Faz-me rir?

Repórter experimenta gás hilariante
Nunca vi graça em dentista, mas o Chaplin viu e teve a sacada de transformá-la num piradíssimo curta, “Laughing Gas” ou “Gás Hilariante” -o que talvez explique por que o cara passou à história como gênio e euzinho sigo apenas passando as minhas calças. O filme é de 1914. Na pele do sonso Carlitos, o comediante arranja um bico em uma clínica odontológica. Certa manhã, um senhor subverte a rotina do consultório por não conseguir segurar o riso. O motivo da gargalhada incontrolável? O anestésico que lhe deram continha óxido nitroso, o tal do gás hilariante.
Adivinhe se não pensei em Chaplin quando li que, há nove meses, o Conselho Federal de Odontologia permitiu o uso do mesmo óxido no país. Sei que o assunto merece respeito. Entretanto não pude resistir à conclusão gaiata: tratar do canal seria, finalmente, uma farra! Prometi às minhas cáries mais profundas que, tão logo pintasse uma chance, experimentaria a novidade.
Novidade, numas. Chaplin não tirou o óxido nitroso (N2O) do nada. Desde o século 19, profissionais da Europa e dos EUA recorrem às propriedades analgésicas do gás. Foi um dentista norte-americano, Horace Wells, quem as descobriu, em 1844. Até então, conhecia-se unicamente a faceta embriagadora da substância -o poder de despertar súbita alegria e sensação de leveza naqueles que a inalassem.
O Brasil demorou tanto para liberá-la por causa de uma ruidosa polêmica. Baseados na experiência estrangeira, os dentistas daqui argumentavam que é seguro aplicar o óxido em consultório sem a presença de um médico. Anestesistas que participavam dos debates se opunham, alegando que existe o risco de o N2O provocar perda de consciência. Acabaram vencidos.
“Leia esses papéis e assine”, solicitou a mocinha que me atendeu na clínica de João Roberto Ferreira da Rosa, em Alphaville. Ele figura entre os cerca de mil dentistas brasileiros que já empregam a “analgesia inalatória”. Entusiasta do método, preside a Abasco, associação nacional que busca difundi-lo.
O primeiro papel exibia informações sobre o gás. O outro me pedia que autorizasse por escrito a aplicação. Autorizei -e a jovem me conduziu para a temível cadeira “do motorzinho”. Uma máscara de plástico tapou meu nariz. “Nos cinco minutos iniciais, você receberá apenas oxigênio”, disse o dr. João mal chegou à sala. “Depois, acrescentarei lentamente o óxido nitroso. Só deixarei de fornecê-lo quando você estiver bem relaxado.” Hoje, ninguém utiliza o N2O puro. Deve-se misturá-lo com o oxigênio para tornar o efeito inebriante menos intenso.
O dentista esclareceu que, embora amenize a dor, o gás não substitui a anestesia local nem qualquer um dos procedimentos odontológicos costumeiros. “Sua principal função é acalmar o paciente.”
Enquanto liberava a substância, dr. João monitorava três de meus sinais vitais: a pressão arterial, os batimentos cardíacos e a quantidade de oxigênio que circulava pelo sistema nervoso central. Assim que aspirei o óxido nitroso, senti pés, mãos e lábios formigarem. Em seguida, minha gengiva adormeceu. Avisei o dentista. “Vou aumentar a dose”, alertou. De imediato, o universo deu uma cambalhota. Tomei um susto. Tudo rodava. “Passa rápido”, tranqüilizou-me. De fato, passou.
Mergulhei, então, num misto de preguiça e “tô nem aí”. Meu corpo quase flutuava. A viagem, no entanto, me pareceu mais estranha que agradável. “Já podemos começar o tratamento”, avaliou o doutor. Àquela altura, havia 60% de N2O e 40% de oxigênio no ar que respirava. “Manterei a proporção.” Uma hora depois, para me trazer de volta à Terra, comunicou que interromperia a entrada do gás e me faria consumir oxigênio puro durante cinco minutos. Voltei.
Não, em nenhum momento caí na gargalhada. O motorzinho, como de hábito, riu por último.
No mundo dos “istas” (dentistas, anestesistas etc.), Armando Antenore prefere as passistas.

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