Dui bop du bá

Uma visita a Leny Andrade, a dama do improviso vocal

De peito estufado, barbudo e com os cabelos na altura do ombro, Carmo Dalla Vecchia trajava roupa de gala quando entrou em cena. Eram cinco e pouco da tarde, e a Globo reprisava Cordel Encantado, novela de época que exibiu pela primeira vez entre abril e setembro de 2011. Na trama, o ator gaúcho interpreta o rei Augusto Frederico III. Sentada diante da tevê, Leny Andrade interrompeu nossa conversa mal o avistou. Permaneceu uns segundos em silêncio, como que hipnotizada pelo monarca de olhos verdes. “Que beleza de rapaz, meu Deus!”, comentou enfim. “Um pedaço de mau caminho!”
Não se pode dizer que Dalla Vecchia seja propriamente um rapaz. Embora ainda carregue com brio o rótulo de galã, já se aproxima dos 50. Nasceu quase três décadas depois de Leny, que iria completar 76 anos dentro de uma semana, em 26 de janeiro. “O Tom é do dia 25, sabia? Dois aquarianos… Eu e o Tom… Mais cariocas do que nós, impossível! Só que o Tom chegou antes, em mil novecentos e… Não me recordo agora, mas garanto que temos uma boa diferença de idade.” Natural da Tijuca, bairro da Zona Norte, o compositor Tom Jobim morreu em 1994, perto dos 68 anos. Mesmo assim, Leny prefere conjugar os verbos no presente quando fala dele. “Eu também sou da Zona Norte – do Méier, conhece? Como o João Nogueira e o… Qual o nome daquele outro sambista do Méier? Famoso demais! Não vou lembrar… Me desculpe.”
Ela planejava comemorar o aniversário no Bottles Bar, em Copacabana, da melhor maneira possível: cantando. “Não há nada que me agrade tanto quanto cantar. Minha música me refresca, me renova, me ilumina.” A pequena casa noturna fica no Beco das Garrafas, ruazinha sem saída que se tornou lendária por abrigar, entre o final dos anos 50 e o começo dos 60, três boates onde os precursores da bossa nova se apresentavam: Little Club, Baccarat e o próprio Bottles Bar. Todas acabaram fechando a partir da década de 70, quando a ruela virou um reduto de stripteases e prostituição. Em 2013, porém, o Bottles Bar reabriu e, em 2014, se deu a ressurreição do Little Club. No show de aniversário, Leny compartilharia o palco com o Quarteto do Rio, grupo de instrumentistas que também cantam.
“Estou enfrentando uns probleminhas de saúde, mas me sinto muito bem, tranquila, em paz. E vou me sentir melhor se você parar de me tratar de senhora”, zombou, recostada numa larga poltrona, ainda sem tirar os olhos da televisão. Vestia uma túnica estampada, à moda dos hippies, e demonstrava conservar intacta a vaidade que sempre a caracterizou. Passara batom, tingira o cabelo de castanho, pintara as unhas dos pés e das mãos (“amo esmalte vermelho, vermelhíssimo!”), perfumara-se e retocara a maquiagem definitiva das sobrancelhas.
“Minha vantagem é que não sofro de diabete, como a pobre da Ella Fitzgerald.” A doença aniquilou a dama negra do jazz. Primeiro, lhe roubou a visão. Depois, exigiu que amputasse ambas as pernas logo abaixo dos joelhos. “A Sarah Vaughan também não tinha diabete. O ponto fraco dela era outro: o nariz. A Sarah sofria de pó…” Leny não mencionou as duas divas à toa. Durante seis décadas de profissão, cansou de ler e escutar comparações com as norte-americanas. Em agosto de 2008, por exemplo, ganhou elogios arrebatados de Stephen Holden, crítico do New York Times, após brilhar no Birdland. O histórico clube de Manhattan assistiu à artista desfiar clássicos de Tom Jobim, Ivan Lins e outros brasileiros. “Com todo respeito a Astrud Gilberto, que popularizou a composição, Leny Andrade transformou Garota de Ipanema numa mulher”, escreveu Holden. Poucas linhas antes, o crítico definiu a cantora do Méier como “a Sarah Vaughan e a Ella Fitzgerald da bossa nova”.
