Sempre viva

O breve percurso da fotógrafa Valda Nogueira

Na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, prolifera uma flor conhecida pela população local como pé-de-ouro. Com pétalas brancas e ovaladas, lembra as margaridas, apesar de ser consideravelmente menor. Tem, no máximo, 5 mm de diâmetro e aparece uma vez por ano, em fevereiro. Na mesma região, há outras flores nativas e igualmente pequeninas: a jazida, a sedinha, a guarda-chuva, a brejeira, a pimentinha… São cerca de quatrocentas variedades, todas pertencentes à família das Eriocaulaceae. Depois de colhidas, preservam a cor e a forma originais durante muito tempo – às vezes, décadas ou séculos. O fenômeno se dá porque, em vida, tais flores quase não retêm água. Assim, quando mortas (e secas), se diferenciam pouco de quando vicejavam. Não à toa, recebem o nome genérico de sempre-vivas e, com frequência, assumem funções decorativas. Estão em buquês, colares, bolsas, anéis e brincos.
Nenhum país reúne tantas espécies de sempre-vivas quanto o Brasil. Das 1 200 identificadas no mundo, 70% encontram-se aqui. O Cerrado de Minas concentra boa parte delas. Carioca, a fotógrafa Valda Nogueira não sabia praticamente nada disso quando, em 2015, subiu pela primeira vez a Serra do Espinhaço. Ela viajou para lá com a intenção de visitar o Quilombo de Raiz, onde moram 31 famílias de negros. Chegou à tardinha, em companhia de outro fotógrafo, João Roberto Ripper, e da antropóloga Elisa Cotta de Araújo. Além de documentar os hábitos do vilarejo, o trio pretendia ministrar uma oficina gratuita de fotografia para os quilombolas.
Mal entrou na comunidade, Valdinha – como amigos, colegas e parentes costumavam tratá-la – se viu rodeada de meninos e meninas. Por alguma razão, a fotógrafa atraía crianças. A simples presença dela bastava para encantá-las, seja em morros do Rio de Janeiro, seja em aldeias indígenas ou povoados rurais. Naquele entardecer, um dos garotos a presenteou com um ramalhete de sempre-vivas que acabara de colher. O gesto de boas-vindas selou o início de uma profícua relação entre Valdinha e o Quilombo de Raiz. Desde então, a fotógrafa – negra como os habitantes do lugarejo – nunca mais se afastou. Retornou à vila em inúmeras ocasiões não só para retratá-la, mas também para compreender melhor a rotina, os anseios e as mazelas dos moradores. Percorreu, ainda, uma porção de comunidades similares que se espalham pelos arredores e se sustentam graças à colheita e venda de flores, cipós, folhas, sementes e frutos.
Na comunidade, Valdinha se tornou amiga da artesã Eliad Gisele Alves. A jovem, também poeta e apanhadora de sempre-vivas, faz cordéis sobre o próprio cotidiano e a história daquelas terras. A fotógrafa gostava especialmente de Nosso Pedacinho do Céu, que explica como o agrupamento se formou. O tempo foi passando/E o quilombo crescendo/Chegaram logo os netos/Que a lição iam aprendendo/Nada de vô e de vó/Era pai véio e mãe véia/Tradição não vira pó, diz uma das estrofes.
As comunidades da serra que fascinaram Valdinha se orgulham de promover o uso coletivo do solo. Ali, criam-se animais de carga, maneja-se gado bovino e cultiva-se o necessário para a subsistência. As práticas agropecuárias e extrativistas, herdadas dos antepassados, preocupam-se em conservar o ecossistema para que as sempre-vivas – a maior fonte de renda local – não desapareçam. Mineradoras, grileiros e monocultores de eucalipto, contudo, avançam cada vez mais sobre os povoados.
