terça-feira, 1 de setembro de 2020

Muita coisa!

A pandemia e a saúde mental nas favelas

E
la se chama Preta. Tem os cabelos bem crespos, olhos arregalados e lábios tão vermelhos que parecem sangrar. Usa bermuda com desenhos psicodélicos, camisa de mangas curtas e uma gravata-borboleta azul, que lhe confere um ar mais burlesco do que solene. É uma boneca de pano e a principal companhia de Diene Carvalho Silva desde que o novo coronavírus pôs o Brasil em distanciamento social. Na segunda quinzena de março, a fotógrafa e produtora cultural de 32 anos decidiu atender os conselhos das autoridades sanitárias e se isolou. Por sofrer de asma e de “tudo com ite” (“sinusite, rinite…”), temia não resistir caso pegasse a Covid-19. Como acabara de entregar o imóvel onde morava de aluguel, pediu guarida para um conhecido.
Ao longo de um mês e pouco, a jovem e o anfitrião dividiram uma quitinete sem janelas na Favela do Guarda, em Del Castilho, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Depois, a moça se mudou para os fundos de uma ONG, a Mulheres de Peito e Cor, que auxilia pacientes com câncer de mama, sobretudo negras. Jacqueline Faria, coordenadora da instituição e uma amiga recente, lhe permitiu ficar ali, de graça. Localizada no Engenho Novo, outro bairro da Zona Norte carioca, a Mulheres de Peito e Cor parou de funcionar na fase mais rigorosa da quarentena. Assim, a hóspede pôde ocupar sozinha a edícula da ONG. Com sala, dois quartos, cozinha e banheiro, a casa não dispunha de televisão, e o wi-fi que a servia oscilava bastante.
Entre o fim de abril e o princípio de julho, a fotógrafa só deixava o modesto refúgio para compras básicas. Passava as horas lendo, ouvindo música, praticando ioga, cuidando das refeições e interagindo nas mídias sociais, quando o sinal da internet colaborava. Não raro, conversava com Preta. A jovem ganhara a bonequinha negra no começo de março e logo resolveu tratá-la pelo apelido que ela própria carrega desde a infância. “Sempre me reconheci mais como Preta do que como Diene”, contou numa das dezenas de ocasiões em que falou com a piauí por celular ou WhatsApp. “Tu, inclusive, pode me chamar de Preta. Vou gostar.”
Toda vez que se preparava para dormir, Preta, a fotógrafa, aconchegava Preta, a boneca, no leito. As duas compartilhavam o travesseiro e o cobertor. Frequentemente, de madrugada, Preta acordava e verificava se Preta continuava por perto. Vai que a boneca tivesse despencado da cama… Preta também criou o hábito de desabafar com a parceira e de lhe relatar tudo o que fizera durante o dia. “Soa um tanto bobo, mas a presença dela me tranquilizava. Eu não queria sobrecarregar os outros quando a barra pesava, entende? Melhor choramingar com a Preta do que perturbar alguém pelo telefone.” De certa maneira, a boneca desempenhou para a moça o mesmo papel que a bola de vôlei teve para o personagem de Tom Hanks no filme Náufrago.
Enquanto vivenciava o isolamento, a fotógrafa amargou períodos de agonia, desânimo e hesitação, mas nada que não conseguisse tourear. Em geral, dormia bem, acordava disposta e conservava o otimismo. Mesmo a falta de dinheiro não a desesperava. “Fiquei praticamente sem trabalho e quase não tinha poupança. Em compensação, gastava pouquíssimo. O mínimo me bastava e confortava.” Foi tudo muito diferente de outra quarentena, bem mais penosa, que se deu há quatro anos e acabou semeando na jovem o desejo de organizar agora uma rede digital de assistência psicológica, o Cada Trauma Importa.

Naquela aterradora noite de 2016, Preta caminhava pela Presidente Vargas, célebre avenida que liga a Zona Norte à região central do Rio. “Não me recordo do mês exato. Julho? Talvez agosto? Desculpe… Esqueci boa parte do que rolou na época. De vez em quando, ainda me esforço para lembrar os detalhes, mas…” Ela passara a tarde na farmácia de Copacabana onde gerenciava o setor de entregas. Mal terminou o expediente, pegou o ônibus e se dirigiu para a faculdade em que cursava engenharia de petróleo. Estava no último dos dez semestres.
“O campus fica em frente à avenida. Depois que saltei da condução, andei até a faixa de pedestres e, enquanto cruzava a Presidente Vargas, travei. Sem qualquer motivo aparente, não conseguia mais me mexer, e caí num choro incontrolável. Meu coração disparou, minha cabeça entrou em parafuso, e um medo imenso de morrer tomou conta de mim. Uma colega que me acompanhava percebeu a situação e me tirou dali antes que o sinal abrisse.”
Nenhum pensamento sombrio ou episódio desagradável importunara Preta naquele dia até o congelamento repentino. Ela tampouco se considerava uma pessoa especialmente melancólica, angustiada ou medrosa. Pelo contrário: volta e meia, pontuava as frases com um gargalhar tão simpático que diversos amigos a chamavam de Sorriso. A risada solta, aliás, a caracteriza ainda hoje, assim como os penteados afro e a expressão “muita coisa”, que emprega quando deseja manifestar apreço por algo. Preta, curtiu o filme? “Sim, muita coisa!”
O costumeiro equilíbrio psíquico da estudante se harmonizava com o corpo vigoroso de quem lutava jiu-jítsu e muay thai, o boxe tailandês. Para manter o peso de 55 kg, bem distribuído em 1,63 metro de altura, a moça também adotava uma dieta balanceada e, embora comesse de tudo, dificilmente se excedia no garfo.
Nascida em Cururupu, cidadezinha do litoral maranhense, Preta é filha de um pequeno comerciante com uma assistente social. Cresceu ali mesmo, rodeada de zelo e na companhia de três irmãos, todos homens. “Meus pais não nadavam em dinheiro, mas nunca nos deixaram passar necessidade. Diziam: ‘Vejam à vontade os desenhos animados de vocês, nem que a gente tenha de pagar 200 contos de energia elétrica.’ Bastante protetores, não permitiam que fôssemos sozinhos até a esquina ou que brincássemos diante de casa sem a presença deles. Valorizavam demais os nossos estudos.”
Preta, que só frequentava colégios públicos, acabou virando aluna exemplar. “Eu gostava principalmente das disciplinas de exatas.” Ao completar 17 anos, partiu de Cururupu para concluir o ensino médio em São Luís, onde morou com um tio. Depois, pensou em ingressar no Corpo de Bombeiros e começou a formação de oficial. Logo desistiu da ideia. Voltou à terra natal e prestou vestibular para licenciatura em física, curso oferecido pela Universidade Estadual do Maranhão na própria cidadezinha. Conquistou a vaga, fez quatro semestres e, novamente, mudou de planos. “Eu me sentia confusa. Era bem garota e não sabia direito que profissão seguir. Quando me decepcionei com a física, descobri a engenharia de petróleo e pirei: ‘Muita coisa! Vou arriscar.’” A opção lhe exigiria sair outra vez de Cururupu. “Resolvi me graduar por uma faculdade particular do Rio, que se destacava na área.” Arranjou um financiamento estudantil e, em 2011, chegou à capital fluminense. Tinha 22 anos.
De início, rachou apartamento com uma conterrânea em Laranjeiras, na abastada Zona Sul. Mais tarde, conheceu um atendente de livraria, se casou e migrou para o Irajá, bairro tradicional da Zona Norte. Na esperança de engordar o salário que a farmácia de Copacabana lhe pagava, montou uma loja virtual e passou a revender roupas femininas, que comprava dos fornecedores com desconto.
Tudo, portanto, parecia correr às mil maravilhas quando Preta estagnou em plena Avenida Presidente Vargas. “Não sei como consegui voltar para casa naquela noite, mas voltei. De manhã, continuava péssima. Um cansaço… Uma aflição… Um desejo permanente de chorar… Onde estava a Preta de sempre? Eu não tinha forças nem para erguer uma colher e levar comida à boca. Só queria me deitar em silêncio, de preferência no escuro. Perdi totalmente a noção do tempo. Meu marido, alarmado, perguntava: ‘Amor, o que te deixou assim?’ Ele repetia a pergunta sem parar e não ouvia resposta nenhuma.”