Leny se assemelha à dupla não somente pela maneira jazzística com que interpreta sambas, boleros e sambas-canções, mas sobretudo por dominar a arte do scat singing, o improviso vocal. Quando jazzistas afirmam que improvisam, querem dizer que são capazes de criar música no exato instante em que a executam. O procedimento, aliás, não se restringe à seara do jazz. Está presente em gêneros bem mais antigos – o radif persa, o taqsim árabe, o flamenco espanhol e até a ópera cantonesa. No jazz, o improviso costuma partir dos instrumentistas. Enquanto tocam determinada composição, eles vão inventando novas melodias e as adequando à harmonia original. Ainda que raros, há cantores que fazem o mesmo, só que com a voz. Como se virassem um piano, um trompete ou um contrabaixo, entoam sílabas que, sem constituir palavras, transformam-se em melodia. Ella e Sarah encantavam o público sempre que temperavam canções com sons do tipo shu bee doo bee doo. Leny fascina igualmente toda vez que ataca de shá rá bá rá bádui bop du bádrei u dei e afins.
Praticando o scat singing desde o primeiro disco, A Sensação, lançado em 1960, a carioca mostrou seus improvisos para plateias das Américas, da Europa, da Ásia e da Oceania. Poucos brasileiros dedicaram-se à técnica durante tanto tempo e com tal maestria. Não por acaso, a intérprete conquistou o respeito do gaitista belga Toots Thielemans e do saxofonista cubano Paquito D’Rivera, músicos geniais que chegaram a acompanhá-la no palco. Também mereceu a admiração e a amizade de Tony Bennett e Liza Minnelli. O cantor nova-iorquino, que viu diversos espetáculos de Leny, a retratou em alguns deles e assinou os desenhos apenas como Benedetto, seu sobrenome verdadeiro. Já a atriz de Los Angeles, embora septuagenária, insiste em chamar a amiga de mãe.

Vício
“E
stranho… O telefone ainda não tocou. Em geral, uma porção de gente me liga, mas hoje parece que resolveram me deixar sossegada.” No último dia 3 de janeiro, Leny Andrade trocou o prédio de Botafogo onde vivia desde 2002 pelo Retiro dos Artistas, a centenária comunidade para idosos em Jacarepaguá. Ali ocupa uma casa térrea, de uns 60 metros quadrados, muito aconchegante, apesar de simples. Divorciada e sem filhos, conta com a ajuda ininterrupta de Rose Oliveira Gonçalves ou Valéria Balbino Neves, cuidadoras que se revezam na função. Entre os cinquenta moradores do Retiro, somente a intérprete segue em atividade. Os demais – atores, cenógrafos, pintores, músicos, cantores, bailarinos, escritores, camareiros, maquiadores, jornalistas, produtores teatrais, artistas circenses e iluminadores – penduraram as chuteiras.
Foi justamente na casinha número 2 da rua Nair Bello que Leny me recebeu. “Peguei bem mais leve que a Sarah Vaughan. Nunca dei bola para cocaína, maconha ou álcool. Uísque? Cerveja? Estou fora! Amargam a boca.” Reconheceu, entretanto, que adorava nicotina. Na adolescência, quando iniciou a carreira, não fumava. “Acontece que, volta e meia, me apresentava em boates esfumaçadas. Uma hora, cansei de bancar a diferente e entreguei os pontos: ‘É guerra? Vou fumar também!’” Tinha 21 anos e só largou o cigarro após duas décadas. “Agora mantenho apenas o vício em café e homens.”
Homens? “Sim, os homens me procuram. E eu vou, eu vou, eu vou! Comi todos os homens que desejei.” Todos? “O.k., quase todos”, recuou. “Sou minúscula – meço 1,50 metro, se tanto – e não me considero bonita, mas sempre esbanjei charme. Aprenda: é mais importante o charme que a beleza.” Com quantos homens saiu? “Xiii… Vamos calcular por continente: dez argentinos, vinte franceses, quinze árabes… Eu andava com as saias na cabeça, meu filho! Muita perna de fora. Os homens enlouqueciam! Faço a linha sedutora, compreende? Meu lema: sem sedução, não rola tesão. No México, durante a Copa de 70, fiquei com um jogador da Seleção Brasileira. Fomos para um hotel e quebramos uma cama ótima. Depois, passamos uns trinta minutos no chão, às gargalhadas.” Que jogador? “Um atacante, dos bons.” E hoje, namora alguém? “Preciso pensar. De repente, a gente tem namorado e não lembra.”
