Édipo

O célebre personagem da tragédia grega incorpora no ator Eucir de Souza e diz: “O livre-arbítrio é uma ilusão”

Em um tempo bastante longínquo, Édipo governava Tebas. Conquistou o poder por merecimento, após livrar a cidade-estado grega de uma sangrenta maldição. A façanha também lhe permitiu se casar com Jocasta, viúva de Laio, antigo monarca tebano. Édipo, porém, não morou sempre no reino que comandava. Criou-se em outra cidade-estado, Corinto, de onde saiu assim que ficou adulto. Foi justamente quando partia de lá e se dirigia para Tebas que vivenciou um episódio terrível. Encontrou uma caravana na estrada, se desentendeu com os homens que a integravam e matou cinco deles. Muitos anos depois, já envergando a coroa real, descobriu a verdade insuportável: uma das pessoas que assassinara chamava-se Laio. Era o primeiro marido de Jocasta, com quem tivera um menino, abandonado num bosque pelo casal tão logo nasceu. Um pastor achou a criança e a entregou ao soberano de Corinto, que a adotou e lhe deu o nome de Édipo. Horrorizado por saber-se filho da mulher que desposara e do homem que eliminara, o rei de Tebas deixou o trono e furou os próprios olhos, cegando-se. Jocasta, igualmente desesperada, suicidou-se. 
BRAVO!: Você se considera de algum modo responsável pela tragédia que o atingiu?
Édipo:
Não, em absoluto! Sou uma vítima, um mero joguete nas mãos dos deuses. Tenho a consciência plena de que não fiz nada para merecer tanta desgraça. Julgo-me um altruísta, uma alma nobre. Todo o Olimpo é testemunha de que nunca pretendi amedrontar ou explorar ninguém. Só usei a espada em certas situações porque não havia outra alternativa. Jamais recorri à violência com júbilo. Lembro que, na juventude, escutei de um oráculo a profecia hedionda: “Matarás teu pai, desposarás tua mãe e originarás uma raça odiosa”. Àquela altura, ainda morava em Corinto. Por acreditar serem Políbio e Mérope os meus genitores, decidi me afastar imediatamente dos dois. Abdiquei de tudo – da família que imaginava minha, dos amigos queridos e de Corinto, a terra onde cresci. Guiado unicamente pelos astros, ganhei a estrada à procura de um refúgio, um lugar em que pudesse viver sem o risco de o presságio se cumprir. No entanto, ao longo do percurso, avistei a maldita caravana e… Hoje reconheço que errei em me supor capaz de lograr o destino. Quanta tolice! Quanta soberba! Homem nenhum é senhor de si.
Quer dizer que o livre-arbítrio não existe?
Existe sim, mas apenas como ilusão… Nossas escolhas não são propriamente nossas. Na realidade, atendem uma lógica pré-estabelecida e tão complexa que não vale a pena tentar decifrá-la. Comparo o universo com um imenso tapete colorido em que cada indivíduo representa uma cor. Eu desempenho o papel do azul. Tu, o do vermelho. Ele, o do amarelo. Por mais que deseje fazer as vezes do lilás ou do verde, não conseguirei. Estou preso à condição de azul. Se virasse outra cor, descaracterizaria o todo e trairia a função que os deuses me reservaram no tapete. Ou melhor: que um dos deuses me reservou. O infortúnio que me engoliu decorre de uma maldição lançada sobre minha linhagem e acatada por Apolo. Bem antes de se casar com Jocasta, Laio se apaixonou pelo príncipe da Frígia e o raptou. O gesto tresloucado acabou resultando na morte do jovem. Seus pais, furiosos, invocaram Apolo, deus da harmonia, e vaticinaram: “Se Laio gerar um filho, o rebento há de matá-lo”. Naquela época, afirmações dessa natureza possuíam força de lei. Quase não havia diferença entre as palavras e a realidade.
Apolo, então, usou você para fazer justiça à família do moço raptado?
É o que parece. A constatação, entretanto, não me reconforta. Pelo contrário: revolta-me! Embora compreenda as razões de Apolo, não as aceito. Sob minha ótica, a atitude dele soa tirânica, estapafúrdia, iníqua. Destruir-me para compensar o deslize de outro?! Não, nunca me conformarei com tamanho disparate.
Enquanto desconhecia o real status de Laio e Jocasta, você não sofria. A dor só eclodiu quando a identidade de ambos veio à tona. Seria mais adequado permanecer ignorante?
Concordo que paguei um preço excessivo por me encarar sem máscaras no espelho. Ainda assim, não trocaria o desnudamento pelo autoengano. De que adiantaria viver como um ingênuo? “Conhece-te a ti próprio”, ensinam os oráculos do mesmo Apolo que me puniu. Pensando agora no que se passou, percebo o quanto negligenciei tal conselho. Fugir de Corinto significou fugir do que não suportava enxergar em mim. “Tu és aquele que arruinará teus ancestrais e descendentes”, avisaram-me lá atrás. Fraco e arrogante, não tolerei o peso de uma revelação tão nefasta e preferi crer que poderia modificá-la: “Eu, um assassino? Um incestuoso?” Por isso, depois do ocorrido, furei os olhos. Talvez, deixando de ver o mundo de fora, preste mais atenção no de dentro.
Você já ouviu falar de Sigmund Freud?
Já. Ele desenvolveu uma teoria baseada em minha história.
Exato. Para Freud, de  certa maneira, todos somos como você: desejamos matar o pai e nos ligar eroticamente à mãe.
Bem, devo admitir que não estou em condições de questioná-lo… 
 
ONDE ENCONTRAR ÉDIPO
Na peça Édipo, de Sófocles. Adaptação e direção de Elias Andreato. Com Eucir de Souza, Tania Bondezan e outros. Teatro Eva Herz (av. Paulista, 2073, Conjunto Nacional, Cerqueira César, São Paulo, SP, tel. 0++/11/3170-4059).  Até 21/6.

1 Comentário para “Édipo”

  1. Bianca Goulart disse:

    Sensacional, Armando!

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