A misteriosa tempestade que fustigou Preta demorou um ano e meio para desaparecer por completo. Em certos momentos, amainava um pouco, mas logo recrudescia de novo. Enquanto enfrentava o vendaval, a moça peregrinou por consultórios psiquiátricos e psicológicos, recebeu o diagnóstico de síndrome do pânico e depressão, tomou remédios, emagreceu 15 kg, largou a faculdade, abdicou da loja virtual e do emprego, rompeu o casamento e tentou o suicídio quatro vezes. Não bastasse, afastou-se de quase todo o convívio social durante sete meses. “Me fechei dentro de casa, absolutamente solitária, e mergulhei em mim. Precisava me investigar para ver se achava uma resposta à pergunta do meu ex-marido: O que, afinal, havia me deixado tão frágil?”
Depois de sair do confinamento, Preta ainda necessitou de um tempo para se aprumar. Quando sentiu que a tormenta se dissipava, teve vontade de dividir com outros jovens os aprendizados da crise. “Pensei, sobretudo, no pessoal sem grana. Quantos estariam passando pelo que passei? Quantos saberiam pedir socorro? Quantos encontrariam alguém que os escutasse?” Ela criou, então, o Maktüb Experience. O projeto voluntário, que surgiu em 2018, leva oficinas de grafite, apresentações de rap e batalhas de MCs à garotada de quatro favelas da Zona Norte: Acari, Para-Pedro, Muquiço e Complexo do Chapadão. São atividades esporádicas e gratuitas, com poucos participantes, que terminam invariavelmente num bate-papo – ou melhor: numa terapia de grupo muito informal. Sentados em roda, os presentes relatam vivências dolorosas e trocam ideias sobre os próprios sentimentos. Preta não só conduz a conversa como relembra, de modo espirituoso, sem dramas, o seu calvário e as lições que extraiu dele.
Por causa do Maktüb, a moça tomou gosto pela arte e descobriu aptidões suficientes para desbravar outros campos de trabalho. Primeiro, tornou-se produtora cultural e começou a organizar eventos de hip-hop. Há um ano, se matriculou num curso de fotografia, o que lhe abriu a possibilidade de realizar ensaios visuais remunerados para ONGs.
Mal a pandemia alcançou o Rio, Preta interrompeu as ações do Maktüb e tentou encontrar um jeito de agir a distância. Foi assim que inaugurou um novo braço do projeto, justamente o Cada Trauma Importa. Com ajuda das redes sociais, buscou terapeutas que topassem atender de graça quem estivesse sofrendo na quarentena. Adolescentes, jovens adultos, cinquentões ou idosos, todos poderiam receber assistência. As sessões, sempre individuais, aconteceriam pelo Zoom, o aplicativo de videoconferências, entre uma e três vezes por semana. Iriam durar, no mínimo, quarenta minutos e, no máximo, noventa. Onze profissionais de diferentes linhas aceitaram o desafio.
A fotógrafa saiu, em seguida, à caça dos pacientes. “Cada Trauma Importa. Juntos somos mais fortes”, escreveu na abertura da mensagem que disparou em abril, pelo Facebook e WhatsApp, para moradores das quatro favelas onde o Maktüb atua e de algumas outras. Com uma linguagem simples, o anúncio explicava a iniciativa. Um mês depois, a moça contabilizou 170 interessados e encerrou as inscrições.