A fotógrafa não estava alheia à luta dos moradores contra as invasões e se declarava aliada deles. Em maio de 2016, no teatro municipal de Diamantina (MG), expôs parte do ensaio sobre os coletores de sempre-vivas. O texto que divulgava a mostra alertava para os riscos enfrentados por aquelas populações. Não raro, Valdinha abordava o problema no Instagram, mas sempre de maneira sucinta, com afeto e sem palavras de ordem. “Uma honra poder pisar em terras sagradas, ouvir os mais velhos, voltar a ser criança, saborear os frutos do Cerrado, me sentir próxima das minhas raízes”, escreveu há quinze meses. “É ancestralidade que fala?”

Subúrbio
E
m novembro passado, um retrato colorido de família aterrissou no meu WhatsApp. Mal iluminado, sem foco e já esmaecido, trazia a imagem de quatro adultos, duas meninas e um cãozinho. Todos se espremiam em cima de um sofá azul. A mineira Vera Lúcia Ribeiro do Nascimento – que se criou numa favela de Belo Horizonte e é mãe de Valdinha – me enviara a foto. “Sou aquela moça de short”, esclareceu.
O retrato tem quase três décadas. Valdinha está lá, ainda criança, de regata branca e cabelos presos, segurando um urso de pelúcia. Mais nova que a outra garota, sorri timidamente. À época, não imaginava que, muito tempo depois, iria descrever e comentar a cena numa rede social: “Meu tio Barrão, minha mãe, minha vó Joaquina, minha irmã com nosso cachorrinho Tupã, minha vó Valda (sim, herdei meu nome dela) e eu.”
No texto, a fotógrafa confessava que chorou quando uma tia lhe apresentou o retrato. “Infância bem distante…”, prosseguia. “Cresci numa família grande, barulhenta, briguenta (aqui é subúrbio, né, mores? kkkk), mas sempre unida.” Valdinha aproveitava para reverenciar as mulheres da foto: “Hoje só consigo realizar meus sonhos por causa delas.” Também afirmava que, “em meio a tantas dificuldades”, as avós e a mãe “fizeram o impossível” para que as duas meninas se mantivessem felizes e livres de violência.
Num áudio do WhatsApp, Nascimento explicou por que decidiu me endereçar o retrato familiar com as observações da fotógrafa: “É um prazer saber que você está interessado em conhecer um pouco da minha sempre-viva.” Valdinha havia morrido um mês antes, súbita e tragicamente. Completara 34 anos em 19 de agosto, o Dia Mundial da Fotografia.

Medalhas
“F
ilho meu não vai ser paulista!” O caminhoneiro Manoel Inácio Nogueira Neto deu o aviso tão logo Nascimento lhe contou que estava grávida. O casal morava em Guarulhos, município da Grande São Paulo, e o futuro pai – carioca da gema – não podia admitir que o primogênito nascesse na cidade rival (ou mesmo perto dela). “Filho paulista… Mereço um negócio desses?” Antes de parir, Nascimento se instalou com o marido na casa dos sogros, em Sepetiba, bairro periférico do Rio, localizado à beira-mar. Depois de ter Carolina, voltou para Guarulhos.
O casal repetiu o itinerário com a segunda filha. Como Nascimento escolhera o nome da mais velha, o caminhoneiro reivindicou o direito de batizar a caçula. Homenageou, então, a própria mãe. Foi assim que, para se distinguir da avó paterna, Valda Nogueira se tornou Valdinha já no berço. Curiosamente, o aniversário da menina coincidia com uma data histórica, que se revelou premonitória. No dia 19 de agosto de 1839, o governo da França anunciou que iria colocar em domínio público uma invenção recente, a fim de que toda a humanidade pudesse usufruí-la. Era o daguerreótipo, o precursor dos processos fotográficos, criado pelos franceses Louis Daguerre e Joseph Niépce.
Após dez anos de união, Nascimento e o caminhoneiro se separaram. Ele mudou-se para a Bahia, casou outra vez e gerou mais dois filhos. Ela permaneceu cuidando de Carolina e Valdinha por algum tempo. Como não conseguia emprego, resolveu tentar a sorte na Suíça. A cunhada, que lecionava português em Berna, a convenceu: “Vem! Você já trabalhou de doméstica. Certamente vai arranjar uns bicos do gênero por aqui.”