Olhei para Valéria Neves, que ouvia a conversa, e lhe perguntei se Leny falava sério. A cuidadora limitou-se a sorrir. “Não estou falando sério nem fazendo gozação”, replicou a cantora. “Estou no meio do caminho.”

Panteão
Q
uem visita a nova casa da artista logo nota uma profusão de troféus. Distribuídos pela sala e pelos dois quartos, os objetos de diferentes tamanhos e formatos evocam os inúmeros prêmios que Leny ganhou dentro e fora do país. O de maior destaque é o Grammy Latino, uma das principais honrarias da indústria fonográfica. A intérprete arrebanhou o gramofone dourado em 2007, na categoria Melhor Álbum de Música Popular Brasileira, por causa de Ao Vivo, que lançou com o pianista Cesar Camargo Mariano.
Mais do que troféus, porém, o imóvel guarda peças de cunho religioso. Há dezenas, por toda parte – um quadro de Ogum, uma Santa Ceia talhada em madeira, santos, anjos e amuletos orientais. Curiosamente, o panteão inclui uma estatuazinha de Tom Jobim e outra do violonista Roberto Menescal, um dos pioneiros da bossa nova. Pirâmides e pedras, muitas pedras, também se espalham pela residência. Católica de berço, Leny se classifica atualmente como esotérica. Crê nos poderes “do Sol, da Lua, da água, das rochas” e entende de astrologia.
Não raro, antes de subir no palco, invoca a proteção “do além”. Baixinho, reza uma oração que ela mesma concebeu: “A vós, Palas Athena, minha amorosa amiga, ofereço o meu cântico e dou as boas-vindas. Preenchei todo o meu mundo com vossa verdade cristalina. Vossa chama verde diviso, com olhar extasiado. A verdade me é muito cara. Em nome de Deus, eu sou. Com a força cósmica da vitória, reivindico a verdade.”

Bambolê
F
ilha única de uma professora particular de música, Leny de Andrade Lima devia beirar os 4 anos quando ousou abrir o piano de armário que imperava na sala de sua casa. Como qualquer criança, martelou as teclas alucinadamente. “Mamãe contava que segurou minhas mãozinhas e explicou: ‘Aqui não se batuca, menina! Primeiro, é necessário sentir o teclado e, então, encontrar o melhor jeito de usá-lo.’” Pouco depois, a garota iniciou o aprendizado do instrumento. A própria mãe, Ruth, lhe dava aulas. “Eu estudava à beça! Piano escraviza a gente. Você passa cinco, seis horas diárias naquilo.”
Tão logo percebeu que Leny podia voar sozinha, a mãe parou de ensiná-la e a transferiu para o Conservatório Brasileiro de Música, um dos mais tradicionais do Rio. “Foi lá que tirei meu diploma. No total, estudei piano por doze anos. Uma dureza…”
Ruth abandonou o pai de Leny assim que a filha nasceu. Após descobrir que o marido – um dentista – se engraçara com outra mulher, pegou a menina e mudou-se para o sítio de uma irmã, perto de Belo Horizonte. Em Minas Gerais, se casou de novo, desta vez com um pediatra, Gustavo. O médico tocava trombone e tinha três filhos de uma relação anterior. “Eu o admirava bastante. Era um escorpiano inteligentíssimo, que misturava alopatia e homeopatia. Um bruxo!” Junto de Gustavo e Ruth, Leny voltou para o Rio. “Sempre chamei meu padrasto de pai. Ele me apoiou muito em termos profissionais e acabou se tornando um grande fã.”
