kika se manteve irredutível. Regressei frustrado para casa. De tarde, acessei o Google e digitei incêndio + ônibus + 2005 + Rio de Janeiro. Na tela do computador, surgiram várias reportagens sobre um caso terrível, ocorrido em 29 de novembro daquele ano. À época, Heitor tinha somente um mês de idade. O ônibus 350, que fazia o trajeto Passeio-Irajá, se encontrava em Brás de Pina, à noite, quando sete bandidos o invadiram. Um deles portava uma garrafa plástica com gasolina. A quadrilha espalhou o combustível no corredor e ateou fogo. Um dos criminosos arrancou o motorista do veículo à força. Outros impediram que parte dos passageiros saísse. Resultado: cinco mortos e dezesseis feridos gravemente.
A barbárie aconteceu depois de a polícia assassinar um integrante da facção Comando Vermelho, que atuava numa favela da Zona Norte. Em represália, o chefe do tráfico local ordenou o ataque. Entre as vítimas fatais, estava uma mulher, que agonizou segurando um bebê. Nenhum Hudson figurava na lista dos mortos. Tampouco houve testemunhos de que o ônibus sofria um assalto quando se deu o atentado.
****
Tentei visitar Heitor mais duas vezes. Em ambas, Kika fugiu da raia. Veio com desculpas esfarrapadas e não arredou pé de Copacabana. Acabei desistindo. Nesse ínterim, a moça me revelou que não engravidara. “Relaxa! A menstruação entrou na avenida”, debochou. Não pude – nem quis – evitar o riso.
No início de julho, flagrei Kika quebrando o pau com o namorado. Ela recriminava o ciúme de Cicatriz. “Tu me sufoca! Se olho para qualquer mané, tu já desconfia e sai dizendo merda. Otário! Larga de me rodear ou vou te encher de porrada!”
Resolvi me intrometer:
– Bater não, Kika!
– Bato, sim. Sou tranquila, companheira e sincera, desde que neguinho não me tire do sério! Tenho uma morte nas costas. Não me custa nada ter outra.
– Quem você matou?
– A finada Lu, na Penha. Ela me provocou e se lascou. Matei na porrada. Meu bagulho não é puxar cabelo, filho! É distribuir tapas, socos e chutes.
– Você? Mentira! Para de inventar.
– Não me tome pelo tamanho, não. Minha família só tem Chico toco, mas somos bravos! Acredita que o Cicatriz cismou até com tu? “Ah, o paizão te dá mole.” Eu me injuriei: “Se liga, Cicatriz! Não vê que o paizão é coroa?”
– Coroa?
– Coroa mesmo. Falo a real. Deixei de ser branca para ser franca!
Com ar de tédio, Cicatriz me aconselhou: “Não liga, papi. Ela é de veneta. Daqui a pouco, se acalma.”
Quando a tempestade passou, contei que pretendia escrever uma reportagem sobre o casal e mostrei um exemplar da piauí. “A ideia pintou agora. Vocês topam?” Kika respondeu primeiro: “Topo! Não me envergonho da minha história. Pelo contrário: o que aconteceu comigo serve de alerta para as mães. Elas precisam ficar de olho nas filhas e não permitir que más companhias influenciem as meninas.”
Cicatriz também se animou:
– Vou ser o personagem principal?
– Não, a protagonista será a Kika.
– Sacanagem, paizão! Vai me botar de figurante? Pelo menos, troca meu apelido na matéria. Não me chama de Cicatriz. Bota Neymar Jr. Ou, então, Euller, o Filho do Vento. Lembra dele? Jogou no Vasco.
– Cala a boca, palhaço! – interrompeu Kika. – Não ouviu? Eu sou a principal da novela! Eu sou a mocinha que sofreu tudo! – completou, fazendo biquinho e pose de diva.
 
[1] O nome é fictício para proteger a privacidade do garoto.
(revista piauí)

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