A FILHA DE OXUM
Por que resolvi procurar o Cada Trauma Importa? Porque meu marido estava me deixando tão maluca que precisei expulsá-lo de casa. Tomar uma atitude dessas nunca é fácil. Desestabiliza qualquer um. Se você tiver paciência, posso contar em detalhes o que aconteceu. Me chamo Ana Lúcia da Silva Macharethe e, apesar do sobrenome italiano, não sou católica, não. Sou dos terreiros, umbandista com a graça de Deus e dos orixás. Acredito demais em Oxum, que me protege desde criança. Mesmo assim, costumo acender velas para as almas na Igreja de Nossa Senhora das Dores. Vou toda segunda-feira, faça chuva ou faça sol. Quando a pandemia estourou, a igreja e o terreiro fecharam de repente. Me assustei. Se até os lugares sagrados paravam de funcionar, significava que a chapa estava realmente esquentando. Logo depois, perdi o emprego. Não me restou outra saída além de ficar quietinha no meu canto, em isolamento.
Eu trabalhava como faxineira para um homem que conserta joias. Ganhava 1,4 mil por mês. Era pouco, mas quebrava o galho. Agora não ganho nada. O patrão explicou que as joalherias já não mandavam nem um anel para o conserto. ‘Deu ruim, Ana. Não consigo mais te pagar’, me disse, na lata. Adiantava eu discutir?
Nasci perto do Rio, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e me mudei para o Morro do Turano ainda mocinha. É uma favela carioca da Zona Norte, onde vivo até hoje com uma filha e uma irmã. As duas têm problemas congênitos. Taiane, minha filha, sofre de miopatia nemalínica, uma doença neuromuscular que rouba as forças do corpo. Ela não se sustenta em pé e, por isso, usa cadeira de rodas. Minha irmã, Cristiane, também sofre de alguma coisa grave. Não sabe ler nem escrever, não anda direito e se atrapalha com as tarefas mais simples. Nunca descobrimos o motivo de tantas dificuldades. Por causa das duas, presto muita atenção para o coronavírus não entrar em casa. Que Oxum nos livre de uma delas enfrentar a Covid! Tremo só de imaginar. Quando vou à vendinha ou à farmácia, boto a máscara e tento não esbarrar em ninguém. Depois, tiro cada peça de roupa e corro para o banho. Lavo até os cabelos.
Enquanto morava com a gente, meu marido não tomava os mesmos cuidados. Ele se levantava cedo e passava álcool em gel nas mãos, no controle remoto da tevê, no celular, nas maçanetas. Tudo certinho. Às dez, saía para trabalhar na portaria de um clube e só voltava de noite. A questão é que dificilmente voltava sóbrio. O irresponsável se metia em algum desses bares que desrespeitavam a quarentena e bebia umas cervejas, umas pingas. Eu caía de pau: “Ô, Luís, quer encher a cara? Compra a porcaria do latão e bebe dentro de casa. Não dá para você se enfiar em boteco. É perigoso. Tem risco de contaminação. Não se ligou que até os terreiros e as igrejas fecharam?” Ele resmungava sei lá o quê e, no dia seguinte, fazia igual.
Uma noite, apareceu trocando as pernas, com uns pacotes embaixo do braço. Guardou as compras no armário da cozinha, sem limpar. Eu estava vendo o RJ2, aquele jornal da Globo, e reclamei: “Olha o corona, Luís! Precisa desinfetar.” O cara se enfureceu: “Chega de assistir à Globo, Ana! Você vai acabar no hospício. Os jornalistas da Globo exageram sobre a doença. Só pensam em derrubar o presidente.” Mal escutei aquilo, tive certeza de um negócio: o Luís votou no Jair Bolsonaro. Apertou o 17! Eu já desconfiava, mas o infeliz teimava em negar. Ele sabe que votar no Bolsonaro é o mesmo que me trair. “Votou ou não votou, Luís?”, perguntei, ainda em frente da televisão. Lembro que, no segundo turno das eleições, pus um vestido branco e colei o 13 bem perto do coração. O número do Fernando Haddad, né? Fui toda bonita para o clube onde voto e, no caminho, passou um carro com dois sujeitos, que berraram: “É Bolsonaro, tia!” Pra quê? Eu me virei rapidinho e lasquei: “Vai tomar no cu!” Sou cabeça aberta. Odeio o Bolsonaro. Homofóbico, racista, bajulador da ditadura… “Responde de uma vez, Luís!” Ele finalmente confessou: “Votei, sim. E daí?” Meu Pai do Céu! “Nós somos negros, Luís. Somos da favela. Como você pôde votar naquele doido?”
Sem titubear, apanhei um par de malas e levei para o traidor. “Terminou! Arruma tuas tralhas, coloca nas malas e chispa daqui. A gente não se identifica mais. Eu me cuido, você não se cuida. Eu tenho o pensamento avançado, você raciocina como o homem das cavernas.” Nós vivíamos juntos desde 2017, se não me engano. Foi o meu terceiro casamento e provavelmente o último. Três está de bom tamanho para quem já fez 51 anos. Taiane e Tamara, a minha caçula, que não mora comigo, nasceram de outras relações. Dois namoros que não vingaram, sabe como é?
Agora percebo o óbvio: as bebedeiras do Luís também provocaram a nossa separação. Ele gostava de álcool quando nos casamos, mas não tanto. Pelo menos, assim me parecia. Talvez eu não quisesse enxergar… A situação mudou a partir do momento em que o Luís desabou na sala e bateu a cabeça. Era tarde da noite. Logo pensei em infarto. Dei uns tapinhas no rosto dele, senti o hálito e me toquei: infarto nada! Bebida! Daí em diante, tudo só piorou. Ele não aceitava a ideia de se tratar.
Tive uma infância horrível justamente porque meu pai bebia demais. Éramos oito irmãos e, muitas vezes, nos faltava comida. Também faltava roupa, faltava sapato, faltava lápis para a escola. Você deve achar que meu pai vadiava, mas não: o coitado ralava de segunda a sexta. Pintava carros e ganhava bem. Só que torrava a maior parte do dinheiro com cachaça. Precisávamos arrastá-lo do bar à força. Ele resistia, se irritava e batia na minha mãe, nos filhos, em todo mundo. Uma ocasião, nós pegamos sarampo. Eu e duas irmãs. Minha mãe resolveu preparar uma canja para a gente e comprou a galinha. Meu pai cismou com o bicho: “Está podre! Ninguém aqui sabe comprar galinha.” Catou o frango e agrediu a minha mãe. Ela tomou uma surra de galinha… Sempre que me recordo daquele tempo, choro à beça. Imaginava que fosse passado, mas me enganei. Como pude crescer e, já madura, me casar com um alcoólatra? Como pude repetir a história da minha mãe? Não bastava o que pelejei quando menina?
Separação, mais o medo de alguém querido se infectar e morrer na fila do hospital, mais o desemprego, mais a grana curta. Vai somando… Eu tenho ou não tenho razões para procurar ajuda psicológica? Infelizmente, não consegui o auxílio emergencial do Bolsonaro. Então sobrevivemos apenas com o benefício de 1 045 reais que a Taiane recebe do governo por ser cadeirante. Gastávamos 900 de aluguel, mas a dona do imóvel topou baixar para 700. Continuamos pagando a internet normalmente. Já a tevê a cabo está de graça. Os garotos do tráfico, que distribuem o sinal na comunidade, decidiram não cobrar dos moradores sem trabalho e sem o auxílio do presidente.
Faço uma sessão de terapia por semana. É maravilhoso desabafar com a terapeuta. Ela me ensinou uns exercícios de relaxamento muito bons. Eu deito na cama ou no sofá, fecho os olhos, respiro devagarzinho e levo o meu pensamento lá para o mar, lá para a mata. Um prazer, viu? Por uma hora, me esqueço do Luís, do Bolsonaro, do coronavírus e dos hospitais sem vaga.