De formação erudita, Ruth torcia o nariz para a música popular, embora às vezes assoviasse serestas. Por isso, odiou saber que a filha – com apenas 8 anos – disputaria um concurso mirim de canto. A garota passeava de bicicleta no conjunto habitacional da Zona Norte em que morava quando viu um cartaz anunciando a competição. Impetuosa, caminhou até a associação que organizava o evento e se candidatou. “Você por acaso canta?”, indagou a mãe, irritada. “Canto! Papai já ouviu”, respondeu Leny. Gustavo confirmou: “Ela canta, sim! Canta grosso e bem.”
Com vestido rodado, sapato de verniz e meia soquete, a menina entoou Risque, de Ary Barroso, e se sagrou campeã do concurso. Daí em diante, pegou gosto por provas do gênero. Participou de outras no mesmo conjunto habitacional, acumulou uma série de prêmios modestos – porta-retratos, cortes de tecido, pinguins de geladeira – e amansou Ruth.
Em 1952, com 9 anos, estreou no Clube do Guri, programa radiofônico da Tupi que abria espaço para talentos infantis. Mais tarde, ainda criança, passou pelas rádios Nacional, Mayrink Veiga e Mauá. Nos corredores das emissoras, topava com Angela Maria, Cauby Peixoto, Dalva de Oliveira e outras estrelas do momento. “Muito do que aprendi como intérprete devo à minha madrinha de crisma, Marlene, e à irmã dela, Elza.” Cantoras líricas, ambas integravam o coral que Ruth dirigia na Igreja da Imaculada Conceição, em Botafogo, onde também fazia as vezes de organista. “Marlene e Elza não tinham apenas um controle vocal absurdo. Tinham generosidade. Me ensinaram vários macetes.”
Quando completou 15 anos, em 1958, Leny debutou como crooner na orquestra do maestro Permínio Gonçalves. O baterista Wilson das Neves, futuro parceiro de Chico Buarque, figurava entre os músicos. Certo domingo, o vibrafonista Chepsel Lerner, o Chuca-Chuca, tocou num dos bailes que a orquestra comandava e adorou o desempenho da adolescente. “Quero contratar a garota. Você autoriza?”, pediu para o padrasto da cantora. Chuca-Chuca – um dos sócios da boate Baccarat, no Beco das Garrafas – suspeitava que não seria fácil dobrar o pediatra. Moças de família, afinal, não frequentavam “aquele tipo de ambiente”. Depois de hesitar um bocado, Gustavo cedeu.
Na boate, Leny revezava o palco com Altemar Dutra, que despontaria como um habilidoso cantor de boleros. Os scats da novata impressionaram tanto que o vizinho Bottles Bar a roubou. Convidou-a para se apresentar com o grupo de Sergio Mendes, compositor e pianista que se consagraria nos Estados Unidos durante a década de 60.
Paparicada pela imprensa e pelo público, Leny atraiu a atenção do playboy Jorginho Guinle, cujo tio fundara o Copacabana Palace. No luxuoso hotel, o bon vivant mantinha um clube de jazz, em que a cantora deu umas canjas. “Um gentleman, o Jorginho! Do tipo que beijava a mão das mulheres, sabe?”
Quando Leny se aproximava dos 20 anos, outro cavalheiro apareceu e a levou embora do Rio: Dick Farney, o “Frank Sinatra brasileiro”. Elegante, com voz de veludo (ou “de travesseiro”, como se dizia na época), o cantor e pianista percorria o Brasil de ônibus, à frente de uma orquestra. “Aquele homenzarrão maravilhoso, de olhos azuis, bateu à minha porta e jogou a isca. Confidenciou para meus pais que o maestro da orquestra, Erlon Chaves, procurava uma crooner tão educada e inocente ‘quanto a Lenyzinha’. Se empregassem uma cantora qualquer, que bebesse, que curtisse farra, iriam naufragar. Hoje, a safada daria para o trompetista. Amanhã, comeria o saxofonista. Em seguida, pegaria o contrabaixista. Na hora que traçasse os ritmistas, a orquestra estaria arruinada.”
Leny jura que não perdeu a linha enquanto circulou o país junto de Farney. “Preservei a virgindade, mas com imenso sacrifício. Eu morria pelo Dick! Só que, por medo, não me declarava. Sofriiiia… Muito tempo depois, o reencontrei: ‘Se não me engano, você é o Dick Farney, né?’ Aproveitei a chance e revelei minha paixão da mocidade. ‘Ah, Lenyzinha, você não enxergava um monte de coisa… Eu também me apaixonei.’ Fiquei estarrecida: ‘Pelo amor de Deus, não fale um negócio desses, Dick! Quer dizer que sofri à toa?’”