“Com dor no coração”, Nascimento deixou as garotas sob a responsabilidade dos avós, em Sepetiba, onde ambas acabaram crescendo, e chegou à cidade europeia sem falar nada de alemão. Mesmo assim, um diplomata a contratou como babá. Mais tarde, a mineira trocou a parte germânica do país pela francófona e aprendeu francês. Hoje vive novamente no Brasil.
Embora nem sempre estivesse junto das filhas, nunca perdeu contato com as duas, nem abdicou de educá-las e sustentá-las. O caminhoneiro tampouco abandonou as crias e se fazia presente ainda que a distância. Nascimento afirma que Valdinha jamais a chamou de mãe. Preferia tratá-la por Vera. Agia de modo semelhante com o pai. Chamava-o apenas de Nogueira.
Desde cedo, mostrou-se ótima aluna. “No colégio, só tirava notas boas e ganhava medalhas por ser disciplinada. Os colegas provocavam: ‘Ô, cabeçuda, para de ler! Vamos brincar!’ Mas Valdinha não desgrudava dos livros. Ela também adorava história em quadrinhos. Se bobeássemos, ficava o dia inteiro mergulhada nos gibis”, conta Nascimento. A fotógrafa cursou o ensino fundamental em escolas particulares e o médio, numa pública. Quando tinha 19 anos, decidiu estudar biologia. Ingressou na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a Uerj, mas se arrependeu da escolha e, após alguns semestres, largou as aulas.

Tom, o gato
N
inguém sabe dizer por que Valdinha se maravilhou pela fotografia quando adolescente. Ela não conhecia nenhum fotógrafo, e ainda não havia a febre dos celulares com câmeras. “Um dia, do nada, me pediu uma maquininha daquelas analógicas, bem simples e baratas. Comprei”, relembra Nascimento. A moça, animadíssima, começou a registrar as festas de família. Pouco depois, ganhou um equipamento melhor, igualmente analógico, que andava esquecido na casa de um amigo.
Enquanto frequentava a faculdade de biologia, Valdinha deixou Sepetiba e morou em repúblicas próximas à Uerj. Numa delas, convivia com poetas, músicos e pintores. Por influência daquele pessoal, estudou desenho e percebeu que poderia usar a fotografia para se expressar artisticamente. Na época, outro amigo lhe deu a primeira máquina digital, uma Canon PowerShot G5. “Fiquei toda boba. Não sabia mexer direito na câmera nem tinha computador. Quanta precariedade! Mas a paixão e a curiosidade falaram mais alto”, escreveu no Instagram, em 3 de janeiro de 2018.
O post exibia o retrato de Tom, gato rajado que habitava uma das casas de universitários onde a fotógrafa viveu. Sobre um telhado, o bichano olhava atento para a lente que o enquadrava. No breve relato, Valdinha salientava a importância da imagem em preto e branco, captada quando tinha 22 anos, justamente com a Canon G5. “Foi a primeira de minhas fotos que considerei ‘boa’. A primeiríssima.” Ela contou que retratava Tom o tempo inteiro, o que lhe permitiu avançar no “aprendizado autodidata” dos macetes fotográficos. O gato lhe ensinou, por exemplo, os segredos da “leitura de luz”. A postagem terminava com a informação de que Tom morrera naquele dia, inesperadamente.
Valdinha só procurou cursos e oficinas de fotografia a partir de 2010, já beirando os 25 anos. Fez alguns, mas ainda se sentia insatisfeita. Desejava algo mais aprofundado, que não lhe fornecesse apenas conhecimento técnico.

Sepetiba
Escola de Fotógrafos Populares surgiu em 2004, no Complexo da Maré, conglomerado de dezesseis favelas que se distribuem pela Zona Norte do Rio e abrigam aproximadamente 140 mil pessoas. Foi criada por João Roberto Ripper e, ao longo de quase uma década, totalizou cerca de 350 alunos – a maioria sem diploma superior e originária de regiões pobres da cidade.
Gratuita, a escola promovia um curso que durava onze meses, com aulas em todos os dias úteis. Os estudantes, além de aprender fotografia, recebiam noções de filosofia, história da arte, psicologia, cultura africana e outras disciplinas. Entre os docentes, havia fotógrafos profissionais, artistas e professores universitários.