“Aqui não tem pau para urubu sentar.” A frase enigmática martelava na cabeça de Preta durante o período em que a jovem lutou contra a depressão e a síndrome do pânico. De onde vinha? A própria jovem afirmara aquilo ou escutara de alguém? Em quais circunstâncias? E o que a expressão significava de fato? Certo dia, a moça se lembrou: um parente de Cururupu costumava dizer a sentença. “Um parente bem próximo e de pele clara”, ressalta a fotógrafa, que faz parte de uma família multirracial. O ramo paterno descende de negros. O materno, de brancos. “Eu, ainda criança, perguntava à minha mãe por que o tal parente sempre batia naquela tecla. Ela se calava ou respondia com evasivas.” Sozinha, a menina acabou desvendando o mistério. “Urubus são negros, correto? Meu pai é negro. Portanto…” Tratava-se de uma declaração racista, talvez derivada do anedotário popular. “Com a frase, o parente branco pretendia avisar que não aceitava receber visitas de meu pai, o ‘urubu’, o negro.”
Ocorre que Preta se assemelha muito à família do lado paterno. “Sou tão negra quanto meu pai. Se o parente branco não gostava de ‘urubus’, então me rejeitava também.” Quando chegou à conclusão, a garota se revoltou, mas guardou o sentimento para si. “Nós não merecíamos tamanho desprezo. Ninguém merece…”, lamenta agora. “Meu pai é um batalhador. Na infância, perdeu a mãe e sofreu um acidente que o deixou manco. Como não pôde frequentar a escola, nunca se alfabetizou. Em compensação, aprendeu os cálculos básicos e se tornou um negociante de primeira. Superou tantos obstáculos para, depois de casado, aturar discriminação dos próprios familiares?”
Fora do círculo doméstico, e ainda no lugarejo natal, Preta se defrontou com manifestações mais abertamente racistas. Em geral, não reagia. “Você tem o nariz que o boi pisou”, zombavam uns. “Lá vai a menina do cabelo duro, a menina do cabelo seco, a menina com palha de aço no lugar do cabelo”, atiçavam outros. Havia também os que indagavam: “Você é mesmo filha de uma branca? Certeza de que não te encontraram na lixeira?”
Com os anos, inconscientemente, Preta criou uma estratégia para se desviar das humilhações ou suportá-las. Esmerou-se em distribuir simpatia, apagar da memória as experiências mais traumáticas e reprimir as dores do preconceito. Virou, assim, o protótipo da mulher alegre, inabalável e equilibrada. “Acreditei tanto naquela personagem que nem cogitava pedir colo quando algo me incomodava. Receava que, se pedisse, todo mundo desconfiaria: ‘Tu, a nossa fortaleza, querendo ajuda?’” Preta simplesmente passava por cima das contrariedades, sem digeri-las, e seguia adiante. Julgava esquecer o que, no fundo, jamais esquecia. Às vezes, até dava bandeira de que as coisas não corriam muito bem. Evitava ir de biquíni às praias do Rio ou se olhar no espelho, por exemplo. Considerava-se feia e sentia vergonha do corpo, apesar de não o admitir. Escondia-se de si mesma quase sem perceber.
O Rio, aliás, a amedrontava. Ela nunca havia conhecido uma cidade tão grande antes de desembarcar no Aeroporto Santos Dumont. Vivera em São Luís e passeara por Belém, mas nenhuma das duas capitais se comparava com a fluminense. “Os edifícios gigantes de Copacabana, as lojas chiques de Ipanema, os congestionamentos, a infinidade de favelas, o Cristo Redentor, os turistas estrangeiros, os bares lotados, tudo me assustava. O prédio mais alto de Cururupu tinha só três andares. Imagine…” Assim que pisou na metrópole, a jovem flagrou uma violenta discussão de trânsito. “Peguei um ônibus perto do Santos Dumont e, enquanto percorria o Centro, vi pela janela uma cena espantosa. Um fulano desceu do carro e, não sei por quê, socou o motorista de uma perua. Gelei: ‘Ave, Maria! Onde vim parar?’”
Hoje Preta supõe que o acúmulo de mágoas, raivas, tensões e complexos mal trabalhados desencadeou a paralisia na Avenida Presidente Vargas e a via-crúcis que a sucedeu. “Precisei implodir para finalmente encarar os meus fantasmas e me libertar.”

A fotógrafa morre de rir quando se lembra da primeira vez que enfrentou uma sessão de terapia. “Agora parece engraçado, mas me senti péssima na época. Ou melhor: me senti ridícula.” Logo depois de estancar na avenida, Preta consultou um psiquiatra, que a medicou e lhe recomendou tratamento psicológico. A moça aceitou o conselho e acabou diante de uma terapeuta que quase não abria a boca. “Ela perguntou o meu nome. Respondi. Ela sorriu e ficou quieta. Aguardei a pergunta seguinte. Ela continuou muda. Eu não tinha ideia de como funcionava uma sessão. Por isso, entrei na onda e me calei também. Às tantas, a mulher quebrou o gelo: ‘Você está legal?’ Eu não estava, claro, mas respondi no piloto automático: ‘Estou. E tu?’ Ela sorriu de novo, sem dizer uma palavra. Depois de uns quarenta minutos em silêncio, me pediu para voltar dentro de uma semana. Voltei, e rolou o mesmíssimo esquema. ‘Gente, terapia é sempre assim?’, pensei. ‘Vou passar um ano aqui e não vai acontecer nada?’”
Em vez de ir à terceira consulta, Preta resolveu buscar outro psicólogo. “Felizmente, descobri uma profissional bem diferente da anterior – luminosa, acolhedora e… negra!” Foi a partir daí que a fotógrafa conseguiu desvelar as aflições encobertas do passado e cuidar das feridas provocadas pelo racismo. “Uma terapeuta negra fez todo o sentido para mim. Muita coisa! Ela demonstrou absoluta empatia pelo meu sofrimento. Afinal, sabia por experiência própria qual o peso da negritude num país como o Brasil. Não estou afirmando que os psicólogos brancos sejam menos empáticos. Só acho que veem a questão sob uma ótica excessivamente abstrata. Nenhum deles vivenciou na carne a injustiça da discriminação racial.”
Enquanto procurava se reerguer, Preta contou ainda com a escuta generosa e surpreendente do “Seu Roberto”. Recém-separada do marido, a jovem morava na parte superior de um sobrado em Honório Gurgel, bairro da Zona Norte. Seu Roberto, o proprietário do imóvel, habitava a inferior. Era um aposentado de 60 e tantos anos, branco, que se compadeceu da inquilina deprimida. Todas as tardes, mesmo naqueles sete meses em que se isolou dentro de casa, a moça descia para conversar com o senhorio. “Falávamos sobre nossas vidas por uma ou duas horas. Ele ouvia as minhas queixas sem pressa e opinava delicadamente. Vira e mexe, recordava os perrengues que já teve. ‘Comi o pão que o Capeta amassou e sobrevivi. Tu vai superar a fase ruim também’, me encorajava. Jamais imaginei que o Seu Roberto, um cara hipersimples, pudesse ser tão sábio e afetuoso. Nossos papos me enchiam de esperança. Às vezes, o conforto está onde a gente menos espera, né?”
Como o turbilhão emocional impedia Preta de trabalhar, o senhorio a dispensou temporariamente do aluguel. Ela só retomou os pagamentos quando obteve o auxílio-doença concedido pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que lhe garantia um salário mínimo por mês.
Numa das vezes em que a jovem tentou o suicídio, Seu Roberto fez o papel de anjo da guarda. Encontrou a inquilina desacordada e a socorreu. “Não sei exatamente quem me salvou nas outras ocasiões.” Em três das quatro tentativas, a moça tomou doses cavalares de sonífero. Na última, ingeriu chumbinho, um raticida clandestino, mas bastante popular. “Sempre que reflito sobre a primeira tentativa, concluo que não desejava realmente morrer. Queria chamar a atenção, pedir ajuda, gritar para o mundo que a Mulher-Maravilha estava sofrendo.” Nas demais ocorrências, porém, Preta ansiava, sim, pela morte. Enxergava-se como “um barco sem âncora”, “um mar revolto” ou “uma carga de mil toneladas” que precisava se aliviar de si mesma.

