Ao volante de um foguete

Jogar uma espetacular Ferrari California conversível e amarela na mão de um fanático por carros é moleza. Que tal deixar uma com um repórter que nunca deu a mínima para motores?

Imagine um camarada que tenha o hábito de soltar rojões. O filho dele tira dez em trigonometria, a mulher compra uma lingerie atrevida, o chefe o promove, a seleção marca um gol, e o sujeito logo dispara dois ou três Caramurus. As mínimas coisas lhe servem de pretexto para o ritual barulhento. Um dia, sem mais nem menos, uns gringos da Nasa o procuram com uma oferta absurda:
– Gostaríamos de vê-lo pilotar o Discovery.
What?!
– O Discovery.
– Aquele ônibus espacial?
Yes, the spacecraft. O próprio.
– Os senhores devem estar se confundindo. Não sei guiar espaçonaves.
– Não sabe realmente? Pense direito: você costuma soltar rojões, correto?
– Correto.
– Pois não há diferença nenhuma. Quem lida com um tipo de foguete pode lidar com todos.
Por incrível que pareça, sou o camarada dos rojões. E meu Discovery é uma Ferrari California – amarela, exuberante e imperiosa como o Sol dos astronautas. Explico melhor: não ligo para carros. Nunca liguei. Recordo que, quando criança, os moleques da minha escola salivavam pelo “autorama do Emerson”. O brinquedo, tão mítico quanto o Santo Graal (embora ninguém fizesse ideia do que significava Santo Graal), incluía uma réplica em miniatura da Lotus John Player Special. Numa tarde de verão, um dos meninos ganhou de aniversário o cobiçado presente.
– John é o piloto?, indaguei, pateta, assim que o carrinho saltou da caixa.
– Não, Pedro Bó (sinônimo de idiota na época)! O piloto é o Fittipaldi. John Player Special é o nome do cigarro que patrocina a equipe do cara.
De fato: com a imponente Lotus negra, Emerson se sagrou campeão de Fórmula 1 em 1972. O país inteiro a conhecia. Eu não.
Agora, já adulto (espero), continuo alheio às peculiaridades da indústria automobilística. No volante, não me julgo propriamente um barbeiro. Digamos que sigo a cartilha do Rubinho Barrichello: devagar e sempre. Em contrapartida, mal diferencio os modelos que avisto na rua – Tucson? Focus? Meriva? Pior: ao escutar pela primeira vez o termo “rebimboca da parafuseta”, achei que a peça existisse de verdade. Juro.
Na minha humilde opinião, carro bom é carro que funciona. Sim, porque houve ocasiões em que precisei tourear os que não funcionavam. Na década de 1980, por exemplo, herdei de uma namorada um Fusca a álcool, cor de gelo, que só me colocava em fria. Periodicamente, o calhambeque bancava a diva temperamental e não pegava de manhã. Jamais encontrei mecânico ou exorcista que solucionasse o problema. Não à toa, desde aquele período, evito qualquer tipo de relação com automóveis cor de gelo.
Hoje dirijo um Ford KA preto. É o meu rojãozinho – Caramuru 1.0, 2005, pequenino, barato e sem frescuras, ideal para motoristas franciscanos como yo. Calcule, então, o tamanho de minha surpresa quando os malucos da VIP me ofereceram a tal Ferrari California. “Circule por São Paulo de carrão e depois narre tudo o que sentiu ou reparou”, sugeriram. “Mas não sei guiar espaçonaves”, argumentei. “Take it easy”, responderam. “Queremos exatamente um jornalista com o seu perfil: the wrong man in the right place.” O homem errado no lugar certo…

