Policarpo Quaresma

O célebre personagem de Lima Barreto incorpora no ator Lee Taylor e propõe substituir a palavra download pela expressão gûeîybyra, do tupi 

Nunca existiu nem existirá um nacionalista à altura de Policarpo Quaresma. Ninguém sabe onde o funcionário público de 46 anos nasceu. Bahia? Piauí? Goiás? Não há nele o menor traço de regionalismo. Proclama-se, acima de tudo, um brasileiro. De passagem por São Paulo (mora no interior fluminense), nos encontrou em uma confeitaria. Chorava desesperadamente.
BRAVO!: O que aconteceu? Por que o choro?
Policarpo Quaresma:
Vê-se que o senhor não tem a mínima noção das coisas de nossa terra. Esperava que lhe desse um aperto de mão quando cheguei? Pensava que me utilizaria de um gesto herdado dos estrangeiros? Pois resolvi cumprimentá-lo à moda dos tupinambás: chorando! Sim, com lágrimas, justamente como faziam os moradores legítimos do nosso país. Eles não diziam “olá” ou algo do gênero. Preferiam abrir o berreiro.
Confesso que nunca ouvi falar desse cumprimento…
Um jornalista deveria conhecer melhor os nossos costumes. Aposto que, desde cedo, o senhor se preocupou em aprender inglês e mesmo espanhol, mas jamais se interessou pelo idioma genuíno do Brasil, o tupi-guarani. Se dependesse do meu empenho, o adotaríamos de pronto como língua oficial.
Você domina de fato o tupi?
Há uns bons anos, estudo o jargão caboclo diariamente. Logo pela manhã, me atraco com o Montoya, autor de Arte y Dicionario de la Lengua Guaraní Ó Más Bien Tupí. Costumo me dedicar à leitura do magnífico volume até a hora do almoço. O linguajar de nossos silvícolas, originalíssimo, é o único capaz de traduzir as belezas da pátria. É também o único que se adapta perfeitamente à nossa organização fisiológica e psicológica. O cérebro e o aparelho vocal dos brasileiros, no fundo, rejeitam o português. Daí nossos frequentes deslizes vernaculares e a lamentável contingência de sofrermos ásperas censuras dos gramáticos lusos, os autênticos donos da língua. O idioma é a mais alta manifestação da perspicácia de um povo. A independência política de uma nação, portanto, requer como complemento a sua emancipação linguística.
Parece-me bem difícil abdicarmos do português…
Nem tanto. Afinal, já usamos cotidianamente inúmeros vocábulos de origem tupi: pipoca, paçoca, mingau, pirão, cutucar, jururu, nhe-nhe-nhem, peteca, carioca, sapecar, pererê…
E as recentes expressões em inglês que incorporamos à língua portuguesa com o advento das novas tecnologias? Conseguiríamos substituir download ou home theater por palavras do tupi?Claro! Em vez da primeira, empregaríamos gûeîybyra, que significa descida, e em vez da segunda, adotaríamos epîakapaba, “lugar de ver”. Estou desconfiado de que o senhor não é patriota…
Você sugere que deixemos de lado outros hábitos estrangeiros, além do aperto de mão?
Sem dúvida. Para que confinar os pés num par de tênis se dispomos de chinelas? Por que encher a barriga com quitutes importados se existe a macaxeira?  Qual o sentido de consumir música de fora se temos o chorinho?
E Ipod?
Não pode!
O Brasil ainda se tornará a maior potência do mundo? Superaremos os Estados Unidos? Você defende tal ideia há décadas.
Depois de refletir por 30 anos, depois de pesquisar com afinco a história, a geografia, a literatura e a economia de nossa terra, concluí que o período de frutificação se aproxima. Necessitamos somente de uns pequenos ajustes para que a imensa Pátria do Cruzeiro se torne, enfim, o primeiro país do mundo.
Sei não… Dizem que a bola da vez é a China.
A China?!  O senhor me desculpe, mas da China saem apenas bugigangas, quinquilharias baratas! Sou patriota, ilustre jornalista! Já na mocidade, sucumbi à devoção por nossa Mãe Gentil. Um sentimento sério, grave, sem nenhum interesse pessoal. Não almejo cargos políticos, não busco notoriedade. Às vezes, me esqueço até de mim para meditar sobre o potencial de nossa gente. Como, então, o senhor, um brasileiro, ousa aparecer com prognósticos risonhos sobre a China?
Você não receia que tanto nacionalismo acabe por aliená-lo?
O quê?! Alienar-me?! Prezado jornalista, não se comporte de maneira tão leviana! Não queira ridicularizar aqueles que trabalham em silêncio para a grandeza da nação. Por favor… O senhor definitivamente não é patriota! (Levanta-se furioso e, sem se despedir, abandona a confeitaria.)  
ONDE ENCONTRAR POLICARPO QUARESMA
Na peça Policarpo Quaresma, adaptação do romance de Lima Barreto. Direção: Antunes Filho. Com Lee Taylor,  Angélica Colombo e outros. Sesc Consolação (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, São Paulo, SP, tel. 0++/11/3234-3000). Até 31/10.

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