A MÃE DO MICHAEL
Mães odeiam se separar dos filhos pequenos. Eu, pelo menos, detesto – principalmente em situações dramáticas. Calcule, então, o grau do meu tormento quando a pandemia chegou e me vi longe do Michael. No dia 13 de março, sexta-feira, mandei o garoto para a minha tia em Maricá, cidade bem próxima do Rio. Ele passaria o fim de semana por lá e logo retornaria. Só que, no dia 16, segunda, começou o zum-zum-zum sobre a Covid e achei mais seguro deixar o moleque onde estava. Dizem que a maioria das crianças infectadas fica assintomática, não é? O Michael tem 11 anos. Se pegasse o coronavírus enquanto voltava para casa, provavelmente não sentiria nada, mas poderia transmitir a doença.
Nós dois dividimos um quarto e sala no Salgueiro, o morro da Zona Norte carioca que ganhou fama por causa da escola de samba. Ocupamos o primeiro andar de uma construção com três pavimentos. Meu avô materno vive no segundo e minha mãe no último. Preferi não correr o risco de o Michael contaminar a família e paguei um preço alto: quase enlouqueci de saudade. A gente só se reencontrou em maio. Tomei coragem, segui todas as precauções e finalmente resgatei o menino. Não aguentava mais tanta distância.
Muitos me conhecem por Lil, mas meu nome é Lidiane Cristine dos Santos. Completei 30 anos em janeiro. Uma idade marcante… Quando engravidei do Michael, estava com 18. Eu namorava o pai dele e me descuidei. Namoro entre colegas de escola, sabe? Nada sério. O relacionamento terminou um pouco depois que descobri a gravidez. Por sorte, meu ex é um cara responsável e assumiu o filho. Eles convivem de boa.
O Michael, graças a Deus, nasceu com bastante saúde. A gente decidiu batizá-lo assim para homenagear o Michael Jackson e o Michael Jordan, aquele jogador de basquete. Admiro os dois há um tempão. Talvez inspirado pelo nome, o Michael – o meu Michael – se revelou uma criança incrível. Ele me estimula demais, me faz sonhar com tudo que ainda posso conquistar para orgulhá-lo. Uma vez me perguntaram: “Você seria pior sem teu garoto?” Respondi: “Não sei se pior, mas sei que não seria tão melhor.”
Em maio, logo que o Michael retornou para casa, aconteceu a tragédia com o João Pedro – o adolescente negro de 14 anos que levou um tiro de fuzil pelas costas enquanto brincava, lembra? Foi durante uma operação policial numa favela que também se chama Salgueiro. Fica pertinho do Rio, em São Gonçalo. Pensei muito na mãe do rapaz, uma professora. É sensacional gerar um filho preto, mas a gente nunca relaxa. Vai dormir preocupada e acorda ainda mais preocupada. Meninos negros estão sempre na mira. De repente, alguém cisma e acusa os moleques de erros que não cometeram. Às vezes, nem rola acusação. Atiram neles e pronto. Infelizmente, já tive de explicar a real para o Michael: “Você é preto, filho, e começou a andar sozinho na rua. Não pode vacilar. Escolhe direito tuas companhias. Não sai desarrumado e sem documento. Evita olhar fixo para os estranhos. Se entrar nas Lojas Americanas, não toca em nada. Se resolver comprar alguma besteira, pede a notinha e guarda.”
Quando o Michael festejou 10 anos, em novembro de 2018, acusei o golpe. De uma hora para outra, tomei consciência das perdas que a gravidez precoce me trouxe. Eu gostaria de estudar publicidade, por exemplo, mas até agora não deu pé. Só concluí o ensino médio à beira dos 25 anos, acredita? Me falta tempo para os livros porque preciso sustentar o garoto. Meu ex ganha pouco e contribui com apenas 150 reais por mês. Ele faz hambúrguer em casa, embala de um jeito maneiro e entrega os pedidos de bike.
Já fui atendente do McDonald’s e vendedora de roupas no Shopping Tijuca. Não curtia nenhum dos empregos. Mesmo assim, respirava fundo e metia as caras. Em 2014, consegui mudar de rumo e me tornei produtora artística. Trabalho com o pessoal do samba e do hip-hop. Não reclamo, não, mas por mim estaria morando em São Paulo. Lá as oportunidades na área musical tendem a ser maiores. Nem vale a pena comparar com o Rio. Eu também gostaria de descolar um teto melhor e, quem sabe, um companheiro bacana. Desde o nascimento do Michael, praticamente não cuidei da vida amorosa. A correria é tanta que, quando arranjo uma folga, só quero descansar.
Parece que todas as fichas caíram de uma vez no instante em que o moleque soprou as dez velas do bolo. “Caramba!”, me assustei. “O tempo voou e continuo igualzinha. Sem faculdade, sem casa bonita e sem deslanchar na carreira.” Bateu uma angústia, uma sensação de urgência, uma autocobrança terrível: “Se liga, mulher! Está esperando o quê para progredir?” Tamanha pressão acabou por me derrubar. Primeiro, tive umas pontadas no peito. Depois, uma febre esquisita, que aparecia quase diariamente. Fiz um punhado de exames e não deu nada. Era tudo emocional. A tristeza, então, desabou sobre mim. Mergulhei numa apatia imensa e perdi até a vontade de me levantar da cama. Um negócio bem absurdo, que não combinava comigo, porque sempre esbanjei disposição. “Bora, galera! Ninguém vai morrer!”, costumava gritar para os colegas toda vez que pintava uma dificuldade no trampo. Olha só a ironia… Eu, a mais ativa das ativas, agora desejava apenas uma coisa: morrer.
A depressão durou uns dez meses. Ficou tão grave que passei trinta dias à base de água, sem comer nem mesmo um biscoito. Meu apetite simplesmente desapareceu. Com esforço, depois de muita terapia e alguns remédios, saí do buraco. O tratamento inteiro rolou na rede pública. Nunca faturei o suficiente para usar o sistema privado. No finzinho de 2019, me senti plena de novo, e comecei 2020 imaginando que seria o ano da virada. Quanta ilusão…
O isolamento social, além de me afastar do Michael, detonou o ramo da música. De onde uma produtora artística vai tirar dinheiro se as rodas de samba e os shows de hip-hop sumiram? Quando iniciei a quarentena, estava com 1 mil reais na conta. Precisei apertar o cinto à beça até sacar, em junho, o auxílio emergencial do governo. Cancelei meu plano de internet e pedi para usar o wi-fi do vizinho. Transformei o celular pós-pago em pré-pago e reduzi as compras de supermercado. Um desespero! A grana miúda, as incertezas profissionais e a decepção com 2020 me roubavam o sono. Atravessei várias madrugadas em claro, explodindo de ansiedade. Se pregava os olhos, tinha pesadelos. Amigos ou parentes me telefonavam em sonho para contar: “Lil, peguei o corona.”
Nas primeiras semanas do confinamento, me entupi de notícias sobre o vírus. Recebia tantas informações ruins durante o dia que, uma hora, decidi pular fora daquele inferno e só ver o telejornal da noite. Também abandonei as mídias sociais por um tempo. Bye, bye, Facebook! Tchau, Instagram! Eu toda enrolada, e os meus conhecidos postando receitinhas de doce ou fotos de ginástica na laje?! Aquilo me irritava horrores. Bando de mentirosos… Jura que a pandemia ferrou somente a trouxa da Lil?
Para complicar, depois que voltou, o Michael não conseguia baixar o aplicativo da Prefeitura, que permite acessar as tais aulas online. O motivo? Vai saber… Talvez o wi-fi do vizinho não ajudasse. Eu tentava compensar lendo mangás ou livros infantis com o menino antes de dormir. Era pouco, mas melhor do que deixar o garoto à toa.
No meio da bagunça, percebi que poderia ter uma recaída e caminhar novamente para o abismo da depressão. Vamos combinar que ninguém merece afundar duas vezes. Acendi o sinal de alerta e procurei socorro. Foi quando uma amiga me enviou pelo WhatsApp o contato do Cada Trauma Importa. Que alívio! As duas sessões semanais de terapia me fazem muito bem. Aprendi umas técnicas de respiração que diminuíram bastante o meu estresse. Mas o principal é o que a terapeuta me diz. Ela raciocina de um jeito simples e certeiro:“Não se cobre tanto, Lil. O mundo todo levou um susto e está em crise. Por que você não estaria?”