À escola, se ligava o Imagens do Povo, híbrido de arquivo digital e agência fotográfica. O projeto correspondia, portanto, a um tripé. As fotos que os alunos e ex-alunos produziam municiavam o arquivo, e a agência as vendia ou doava para eventuais interessados: meios de comunicação, ONGs, partidos, instituições públicas etc. Em caso de venda, parte do dinheiro ficava com o autor das imagens e o resto, com o projeto.
Como a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) apoiavam a iniciativa, os estudantes ganhavam três certificados de extensão universitária quando se formavam – um de informática aplicada à fotografia, outro de linguagem fotográfica e o terceiro de fotografia documental com olhar autoral. Inicialmente, a Organização das Nações Unidas bancou a empreitada, ora por meio do Unicef, ora graças à Unesco. Depois, o Ministério da Justiça, o Itaú Cultural e a Embaixada da Suíça se intercalaram como financiadores.
Um dos mais importantes fotógrafos documentais do país, Ripper fundou a escola e o Imagens do Povo com o estímulo do Observatório de Favelas, entidade sediada na Maré que se dedica principalmente à educação e às políticas urbanas. “Pretendíamos incentivar novas maneiras de retratar os territórios populares. Queríamos que os estudantes desenvolvessem uma percepção crítica da realidade e fugissem das representações clichê que costumamos ver na mídia convencional: a casa miserável, o traficante com fuzil em punho, o esgoto correndo pelas ruas esburacadas…”, explica Ripper. “Tem injustiças naqueles espaços? Tem, claro, e precisamos denunciá-las, nos indignar, mas também existem as belezas, os sonhos e os afazeres cotidianos. Qual a razão de não registrarmos, por exemplo, os olhares que um cearense arretado como meu pai resolve lançar para uma carioca bonitinha como minha mãe num domingo qualquer? Não valeria a pena captar um momento desses se tantas coisas bacanas podem brotar dele?”
Entre 2004 e 2012, a escola ministrou o curso com certa regularidade – houve anos em que não o ofereceu por falta de financiamento. Desde 2013, no entanto, está inativa, também pela ausência de patrocinadores. Já o Imagens do Povo continua funcionando. Ripper estima que “uns sessenta ex-alunos” se profissionalizaram como fotógrafos. “Alguns fazem books para crianças, outros cobrem batizados e casamentos ou enveredaram pelo jornalismo.” Um deles, Luiz Baltar, cujos trabalhos dialogam com a arte contemporânea, venceu dois concorridos prêmios em 2015: o Brasil Fotografia e o da Fundação Conrado Wessel.
Quando soube da escola, Valdinha logo concluiu que deveria frequentá-la. Imaginou encontrar ali a profundidade que buscava. Matriculou-se na turma de 2012 – a mesma de Baltar – e rapidamente se destacou. “De cara, as fotos dela nos impressionaram pela originalidade. Eram muito potentes. Tu olhavas as imagens e pensava: como a Valda conseguiu enxergar isso?”, recorda a curadora Thaís Rocha, que também pertencia à turma de 2012.
O então coordenador pedagógico do curso, Dante Gastaldoni, que leciona na Escola de Comunicação da UFRJ, teve uma sensação parecida. “Valdinha ousava. Em pouco tempo, notei que suas fotografias primavam pela composição inusitada.” O coordenador percebeu, ainda, que a aluna “mergulhava de cabeça nas coisas” e demonstrava “uma determinação rara”. “O curioso é que, embora nos chamasse a atenção, comportava-se de modo bastante discreto, bastante recatado. Silêncio e foco a definiam perfeitamente.”