Com 22 anos, em 1965, a cantora gravou o quarto disco, Estamos Aí, que a crítica aclamou como “extraordinário”. No encarte do álbum, Sérgio Lobo – pseudônimo do jornalista Sylvio Tullio Cardoso – derreteu-se: “É verdadeiramente prodigioso que, sendo tão jovem […], Leny possa alcançar […] esta profundidade de expressão, esta desenvoltura, este desembaraço, este impressionante e absoluto domínio do tema.” Concluiu o texto afirmando que a carioca se tornara a intérprete “mais moderna, de concepções mais avançadas” em todo o Brasil.
Profundo conhecedor do jazz, Cardoso não engolia “gêneros menores”, como o rock. Em 1964, analisou para Globo o LP Beatlemania, com She Loves YouI Want to Hold Your Hand e outros hits de John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr. “Os quatro rapazes possuem na verdade um não sei quê, uma alegria pura e juvenil, diferente de tudo que já ouvimos em matéria de submúsica”, avaliou. “Os Beatles vão passar depressa. Dentro de seis meses, estarão mais superados que o chá-chá-chá e o bambolê.”
Ainda na década de 60, Leny, o cantor Pery Ribeiro e o conjunto Bossa Três estouraram em Copacabana com o show Gemini V, que originou um disco ao vivo. Dirigido por Ronaldo Bôscoli e Luiz Carlos Miele, o espetáculo seguiu para a Cidade do México. Fez uma temporada tão exitosa que, em 1966, Leny resolveu morar lá. A trajetória internacional da cantora, porém, começara anos antes, numa turnê de vinte dias por Buenos Aires. A artista só retornaria do México em 1972, deixando para trás uma legião de tietes, que a apelidaram de Deusa. Entre 1994 e 2002, viveu outra vez fora do Brasil, agora nos Estados Unidos. “Arranho um inglês legal. Mas, no espanhol, me sinto doutora. Falo, leio, traduzo. Eu, inclusive, beijo muito bem em espanhol. Pode conferir.”

Intersecção
samba e o samba-canção atravessavam uma fase de transformações em 1958, quando Leny Andrade aportou no Beco das Garrafas. Para os defensores das mudanças, os dois ritmos genuinamente nacionais experimentavam uma oportuna modernização. Para os que se posicionavam contra o processo, ambos os estilos amargavam uma grave deturpação, que colocava em xeque a integridade cultural do país. No meio do fogo cruzado, encontrava-se o jazz.
Jovens instrumentistas e cantores, que se apresentavam principalmente em nightclubs de Copacabana, buscavam tornar o samba e o samba-canção mais permeáveis à dissonância harmônica e às improvisações melódicas, elementos característicos do gênero norte-americano. Ou melhor: pretendiam abrir, durante a execução das músicas, brechas maiores para a criatividade e a demonstração de aptidões técnicas.
O fenômeno já se insinuava na década de 40, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. Filmes, publicações e lps dos Estados Unidos adentravam o Brasil com mais facilidade, graças à aliança entre os governos de Eurico Gaspar Dutra e Harry Truman. Nas rádios, sambas, choros e baiões perdiam espaço para “composições ianques”. Grupos vocais, como Os Cariocas, mimetizavam conjuntos estrangeiros, a exemplo dos Pied Pipers, e lojas de discos sediavam debates acalorados de intelectuais, músicos e jornalistas sobre as novidades provenientes da América. Em tal contexto, dois cantores de renome – Dick Farney e Lúcio Alves – se destacavam pelos flertes com o jazz.
