O humor é meu pastor

Nasce uma igreja no Baixo Augusta

Será uma pegadinha? Impertinente, a pergunta teimava em me assombrar à medida que o roteirista e cineasta Newton Cannito discorria sobre religião. Estávamos em Ipanema, na Zona Sul carioca, e conversávamos havia quase trinta minutos. “Deus não perdoa ninguém”, apregoava o loiro grandalhão, de 43 anos e raízes sicilianas. “Sabe por quê? Porque Ele jamais se enfurece. Quem fica sempre de boa não necessita perdoar porra nenhuma.” Entre uma argumentação e outra, Cannito aspirava um pozinho marrom que esparramava na palma da mão. “Tsunu”, informou, separando bem as sílabas: ti-su-nu. “É um tipo de rapé. Conhece? Um híbrido de tabaco com as cinzas de uma árvore, o pau-pereira.” Para inalar a substância, se valia de um kuripe, pequeno apetrecho em forma de V, que funciona como um canudo. Arranjou-o no Acre, junto à tribo Kuntanawa. “Os índios disseram que o confeccionaram com ossos de onça. Não duvido.” Toda vez que o rapé lhe atravessava a narina, o roteirista fechava os olhos e dava um tranco para trás. “Arde à beça, cara! Parece que jogaram um Halls dentro do meu cérebro.”
Naquela tarde de julho, Cannito me contava que acabara de lançar uma igreja em São Paulo, onde mora. “Faz uns quatro meses”, calculou, enquanto manuseava o kuripe. Com absoluta naturalidade, declarou-se líder e apóstolo da tal congregação, ainda que rejeitasse o título de mestre ou guru. “Bregas demais… Terei de arranjar outra designação.” A notícia me soou inverossímil – e não apenas pelo nome esdrúxulo da igreja, Deus É Humor, que subverte o da evangélica Deus É Amor, concebida por David Miranda em 1962.
Criador de séries televisivas premiadas, como Unidade Básica, coautor da novela Joia Rara, na Globo, e diretor do filme Magal e os Formigas, Cannito vive principalmente de ficção. Às vezes, conduz os devaneios para fora dos sets e, em reuniões com amigos, assume a persona de um palhaço obsessivo, o Doutor Caneta, que toma notas de tudo. Um sujeito assim poderia – por que não? – fundar uma igreja de mentirinha e alardeá-la sarcasticamente pelos quatro cantos. Seria uma espécie de performance, que divertiria os cínicos e ludibriaria os incautos, caso existam tolos o suficiente para fisgar a isca. Embora mil pulgas já se refestelassem atrás de minha orelha, preferi não dizer nada, receoso de azedar a conversa.
“Nasci em São Bernardo do Campo, no AB paulista, e passei a infância com pavor do Lula”, prosseguiu o roteirista. “Ele despontava como líder sindical e me assustava muito, talvez por causa da barba negra e dos berros sobre os palanques. Naquela época, aliás, uma porção de coisas me amedrontava.” Não à toa, virou “fanático religioso”, um menino que precisava se cercar de rituais protetores. “Eu nunca perdia a missa e rezava o terço diversas vezes antes de dormir. Minha mãe, apesar de católica, não se mostrava tão fervorosa. E meu pai, um projetista de elevadores, transitava pelo extremo oposto. Era ateu convicto.”
Na adolescência, o futuro cineasta descobriu o niilismo do filósofo Friedrich Nietzsche e se afastou das trilhas espirituais. Só as retomou em 2004, quando se tornou usuário da ayahuasca. O chá amazônico, empregado durante cerimônias xamânicas, provoca alucinações ou, segundo os adeptos, “mirações” – vislumbres místicos que favorecem o autoconhecimento. “Graças à bebida, que tomo semanalmente, fiquei menos depressivo, arrogante e rancoroso”, avaliou Cannito. “Sem nenhum exagero: a ayahuasca me salvou.” Também o reconciliou com “o lado mais fofo do catolicismo”. “Hoje sou devoto de santo Antônio e admirador de são Francisco.”
Em 2016, num papo debochado entre colegas, o roteirista plantou a ideia de uma nova igreja. “Já sei até como chamá-la – Deus É Humor, a Seita que Dói Menos.” Todo mundo se esbaldou de rir. A receptividade assanhou o autor da troça. “Você vai achar bizarro”, me falou em Ipanema, “mas tenho um lema: se uma piada funciona, convém levá-la a sério.” Meses depois de fazer o gracejo, Cannito se reuniu com vinte conhecidos “para amadurecer a brincadeira”.

Mel e uva
encontro ocorreu em março de 2017, num apartamento do Baixo Augusta, zona boêmia de São Paulo. E ali se repete desde então, uma vez por semana. À turma inicial, uniram-se outros interessados – atores, clowns, músicos, youtubers, escritores, jornalistas. O grupo costuma não somente analisar textos espirituosos de Woody Allen, Millôr Fernandes e G. K. Chesterton como discutir as bases teológicas da nova denominação.
A igreja acredita num Deus misericordioso, que não exige nada dos fiéis: nem adoração, nem obediência. Ele permite, inclusive, que o ridicularizem e coloquem à prova. “Zombar e duvidar de nossas crenças é o melhor jeito de reforçá-las. Precisamos botar a fé em xeque o tempo inteiro. Só assim descobriremos o quanto conseguirá resistir”, pontificou Cannito. Questionar a credulidade e, em seguida, questionar o questionamento. Eis a linha mestra da Deus É Humor.
A liturgia da igreja ora remete à missa católica, ora lembra a mise en scène dos neopentecostais. Nos cultos, que acontecem mensalmente, há confissões públicas de baixarias, a consagração do mel e da uva (em vez do pão e do vinho), a releitura de orações cristãs (“Pai nosso, que estais nos céus/Santificado seja o vosso riso”) e a exaltação do nonsense. Rola, ainda, muita cantoria. O repertório abarca sucessos de Geraldo Azevedo (Sabor Colorido) e Ivan Lins (Bandeira do Divino), além de parodiar Sidney Magal (Tenho) e Alvarenga e Ranchinho (Valsa das Palmas).
Por enquanto, a Deus É Humor canonizou apenas duas personalidades: a comediante Dercy Gonçalves e o modernista Oswald de Andrade, que escreveu inúmeros poemas-piada e já dispõe de uma prece. “Vós, que viestes à Terra para alegrar nossas almas, renovai nossas utopias”, clama um trecho da reza. Brevemente, Chacrinha também ganhará o status de santo.

Dancinhas
A
 conversa em Ipanema terminava quando Cannito revelou que, aos sábados, entre 3 de junho e 8 de julho, a igreja realizou cultos-espetáculos num pequeno teatro paulistano, o Commune. “Promovemos um misto de cabaré, sarau e celebração mística, com esquetes cômicos, banda e dancinhas.” Mal escutei aquilo, decidi libertar todas as pulgas de minha orelha: “Você está me zoando? A Deus É Humor de fato existe ou não passa de um projeto artístico?” O roteirista pareceu surpreso: “Existe, claro! Tanto que registrei o nome como marca religiosa. Somos uma igreja que virou trupe. Ou uma trupe que virou igreja. Dá na mesma.” Confundir para explicar, explicar para confundir… Rogai por mim, são Chacrinha!
(revista piauí)

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