O mulherzinha

Recentemente, me lembrei do Maurício. Era um menino de 7 ou 8 anos à época em que o conheci. Estudávamos na primeira série de uma pequenina escola católica, sob a vigilância severa de madres franciscanas. Maurício tinha os cabelos negros e encaracolados, o corpo miúdo, as pernas tortas e a voz fina – mais fina que a de todos nós, os machinhos com quem tentava brincar durante o recreio. Não gostávamos dele e não permitíamos que se enturmasse. “Fora daqui, piolho!”, berrávamos às gargalhadas. Garotos deveriam se expressar de outra maneira, nunca daquele jeito molenga e agudo que insistia em contaminar as palavras do Maurício. Garotos tampouco deveriam chorar, e o Maurício chorava à beça, por qualquer bobagem. “Notou como o paspalho rebola quando corre?”, comentávamos, impiedosos. “É um mulherzinha mesmo…” Falávamos exatamente assim: “um mulherzinha” – o artigo no masculino e o substantivo no feminino, talvez para reiterar a estranheza do Maurício, o lugar confuso que ocupava diante de crianças ávidas por encaixar tudo em espaços bem definidos.
Uma tarde, minha mãe avisou de surpresa que iríamos sair. Ela marcara uma consulta para mim no oculista. Depois de me examinar detalhadamente, o médico decretou: “Você é míope. Terá de usar óculos”. Detestei escutar o veredicto. Logo atinei que, entre meus amigos, ninguém precisava carregar um trambolho daqueles na fuça. Pior: me imaginei com o novo acessório e rodeado de moleques, que gritavam em coro: “Quatro olhos! Cegueta!”. De repente, sem o menor tato, o destino me condenara à via crucis dos diferentes e me transformara numa espécie de Maurício. Não pude evitar o choro. Entretanto, para assombro geral da nação, nenhum colega me azucrinou quando apareci de óculos na classe. Soube posteriormente que, alertados por minha família, os professores e as religiosas trataram de amaciar o terreno, explicando à turma o quanto seria injusto zombar da “luneta” alheia. Fiquei satisfeito, claro. Mas pensei de imediato no Maurício: por que os tios e as tias do colégio, por que as freiras sempre tão caridosas não o defendiam também?
Hoje compreendo que éramos todos homofóbicos. Consciente ou inconscientemente, bancávamos os “guardiões da heteronormatividade”, como definem os acadêmicos que se debruçam sobre esse tipo de preconceito. Quer dizer: não admitíamos comportamentos divergentes dos que considerávamos típicos de homens e mulheres. Inúmeras coisas mudaram na sociedade brasileira desde então. Mesmo assim, quando vejo torcedores zoarem atletas supostamente gays ou quando leio que parte dos espectadores abandonou os cinemas mal se deparou com as cenas homossexuais do ator Wagner Moura durante o belíssimo filme Praia do Futuro, não consigo fugir de me perguntar, desconcertado: será possível que ainda estejamos na pequenina escola católica onde estudei em 1973?

Publicado na revista VIP de julho

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