No início de 2018, já recuperada dos transtornos psicológicos, Preta descobriu o Couchsurfing enquanto navegava displicentemente pela internet. O serviço conecta moradores de diversos países com viajantes à procura de hospedagem gratuita. Embora só domine o português, a jovem logo vislumbrou a possibilidade de receber estrangeiros no sobrado de Honório Gurgel. “Compreensível, né? Eu estava louca para conhecer gente nova depois de um ano e meio na pior.” Em fevereiro, juntou-se à comunidade virtual e abrigou o primeiro turista, um chileno. Gostou tanto da experiência que, até dezembro de 2019, acolheu hóspedes de pelo menos vinte nacionalidades. “Uruguaios, argentinos, peruanos, franceses, italianos, espanhóis, britânicos, croatas, turcos, japoneses… Minha casa virou uma Babel”, recorda, às gargalhadas. “Muita coisa!”
Especialmente com os latino-americanos, Preta mantinha demoradas conversas, que acabavam ganhando um tom mais íntimo. “O pessoal abria o coração. Falava de problemas familiares, decepções amorosas e dilemas profissionais. Eu retribuía narrando a minha história.” Os diálogos lembravam um pouco aqueles que a moça tinha com Seu Roberto. “O curioso é que não havia grande diferença entre os meus sofrimentos e os dos gringos. Percebi que os humanos padecem de um jeito semelhante em qualquer lugar do planeta.”
O vaivém no endereço de Preta despertou o interesse da vizinhança. Honório Gurgel, afinal, está longe de ser uma das regiões mais atrativas do Rio. O bairro de classe média baixa carece de peculiaridades marcantes, tirando o fato de que a cantora Anitta cresceu ali. “Como dificilmente vemos estrangeiros nas ruas de Honório, uma pá de moradores quis se aproximar dos meus hóspedes.” Nasceram, assim, as reuniões que serviram de inspiração para o projeto Maktüb Experience, germe do Cada Trauma Importa.
A jovem promovia encontros dos turistas com a população local, sobretudo os adolescentes. Não raro, sugeria que os forasteiros passassem à garotada noções dos próprios idiomas ou de atividades prazerosas em que se destacavam: música, desenho, pintura. “No final, formávamos uma roda e batíamos um papo.” A prosa frequentemente se transformava em desabafo coletivo.
Satisfeita com as reuniões e desejosa de partilhar ainda mais os ensinamentos trazidos pela depressão, Preta resolveu adaptar a iniciativa até chegar à configuração que o Maktüb exibe agora. As quatro favelas onde o projeto se desenrola ficam justamente nas imediações de Honório Gurgel.
Desde menina, a fotógrafa demonstra aptidão para liderar e servir. “Quando tinha 12 anos, organizei uma turma de crochê e bordado em Cururupu. Eu mesma dava as aulas, sem cobrar um centavo.” Hoje, no Cada Trauma Importa, é Preta quem estabelece o primeiro contato com os inscritos. Faz questão de escutar atenciosamente as lamúrias deles e de reconfortá-los. Só então os encaminha para o terapeuta mais adequado. A moça também administra o cronograma das sessões e, todas as manhãs, busca ter notícias dos pacientes. “Bom dia, flor do dia! Como estamos?”, lhes escreve pelo WhatsApp.
A expressão “cada trauma importa” remete à frase “vidas negras importam”, tradução de Black lives matter, lema dos militantes antirracistas norte-americanos. Já maktüb é a transliteração de um vocábulo árabe que significa “precisava acontecer” e que o romancista Paulo Coelho popularizou a partir da década de 1990. A jovem, porém, não garimpou a palavra nos textos do Mago. Ela a ouviu em Vida Longa, Mundo Pequeno. O rap do grupo Oriente explica que maktüb sintetiza “o fatalismo muçulmano”. Se proferido em momentos de agonia, o termo não soará como “um brado de revolta contra o destino”, mas como “a reafirmação do espírito plenamente resignado diante dos desígnios” que a existência nos apresenta. “Eu não poderia evitar o tsunami emocional que me atingiu, sacou? Maktüb! Era a minha sina”, diz a fotógrafa, que não tem religião, apesar de crer “em deuses”. “O universo encontrou um caminho bem tortuoso para me revelar o que devo fazer enquanto estiver viva: ‘Tu, Preta, há de zelar por teu equilíbrio mental e pelo dos outros.’”

A Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou, no dia 13 de maio, um relatório sobre o risco de a pandemia do novo coronavírus afetar gravemente a saúde psíquica da população em geral, e não só de médicos e paramédicos. O documento recomendava que governantes implantassem tanto medidas contra o avanço do patógeno quanto estratégias para prevenir ou amenizar os efeitos psicológicos da crise sanitária.
O Brasil, já se sabe, naufragou no combate à propagação da doença e, até agora, desconhece o estrago que a tragédia vem provocando na cabeça dos brasileiros. O governo federal não se preocupou em criar um programa extensivo para cuidar do assunto. Existem, no entanto, levantamentos pontuais que fornecem algumas pistas.
Um exemplo: o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) constatou que, entre janeiro e julho, as 80 mil drogarias do país compraram dos fabricantes 97 milhões de caixas de ansiolíticos, estabilizadores de humor e antidepressivos. É uma quantidade muito superior à dos anos anteriores. Nos primeiros sete meses de 2018 e 2019, as farmácias adquiriram 74 milhões e 82 milhões de caixas, respectivamente. Considerando apenas a fase de distanciamento social (março a julho de 2020), o total chegou a 74 milhões, bem mais que os 59 milhões do mesmo período de 2019.
Outro exemplo: entre 25 de abril e 5 de maio, o Ministério da Saúde telefonou para 2 007 adultos de todo o país. Quando a entrevista abordou a sanidade mental, 42% dos consultados relataram alterações no sono durante a quarentena (ou padeciam de insônia, ou dormiam mais que o corriqueiro), 39% acusaram falta de apetite ou vontade excessiva de comer, 35% se declararam pouco interessados em realizar tarefas cotidianas, 33% alegaram se sentir para baixo e 31% manifestaram perda de energia.
Numa pesquisa conduzida pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), 1 460 participantes de 23 cidades brasileiras responderam um questionário online em duas ocasiões: fim de março e meados de abril. O Yale New Haven Hospital e a Universidade Columbia, ambos dos Estados Unidos, também coordenam o trabalho, que pretende detectar se os entrevistados apresentaram indícios de transtornos psíquicos enquanto se isolavam e quais os fatores que contribuíram para o eventual adoecimento deles. Eis as principais conclusões:
* No fim de março, quando a quarentena engatinhava, 4,2% dos consultados exibiram sinais de depressão, 6,9% de estresse e 8,7% de ansiedade. Em meados de abril, os índices subiram para 8% (depressão), 9,7% (estresse) e 14,9% (ansiedade).
* As mulheres se mostraram mais suscetíveis às psicopatologias do que os homens.
* A mesma suscetibilidade se verificou entre os participantes que precisavam quebrar o confinamento para trabalhar em relação àqueles que faziam home office.
* Quem morava com idosos, obesos, hipertensos, diabéticos ou cardiopatas se revelou mais propenso às doenças emocionais.
* Os que tinham criança em casa desenvolveram menos sintomas.
* Quanto maior a escolaridade dos entrevistados, menor a incidência dos distúrbios.
* Quanto mais regular a prática de exercícios físicos ou quanto mais equilibrada a dieta, menor a ocorrência de problemas mentais.
“O aumento dos indicadores de depressão, estresse e ansiedade não nos surpreendeu. Era esperado”, afirma o carioca Alberto Filgueiras, professor do Instituto de Psicologia da Uerj e um dos idealizadores da pesquisa. “Outros países que decretaram o isolamento para debelar epidemias de síndromes respiratórias agudas no século XXI, como o Canadá, a Austrália e a China, também registraram alta daquelas taxas.”
Filgueiras e seu parceiro de estudo, o norte-americano Matthew Stults-Kolehmainen, continuam analisando os dados com o intuito de compreender melhor os aspectos capazes de proteger emocionalmente as populações em confinamento. O objetivo da dupla é fornecer elementos para a futura implementação de políticas públicas sobre o tema.
Os pesquisadores repetiram o questionário em julho, mas ainda não computaram os resultados. Também planejam aplicá-lo tão logo o distanciamento acabe no Brasil e um ano depois. “A literatura científica demonstra que várias pessoas desenvolvem transtorno de estresse pós-traumático quando saem de uma quarentena”, diz Filgueiras. “Queremos verificar se o mesmo vai acontecer por aqui.” O mal caracteriza-se pela recorrência de pensamentos ou pesadelos que revivem determinado trauma e podem gerar taquicardia, sudorese demasiada, tensão muscular, irritabilidade ou tonturas.

Evandro, Evandro, Evandro. Durante nossas conversas, Preta confundiu meu nome inúmeras vezes. Tratava-me por Evandro sem perceber. Embora intrigado, evitei corrigi-la. Uma hora, porém, decidi matar a curiosidade: “Reparou que você sempre me chama de Evandro? Por quê?” A jovem finalmente se deu conta do lapso: “Jura? Perdão… Teu nome parece o do meu terapeuta e mentor.”
Formado em ciência política, o niteroiense Evandro Vieira Ouriques leciona na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele virou professor da Escola de Comunicação quatro décadas atrás, quando ainda trabalhava como jornalista e diagramador na imprensa fluminense. Hoje se divide entre a licenciatura e a clínica, já que mantém um consultório onde exerce as funções de terapeuta filosófico. Em linhas gerais, lança mão da filosofia para refletir sobre as angústias dos pacientes e ressignificá-las.
Duas características logo despertam a atenção de quem o encontra pela primeira vez: a paixão com que se expressa e o visual despojado, quase hippie. Barbudo e calvo, o professor de 70 anos deixa os cabelos brancos remanescentes crescerem até os ombros. “Conheci Preta em janeiro de 2020, numa exposição de fotografia”, relembra. “Ela levou poetas e rappers para se apresentarem ali.” À época, Ouriques preparava um curso de extensão que ocorreria na UFRJ e no Observatório de Favelas, uma organização sem fins lucrativos. As quinze aulas discutiriam as possibilidades de se construírem espaços de convivência em territórios cujos moradores estão sob risco permanente de extermínio. “Mal troquei algumas palavras com Preta, tive vontade de convidá-la para dar uns depoimentos no curso.” Uma “forte intuição” lhe sugeria valer a pena se aproximar da moça. “Não me enganei. Preta é uma líder nata, que não usa o próprio trauma para traumatizar o outro. Ela reconheceu com muita dor que, numa etapa da vida, ocupou a posição de subjugada, mas resolveu não subjugar ninguém em represália. Abdicou da vingança. Em vez de cultivar o rancor, escolheu celebrar e disseminar as oportunidades de libertação.”
Devido à quarentena, o curso ainda não se realizou. Enquanto aguarda a reabertura da universidade, o docente supervisiona o Cada Trauma Importa e atende não só a jovem como alguns dos que buscaram a rede de assistência psicológica.
A carioca Estelita Oliveira de Amorim Ouriques também figura entre os voluntários da ação. Casada com o professor, é iogaterapeuta e costuma atuar no Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro, que pertence à Secretaria de Estado de Saúde. “Em minhas sessões, tento reequilibrar os pacientes por meio dos elementos que compõem a tradição iogue: as técnicas respiratórias, as posturas corporais, o relaxamento, a meditação e, claro, a escuta amorosa”, resume a profissional de 56 anos, que se dedica à prática milenar hindu desde os 22.