Durante o curso, Valdinha iniciou uma série fotográfica a respeito de Sepetiba, o bairro da Zona Oeste onde cresceu. As praias de lá estão bem ruins, devido à contaminação do mar por rejeitos industriais e esgoto in natura, o que compromete a pesca, atividade econômica fundamental na região. O ensaio em preto e branco, porém, não almejava escancarar toda aquela decadência. A fotógrafa desejava traçar “um memorial afetivo”, quase onírico, do lugar – narrar “uma história sobre natureza, espiritualidade e pertença”. “Não vejo graça em voltar à minha terra para exibir peixe morto, urubu e pescador triste”, argumentava. Ela preferia mostrar troncos de árvores, objetos religiosos, enfeites de barco e nuvens enegrecidas.
Nas palavras de Thaís Rocha, a série resultou “arrebatadora”, com “forte apelo estético”. Valdinha lhe conferiu o título de Porto e a apresentou como trabalho de formatura. Assim que saiu da escola, virou assistente de Ripper. Juntos, documentaram quilombos, povos da Caatinga e outras comunidades tradicionais do país.
Há cinco anos, a fotógrafa retornou à Uerj, agora para estudar artes visuais. A partir de então, decolou. Participou de exposições coletivas em várias cidades: Diamantina, Manaus, Paris, Nova York, Los Angeles e Filadélfia. Levou Porto para o Centro Cultural Pequena África, do Rio. Colaborou em publicações nacionais (FolhaO Globo) e estrangeiras (Washington PostNew Yorker). Integrou a Women Photograph – plataforma digital com produções de pelo menos 950 mulheres do mundo inteiro  e, acima de tudo, inspirou colegas negros que atuam em diferentes partes do Brasil.

Geladeira amarela
S
e lhe pedissem para definir o próprio ofício, Valdinha responderia: “Sou uma fotógrafa documental humanista.” Ela jamais abandonou os temas que explorou no ensaio sobre Sepetiba – meio ambiente, cultura popular, negritude e fé. Embora não professasse nenhuma religião, manifestava especial interesse pelas crenças de matriz africana e pelo “cristianismo de rua”. “Me convidem para o que estiver rolando: giras, missas, procissões, lamentos, rezas, velórios, batuques, folguedos, cavalgadas…”, avisou no Instagram, em abril de 2019. Filha de Omolu, o orixá das enfermidades e da cura, gostava de dançar e cantar pontos de terreiro.
Sempre que possível, exercitava a “fotografia compartilhada”, método que herdou de Ripper. Ou melhor: encarava os personagens das fotos como “atores e autores”. Por isso, lhes requeria ajuda para editar as imagens. “Em condições ideais, faço o seguinte: no fim de uma documentação, reúno a galera da comunidade dentro de um colégio ou uma igreja e projeto as fotografias. Caso alguém se julgue mal representado ou acredite que determinada cena pode prejudicá-lo, apago o registro e pronto. Não quero fotografar as pessoas. Quero fotografar com as pessoas”, costumava dizer em palestras e workshops.
Sem receio de soar reducionista, Ripper afirma que a maioria dos fotógrafos sente pena dos personagens quando documenta favelas, vilarejos rurais e outras áreas pobres. “Há também os filhos da puta, que sentem raiva, nojo ou desprezo, mas vamos desconsiderá-los. Os que sentem pena acabam se portando como colonizadores. ‘Estou aqui para proteger os humildes, para orientar, para socorrer, blá-blá-blá.’ Os caras não percebem que a pena é somente uma arrogância bem-intencionada. Valdinha evitava agir assim. Ela fotografava de igual para igual. Conquistava os personagens e deixava que cada um deles a conquistasse na mesma proporção. Era uma via de mão dupla.”
O professor Dante Gastaldoni conta que, ao entrar em qualquer comunidade, Valdinha logo ficava amiga “das mulheres, dos velhos, da molecada, de todo mundo”. “Raras vezes encontrei alguém tão capaz de se misturar com os fotografados. Ela se achava parte do grupo, compreende? E o grupo retribuía, entregando-lhe cenas muito íntimas.”
A fotógrafa não buscava, portanto, a imparcialidade ou o distanciamento que o jornalismo e a ciência apregoam. Em contrapartida, também não se valia da profissão para militar de modo estridente, ainda que apoiasse as causas da esquerda. “Valdinha enxergava o ato de fotografar principalmente como uma chance de ser feliz”, sintetiza Ripper.