Foi ao longo dos anos 50 e 60, porém, que as experimentações ganharam corpo. Havia quem tocasse sucessos do jazz em ritmo de samba e quem interpretasse sambas ou sambas-canções com levada jazzística, produzindo um híbrido que recebeu diversos nomes: jazzsamba, samblues, sambop e sambajazz. Entre os artistas que aderiram à fusão, sobressaíam Johnny Alf, Moacir Santos, João Donato, Sergio Mendes, Paulo Moura, Milton Banana, Cesar Camargo Mariano, Airto Moreira e Luiz Carlos Vinhas, além de conjuntos instrumentais, como o Tamba Trio. O movimento da bossa nova, que também propunha a intersecção do samba com o jazz, eclodiu e cresceu nesse período.
Se contaminava os músicos, o vírus da revolução afetava igualmente os cantores, que procuravam outros tipos de dicção. Nasceram, assim, os intérpretes menos expansivos e dramáticos, que abdicavam do vozeirão para se expressar de modo mais intimista e coloquial. Surgiram, ainda, os adeptos do scat singing.
Desde que se profissionalizou, Leny deixou claro de que lado estava na disputa entre a tradição e a ruptura. “Sá bá pei bou bei dou bep dap bei dou dau!/Eu mostrei para você como é o bop/E você já esqueceu tudo que eu fiz/Tem mania de cantar samba quadrado/E é por isso que me faz tão infeliz”, protestava na música Sambop, de Durval Ferreira e Maurício Einhorn, que lançou em 1960. Ninguém estranhou, portanto, quando o repertório da cantora passou a incluir composições da bossa nova.
Diferentemente do que se possa imaginar, Leny não abraçou o sambajazz com plena consciência de que se aproximava do ritmo norte-americano. “Em 1959, escutei Dolores Duran interpretar no rádio um dos clássicos dela, Fim de Caso. Que formidável aquilo! Dolores metia, no meio da canção, um bá bum bei bá rum bá que me enlouqueceu. Era algo completamente inusitado para mim. Eu não conhecia quase nada de jazz naquele tempo.” Mas Dolores conhecia o suficiente. Cantava em português, francês, alemão, italiano, espanhol e, claro, inglês. Como apreciava standards do jazz, se transformara numa exímia scat singer.
“Pedi para papai comprar o disco de Dolores.” Mal reproduziu Fim de Caso no piano, Leny percebeu que a intérprete se desviara da melodia original e compusera outra vocalmente quando entoou o tal bá bum bei bá rum bá. “Resolvi que iria fazer o mesmo com as músicas de que gostava.” Começou a improvisar já nos shows da boate Baccarat. Correu, então, o buchicho de que Dolores tivera uma filha precocemente e de que a garota exibia o talento da mãe.
Logo que trocou a Baccarat pelo Bottles Bar para dividir o palco com o grupo de Sergio Mendes, Leny soube que precisaria cantar jazz. Reza a lenda que se travou a seguinte conversa entre o pianista e a crooner:
– Jazz?! Não canto jazz!
– Você pensa que não canta – rebateu Mendes. – Quem improvisa canta jazz.
– Então jazz é isso?
– Claro! Vou trazer uns discos da Ella para você ouvir.
– Ela quem?
O músico cumpriu a promessa e lhe emprestou não somente álbuns de Ella Fitzgerald como de Sarah Vaughan e Carmen McRae.

Laxantes
cantor e trompetista Louis Armstrong, de Nova Orleans, é considerado o pai do scat singing. Ele contava que, em 1926, enquanto gravava Heebie Jeebies, deixou cair o papel com a letra da música. Para não interromper a gravação, improvisou uma melodia sem palavras inteligíveis e acabou agradando o Hot Five, conjunto que o acompanhava. A partir daí, converteu o procedimento em marca registrada e o popularizou. Outros intérpretes já haviam arriscado improvisos vocais antes de Armstrong – caso de Gene Greene, Al Jolson, Leo Watson e Cliff Edwards. Ninguém, entretanto, os realizou de maneira tão recorrente nem os encarou como elementos prioritários das canções, em vez de meros adereços.