Fernanda Montenegro
Missão aceita, tratei de colher informações sobre a fera que me cabia domar – ou que, conforme vaticinavam os meus demônios, facilmente me domaria. Lançada há dois anos, a California exibe o título de “a mais jovem integrante” do mitológico clã Ferrari, marca italiana que surgiu em 1929 e que o Grupo Fiat incorporou em 1969. Possui capota conversível, motor V8 dianteiro e freios de carbocerâmica. Teoricamente, alcança a velocidade de 360 km/h. Na prática, afirmam os especialistas, não ultrapassa os 310. Partindo do repouso, atinge os 100 km/h em menos de quatro segundos. O curtíssimo tempo é apenas um pouco maior que o necessário para se repetir duas vezes a frase “menos de quatro segundos”.
Quem resolver importar a máquina desembolsará R$ 1,3 milhão, grana que conseguirá descolar se vender 78 Fords Ka com as características do meu. Uma fortuna? Depende. Perto de outros puros-sangues que ostentam o símbolo da Ferrari, a California tem preço de banana (banana-ouro, vá lá). Uma 612 Scaglietti ou uma 599 GTB Fiorano custam inacreditáveis R$ 2,5 milhões.
Até junho, somente 16 Californias rodavam pelo Brasil, boa parte dentro da região Sudeste. A única loja do país que as representa é a Via Italia, localizada em um sofisticado bairro de São Paulo, o Jardim América. Numa tarde escaldante de sábado, retirei ali o Discovery amarelo que prometia me conduzir às alturas sem abandonar o chão – a fábrica também produz exemplares vermelhos, azuis, brancos e pretos. Um dos vendedores, Claudio Boriero, se prontificou a me acompanhar durante o passeio. De origem napolitana, nasceu em Santo André, no ABC paulista, e negocia carros esportivos de luxo há três décadas. Está com 56 anos, apesar de manter a pinta de garotão. Como fez cursos de pilotagem, me serviria de anjo da guarda caso a Califórnia decidisse se rebelar às minhas ordens.
Mal imbicamos o bicho na porta da loja e avançamos pela rua bastante agitada, percebi o quanto a expressão “de parar o trânsito” pode se revelar literal. Todos os que passavam, motoristas ou pedestres, diminuíram imediatamente o ritmo e nos abriram caminho. “É sempre assim”, esclareceu meu partner. “Se saio numa Mercedes, BMW ou Maserati, nada acontece. Mas numa Ferrari…”
À medida que cruzávamos a cidade, ratifiquei inúmeras vezes o comentário de Claudio. A Califórnia realmente despertava um híbrido de admiração e reverência naqueles que a observavam. Homens e mulheres, ricos e pobres, crianças e adultos agiam como reles mortais que, de repente,  se surpreendem diante de uma celebridade muito querida e respeitada. Ninguém sucumbe à tietagem histérica quando esbarra na Fernanda Montenegro. Em geral, a atriz provoca manifestações sóbrias de afeto, ainda que inequívocas. Com a Ferrari, ocorre algo semelhante. O motivo? Talvez o prestígio que a Fórmula 1 – uma das responsáveis por outorgar à marca italiana a aura de lenda – desfrute entre os brasileiros.
Das calçadas, curiosos sacavam os celulares para nos fotografar. Incontáveis passageiros (ou mesmo condutores) de motos e carros em movimento também tiravam retratos. Num semáforo fechado do Jardim Europa, topamos com um malabarista vestido de palhaço. Ele se aproximou, curvou-se ligeiramente, à maneira de quem cumprimenta uma dama, e nos aplaudiu sem alarde. Noutro farol, agora do Alto de Pinheiros, um menino que comercializava balas esqueceu o trabalho, colou o rosto em minha janela e exclamou: “Que da hora, mano! É Ferrari, é? Se arranjasse uma dessas, iria morar dentro da belezura”.
À frente de um bar na Vila Madalena, um rapaz com chapéu de palha preparava uma caipirinha. Tão logo nos viu, interrompeu a atividade e acenou. Depois, perguntou: “Vocês trocam a Ferrari pelo chapéu?”. Claro que não! “E pelo chapéu mais duas caipirinhas?”

Ronco
Já na saída da loja notei que pilotar a California em velocidade de cruzeiro, sem pisar fundo, não é difícil. O Discovery praticamente se guia sozinho. A direção hidráulica não exige nenhum esforço. O câmbio, automático, idem. Basta acelerar de leve que a nave se desloca com maciez, emitindo um ronco especial – suave, mas altivo, quase hipnótico. Impossível ignorá-lo. “Por favor”, pediu o senhor de barba que acabara de emparelhar com a gente num sinal vermelho. “Me deixem escutar o ruído dela.” Da Ferrari? “É, dela. Vou até desligar o rádio…” Espantado, atendi a solicitação e apoiei o pé direito no acelerador. Vruuumm, vruuumm! O senhor arregalou os olhos, estremeceu de prazer e sorriu, como se ouvisse o ronronar de um leão.
(revista VIP)

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