Outra peculiaridade apontada por colegas: a fotógrafa nunca terminava os ensaios. Considerava-os sempre “em processo”. Mesmo o de Sepetiba não lhe parecia concluído. Em agosto de 2013, num caderno de caligrafia que adotara como diário, Valdinha relatou um passeio por uma praia do bairro. Fazia “um frio terrível”. O céu nublado pesava sobre “o mar de ressaca” e “a maré bem cheia”. “Pensei que preciso explorar mais as coisas”, escreveu. “Estou há bastante tempo fotografando do mesmo jeito e os mesmos lugares. Tenho que arrumar um barco, fotografar da água, fotografar na água, atracar nas ilhas. Falta muito ainda.”
A discrição que Valdinha revelou em sala de aula repetia-se fora dela. A fotógrafa odiava autopromoção e dificilmente se abria. Namorava? Sentia medo de algo? O que a irritava? Nem sequer os amigos sabiam direito. “Era muito reservada e independente desde a infância. Uma feminista, né?”, lembra a mãe. “Ela me falava: ‘Vera, não sirvo para cuidar de marido. Quero liberdade!’”
Morava à beira de um morro, o do Pinto, na zona portuária do Rio. Lá dividia uma casa bem modesta com um gato vira-lata, que às vezes chamava pelo nome (Pistache), às vezes pelo apelido (Mendigo). Na residência de apenas um quarto, sobressaíam um fogãozinho azul e uma geladeira amarela, meio enferrujada, que ostentava um adesivo com a inscrição “Lula Livre”. Nascimento insistia para que a filha vivesse em melhores condições. “O banheiro da casa, minúsculo, mal abrigava um adulto. Se a gente decidisse tomar banho, precisava deixar a toalha do lado de fora. Ou cabia o adulto, ou cabia a toalha. Televisão, não tinha. E a geladeira… ‘Substitua por uma moderna, garota!’ Ela dava um sorriso e interrompia a conversa: ‘Sossega, Vera, eu curto a simplicidade.’”
Os cinco membros da Farpa – agência de imagens que a fotógrafa integrava desde 2018 – são unânimes em mencionar uma característica um tanto irritante da parceira: Valdinha fazia tudo no tempo dela. “Não adiantava colocar pressão”, diz Tuane Fernandes. “‘Anda, criatura! Vamos nos atrasar!’ E a Valdinha ali, tranquila, sem alterar o ritmo.”
Erick Dau, também da Farpa, recorda que a fotógrafa adorava a expressão “viado”. “Paulista tem o hábito de usar ‘mano’, certo? Ela usava ‘viado’, seja para homens, seja para mulheres. ‘Ô, viado, me empresta tua câmera.’” Quando Valdinha morreu, vários conhecidos empregaram o termo nas redes sociais: “Até breve, viado!”, “A gente ainda se cruza, viado!”

Marielle
M
al abraçou a profissão, a fotógrafa notou que raramente via colegas negras em campo. “Com certeza, há outras”, pensava. “Mas onde?” Resolveu, então, procurá-las. Entrava em comunidades do Facebook que discutiam questões raciais e indagava: “Vocês conhecem pretas que fotografem?” Caso identificasse alguma, logo estabelecia contato. A garimpagem acabou gerando um mapeamento robusto. Em poucos meses, Valdinha dispunha de um arquivo com nomes do país todo. A lista reunia tanto profissionais que se dedicavam à publicidade, à arte ou às coberturas jornalísticas quanto estudiosas do assunto ou simples amadoras.
Surgiu, assim, o grupo “Fotógrafas Pretas”. A própria Valdinha o fundou em 2016, no Facebook, para unir “as meninas” e possibilitar que trocassem informações acerca de livros, filmes, oficinas, mostras e oportunidades de trabalho. “Temos um ofício que depende muito dos relacionamentos, do net-working”, explicava. “Se as pretas estão isoladas, azar o nosso. Suponha que me peçam indicação para um trampo no Nordeste. Eu, antes, ficaria boiando. Agora sei exatamente quem sugerir.” Privado, o grupo abarca 108 mulheres.