O substantivo scat pode significar fezes ou excremento. O termo scat sing-ing remeteria, assim, à expressão “falar merda” em português. Um scat singer “canta merda” no sentido de que pronuncia uma miríade de sons incompreensíveis. Por coincidência ou não, Armstrong nutria certo fascínio pela escatologia. Num artigo sobre o trompetista, o professor de literatura comparada Brent Hayes Edwards lembra que Satchmo – apelido do músico – costumava apregoar os poderes curativos de alguns laxantes à base de ervas e se preocupava obsessivamente com o próprio trânsito intestinal ou o de amigos e parentes. Não bastasse, cultivava o hábito de remeter cartões natalinos pouco ortodoxos, em que aparecia risonho, sentado no vaso sanitário e de calça arriada. Logo abaixo da foto, lia-se o “lema de Satchmo”: “Deixe tudo para trás.”
Outros estudiosos ressaltam o fato de o “idioma inventado” por Armstrong absorver a sonoridade do linguajar que os negros adotavam em grandes cidades dos Estados Unidos. Os improvisos do trompetista refletiriam, portanto, mais do que as experiências dele. Seriam também o eco de vozes coletivas.
A canção popular brasileira sempre incorporou expressões desprovidas de significado. Basta recordar o chica chica bum chic de Carmen Miranda, o bim bom bim bim bom de João Gilberto, o shimbalaiê de Maria Gadú ou o tchê tchê rê rê tchê tchê de Gusttavo Lima. No livro Alta Ajuda, o ensaísta Francisco Bosco afirma que expressões dessa natureza despontam quando “a linguagem verbal não se aguenta e deseja ser música, deseja livrar-se do fardo de representar”. Não se trata, contudo, de improviso vocal, porque os termos esdrúxulos fazem parte das letras. Quando ataca de Taj Mahal, Jorge Ben Jor nunca se abstém de dizer tetê teteretê tê. João Bosco tampouco abdica do lê lê lê lu laio li lon toda vez que apresenta Papel Machê.
No Brasil, o improviso mais usual é aquele em que o cantor vai concebendo uma letra à medida que a canta. O repente, o samba de breque, o pagode e as batalhas de rap preveem tal artifício. Já o scat singing se revela, hoje, bem menos comum. Floresceu justamente nas décadas de 50 e 60, com Leny e Dolores, mas também Johnny Alf e Miltinho, que se notabilizou pela comicidade de certas improvisações. Um exemplo: em 1958, o carioca participava do grupo Milionários do Ritmo quando gravou um medley que incluía Tea for Two, clássico do jazz. No final da música, inseriu imitações do Pato Donald e do Pica-Pau.

Tarzan e Hulk
cantora Lívia Nestrovski analisou os primeiros oito anos da trajetória profissional de Leny Andrade com o intuito de traçar um panorama do scat singing nacional. O estudo lhe rendeu o título de mestre pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, a Unirio. Num trecho de sua dissertação acadêmica, Nestrovski lembra que, em 1960, Leny se proclamou “um músico que canta”. Não disse “musicista”, como seria de se esperar para uma mulher daquele tempo. Falou “músico”, no masculino. Sob a ótica da pesquisadora, a declaração evidencia que Leny, consciente ou inconscientemente, desejava se colocar em pé de igualdade tanto com os instrumentistas quanto com os homens. Afinal, nos meios jazzísticos que frequentava, a desproporção entre os gêneros reinava e a maioria dos músicos julgava-se melhor que os cantores. Muitos até se negavam a acompanhar os vocalistas, que tachavam pejorativamente de “canários”.
Dona do próprio nariz desde a juventude, Leny se mostrou “empoderada” bem antes de o adjetivo virar moda. Casou-se uma única vez, com um artista plástico madrilenho, e se separou cinco anos depois. Ela mesma quis o divórcio. “Meu marido, um ariano impulsivo que esculpia cristais, se imaginava o máximo. Era o Tarzan e o Hulk simultaneamente. Trombeteava que conseguiria me comer todos os dias e que jamais ficaria broxa. Que não vivia sem meu cheiro. ‘Então me cheire e pare de cheirar o resto’”, contou à jornalista Regina Ribas, que escreveu o livro Alma Mía, sobre a intérprete. O envolvimento do madrilenho com drogas encerrou uma união que Leny classifica como “bastante feliz”.
“Hoje tenho alergia de casamento. Não gosto de dar satisfação para ninguém. Nunca deixei que homem nenhum atrapalhasse o meu rumo, a minha profissão”, me disse no Retiro dos Artistas. “Como boa aquariana, jamais me curvei em excesso às regras sociais. A liberdade, inclusive a sexual, é o tesouro mais precioso do ser humano.”