“Quase toda semana, Valdinha me enviava links sobre fotógrafas negras do Brasil e do mundo”, relembra Christian Braga, outro componente da Farpa. “E não mandava apenas para mim, não. Enviava para uma porção de gente. Ela poderia divulgar aqueles links em textões nas redes, mas preferia uma abordagem mais íntima e sutil, do tipo: ‘Espie só a pérola que descobri.’”
A curadora Thaís Rocha também ressalta o lado agregador da amiga com quem frequentou a escola da Maré. “Sou uma negra potencializada pela Valda. Ela puxava o bonde, nos dava a mão e decretava: ‘Vamos juntos, pessoal! Bora ocupar os espaços!’ Já esmoreci milhares de vezes, já cogitei abrir mão da carreira e exercer atividades menos refratárias às pretas do subúrbio. Se não pulei fora, é porque a Valda me botou pilha.”
Em janeiro de 2019, a curadora terminou um mestrado no Instituto de Artes da Uerj. A dissertação que apresentou à banca discorre sobre mulheres negras na fotografia contemporânea. Um dos capítulos trata de Valdinha. “O mercado estabeleceu que as imagens de guerra, de explosão e de confronto são boas, fortes”, refletia a fotógrafa num trecho do estudo. “Aí faço uma leitura de portfólio e mostro minhas florzinhas. As pessoas acham bonito, mas dizem que não são imagens boas nem fortes. A gente discute sempre a ética da profissão e tal. Só que, na hora do vamos ver, a foto que ganha prêmio é a de guerra.”
Valdinha não estimulava apenas as mulheres. “A presença dela me deixava em paz, me transmitia a sensação de não estar completamente sozinho numa cidade tão diferente do lugar onde cresci”, afirma Joelington Rios, o Rivers. Filho de um vaqueiro e de uma lavradora, o maranhense de 20 anos nasceu e se criou no Quilombo Jamary dos Pretos, a quase 300 km de São Luís. Mudou-se para a capital fluminense em fevereiro de 2017, com o intuito de concluir o ensino médio e aprender fotografia. Atualmente trabalha num estúdio de impressão fine art e vive na favela do Turano junto de um irmão mais velho, da cunhada, de dois sobrinhos e de outras três crianças.
“Encontrei a Valda pela primeira vez em março de 2018, logo após o assassinato da vereadora Marielle Franco.” Rivers participava de um protesto contra o atentado quando avistou a fotógrafa entre os manifestantes. “Eu já a seguia nas redes sociais. Puxei conversa e rapidamente viramos amigos.” Valdinha o auxiliava na edição e no tratamento de fotos, lhe emprestava lentes e o indicava para frilas. “Ela sempre me dizia: ‘Jô, se você precisar, estou aqui.’”

Cavalo branco
P
rincipalmente por gosto, mas também por economia, a fotógrafa se deslocava de bicicleta pelo Rio. No Instagram, em setembro de 2016, publicou a imagem de uma roda avariada. Era da bike imunda que costumava usar. Naquela ocasião, relatou Valdinha, um carioca “bem-vestido e com sotaque puríssimo” a atingiu depois de avançar um sinal fechado “sem querer”. O motorista saiu do carro imediatamente e, assustado, pediu desculpas. “Ficamos um tempo olhando para o meu pé”, que jazia embaixo do veículo, assim como a roda da bicicleta. “Esquisito. Não machucou nadinha.” O homem pagou o conserto da magrela. “Agora tenho uma bicicleta encardida com uma roda reluzente.”
No último dia 3 de outubro, porém, a sorte abandonou a fotógrafa. Ela pedalava à noite pelo bairro da Tijuca quando um ônibus a atropelou. Valdinha sofreu hemorragia interna e não resistiu. Foi cremada no cemitério do Caju. Estranhamente, enquanto seus colegas, amigos e familiares deixavam o crematório, um cavalo branco, muito bonito e sem arreio, apareceu de repente e cavalgou entre os túmulos. Um grupo de crianças negras corria atrás dele.
(revista piauí)

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