Em nome da carreira, a cantora preferiu abrir mão da maternidade. “Desde os 15 anos, avisava aos meus pais: ‘Não contem com filhinho meu, não.’ Achei melhor me dedicar integralmente à música e não me arrependo. Filho aporrinha demais a gente. Me sinto realizadíssima com as minhas escolhas.”
Por tudo o que fez, Leny poderia levantar a bandeira do feminismo. Mas não levanta. “Odeio esse negócio de que mulheres e homens são iguais. Bobagem! Homem é homem e mulher é mulher. Os dois devem caminhar juntos e se respeitar, não se igualar.” Sem qualquer embaraço, afirmou desconfiar de mulheres. “Falsas, maledicentes… Convém estar vigilante perto delas. Homens me inspiram mais segurança.” Adverti que, provavelmente, as feministas desaprovariam tal opinião. “Não me incomodo com o que pensam de mim”, disparou.
Também não demonstrou pudor em se declarar mulata, palavra que militantes da causa negra julgam depreciativa por derivar de mula. “Sou mulata, sim. Qual o problema? Como mamãe, tenho a mesma cor da Elizeth Cardoso”, comparou, referindo-se à intérprete que gravou Canção do Amor Demais, um dos discos inaugurais da bossa nova.

Ravióli
E
m maio de 2016, enquanto subia no palco do Birdland, o clube norte-americano onde cantaria com o Roni Ben-Hur Trio, Leny Andrade tropeçou, caiu e machucou os joelhos. “Voei, menino! Zuuum! Do palco até a primeira mesa da plateia. As luzes se acenderam e os garçons vieram me socorrer. Um bafafá!” Desconcertada, pediu desculpas, aprumou-se e levou o espetáculo adiante.
Oito meses depois, no apartamento de Botafogo em que morava sozinha, sofreu uma vertigem e outro tombo. Novas quedas domésticas se sucederam – “umas seis”. Na mais séria, bateu a cabeça e feriu o rosto. Foi para o hospital. Uma bateria de exames indicou que os acidentes em casa resultaram de pequenas isquemias no cérebro. O sangue deixou de oxigenar partes do órgão. A partir de então, a intérprete perdeu muito da autonomia que sempre esbanjou. Locomove-se devagar, só se apresenta sentada, não toma banho sem ajuda e manifesta lapsos de memória. Daí a necessidade de cuidadoras. Em consequência, as despesas cresceram e, mensalmente, passaram a beirar os 10 mil reais – quantia alta para a renda de Leny, que se aposentou pela Previdência Social.
Embora ainda trabalhe, a cantora já não dispõe de uma agenda tão cheia. “Ganhei dinheiro à beça, mas não enriqueci. Houve uma época em que me pagavam 15 mil dólares apenas para aparecer na tevê. Imagina? A questão é que sou ótima gastadora. Comprei joias, roupas, sapatos, carros…” Não se preocupou, no entanto, em adquirir um imóvel. “Vou deixar para quem?”
Com a intenção de equilibrar o orçamento, decidiu pleitear uma vaga no Retiro dos Artistas. Ali deverá viver de graça até o fim do semestre. Depois pagará um aluguel de 1 mil reais. A instituição, que soma trinta funcionários e sobrevive de doações, oferece fisioterapia, serviço de enfermagem e cinco refeições diárias. Não cobra nada dos moradores, mas aceita que contribuam financeiramente quando podem. “Sou feliz aqui. Venero minhas cuidadoras, e os amigos me visitam ou ligam bastante. Hoje é que as coisas estão esquisitas… O telefone emudeceu!”
Desde que se mudou, a intérprete frequenta menos “o escritório”, como gosta de chamar o restaurante La Fiorentina, no bairro do Leme. Fundado em 1957, o estabelecimento costuma dar nomes de artistas para os pratos. O dela é um ravióli de espinafre e ricota, com molho branco e sálvia, que custa 50 reais. “Nunca o experimentei. Não tenho nenhuma curiosidade de comer a Leny, mas meus fãs têm.”
(revista piauí)

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