O RAPPER
Na real, não tenho medo de que o coronavírus me mate. Tenho é pena. Odiaria morrer sem deixar um legado para a minha comunidade, os meus familiares e principalmente a minha filha. Não estou falando apenas de coisas materiais – uma casa mais confortável, dinheiro no banco, talvez um carro. Falo também de consciência. Sabe aquele papo de semear um mundo melhor? Eu gostaria… Sonho em convencer quem me rodeia de que a leitura e o respeito pelas diferenças podem salvar as próximas gerações. Até o momento, não consegui. Então, ainda preciso continuar na área.
Escrevo letras de rap justamente por isso: para abrir a cabeça dos que só pensam em futilidades. Vou espalhando minhas sementes com as palavras, tá ligado? Solto o verbo aqui mesmo, na Vila Kennedy, a favela da Zona Oeste carioca em que nasci e sempre morei. Quando participo das rodas culturais ou batalhas de rima, sou o MC Mano Chim. Fora delas, me chamo Wendel Luiz Correia dos Santos de Jesus. O nome imenso diz muito sobre meus pais. Eles não se entenderam na hora de me registrar. Brigaram pelo Correia, pelo Santos e pelo Jesus. Nenhum dos dois quis abdicar de nada. Percebe como a mente pequena atrapalha tudo? Fiquei com o sobrenome de ambos, que nunca pararam de tretar.
Curto ler desde a infância. Na quarta série, a professora Janete mostrou para a classe o livro da Vaca Vitória. Esqueci o título… Um livro de poesias curtas, sinistro! Lembrei: Era uma Vez a Vaca Vitória, que Caiu no Buraco e Acabou a História. Daí em diante, peguei gosto pela brincadeiraPrimeiro, devorei romances de vampiro, como os do Darren Shan. Depois, parti para as biografias. Agora priorizo autores mais filosóficos, tipo Augusto Cury e Leandro Karnal. No fim da adolescência, até cogitei estudar filosofia. Acho maneiro dar aulas. Mas os meus pais não concordaram: “O quê?! Vai perder o maior tempo em faculdade para se formar e ganhar merreca?” Na fantasia de ter uma profissão menos sucateada, fiz cursos técnicos de automação industrial e enfermagem. Por absoluta falta de aptidão, não terminei nem um, nem outro. Fui seguir os conselhos da família e me estrepei. A mente pequena deles atrapalhou tudo de novo.
Hoje, com 28 anos, trabalho como aguadeiro. Distribuo água filtrada para o povão. O calor do Rio é de rachar, certo? A galera vai às festas de rua ou se amontoa em filas de emprego, e, muitas vezes, não tem um puto no bolso. Água mineral custa caro. Para que ninguém morra de sede embaixo do sol, a companhia estadual de saneamento contrata a gente. Metemos um galão no ombro, como aqueles que os vendedores de mate carregam, e damos água potável à vontade, em copinhos de 200 ml. Recebo 60 reais por evento. Antes do vírus, faturava uns 400 ou 500 todo mês. Com a pandemia, o negócio gorou. Dizem que vão nos recontratar quando o isolamento acabar de vez. Tomara…
Meu pai é pedreiro e eletricista, mas também está sem trampo. Minha mãe, por enquanto, segura as pontas. Ela cuidava de uma idosa num apartamento de Copacabana. Passava a semana lá. Só voltava para a Vila Kennedy no sábado. Em abril, a velhinha pegou a Covid e morreu. Coitada… Mesmo assim, o filho dela não despediu minha mãe. “Você precisa arejar o apartamento”, explicou. A idosa vivia de frente para a praia. Se não ventilar o imóvel, a maresia faz um estrago. Lógico que a doença da velhinha nos assustou. Havia o risco de a gente se contaminar, mas parece que escapamos.
Em casa, moro com cinco pessoas, além de meus pais: duas irmãs desempregadas e três sobrinhos. Tem ainda a Princesa, uma mini poodle. Minha filha de 10 anos fica com a mãe. Imagine a situação: um monte de adultos e crianças, mais uma cadelinha, dividindo um espaço apertado o tempo inteiro. Qual a chance de funcionar? Ontem mesmo notei que mexeram nos meus livros e rabiscaram um dos melhores. Senti uma dor… Livro não se rabisca, gente! O pessoal debochou tanto do meu protesto que deitei no chão do quarto e chorei como um bebê. Antes chorar do que explodir de ódio e arranjar mais briga.
Outro problema lá de casa é a religião. Minha mãe professa o catolicismo desde menina e, de uns tempos para cá, se fanatizou. Rejeita as crenças do meu pai, que gosta do candomblé. Ela o acusa de paganismo. Não bastasse, ainda critica a minha tia, que se converteu à Igreja Batista. Olha a mente pequena atacando mais uma vez… Jesus condenava os preconceituosos! Jesus pregava a paz! O que Ele acharia de tamanha implicância? Eu preferi me manter longe do Fla-Flu. Tenho espiritualidade, mas não tenho religião. Observo o azul do céu, o verde do mar, as curvas das montanhas e me conecto diretamente com o Criador.
Nunca acreditei em psicólogo, confesso. Pensava: se nem minha família me escuta, por que um estranho vai escutar? Acontece que o confinamento vinha me tirando do sério. O que fazer para baixar a bola? Só me restou arriscar e procurar o Cada Trauma Importa. Na primeira sessão, chorei de novo como um bebê. Despejei pelo Zoom todos os meus temores, raivas e frustrações. Para minha surpresa, o estranho não apenas me ouviu. Ele também me respeitou.

Em agosto, Preta já não se mantinha tão isolada. Retomava lentamente o trabalho de produtora cultural, planejava alguns ensaios fotográficos e entregava cestas básicas nas comunidades onde o Maktüb está presente. A moça comprou os alimentos com o dinheiro que comerciantes das redondezas lhe doaram. Àquela altura, não vivia mais no Engenho Novo. Trocara a edícula da Mulheres de Peito e Cor por uma casa dentro do Chapadão.
Dos onze terapeutas que abraçaram inicialmente o Cada Trauma Importa, sobravam quatro: o casal Ouriques, a sexóloga Daniela Mattos e o psicólogo Alexandre Ribeiro. Os demais não conseguiram permanecer na ativa sem remuneração. Quarenta dos 170 pacientes inscritos haviam recebido atendimento desde maio, quando as sessões começaram. Os outros aguardavam na fila. “Quanto tempo a rede ainda vai durar? Não faço a menor ideia”, admite Preta. “Por mim, levo a iniciativa adiante mesmo depois da quarentena, mas nem tudo está sob nosso controle, né? A pandemia que o diga…”
(revista piauí)

quarta-feira, 1 de julho de 2020

"Estou sonhando?"

Uma sessão espírita dedicada às vítimas do coronavírus 
Num sobrado de Copacabana, quatro mulheres e dois homens se reuniam em silêncio, com os olhos fechados e as cabeças baixas. A sala ampla que ocupavam sobressaía pela austeridade. Quase não havia móveis, somente um par de armários, meia dúzia de cadeiras e duas mesas. As paredes claras exibiam um retrato solitário de Jesus. Do teto, irradiava uma luz amarela muito tênue, que deixava o recinto na penumbra.
As mesas, simples e de plástico, se assemelhavam às de um boteco. Como estavam justapostas, formavam um retângulo branco, sem toalhas. O grupo se sentava em torno dele. Um aparelho portátil de som, instalado num canto da sala, tocava uma música clássica bem suave. Em cima das mesas, espalhavam-se folhas de papel sulfite, canetas esferográficas, lápis de cor, pincéis, tintas guache, um pote com água e quatro livros – três de Allan Kardec e um de Chico Xavier, ambos figuras essenciais do espiritismo.
Passava um pouco das 18h30 quando Isabella Maltaroli, a dirigente daquela sessão mediúnica, ergueu a cabeça. Com uma lanterninha, iluminou um caderno em que se enfileirava uma série de nomes, ora de pacientes hospitalizados por causa da Covid-19, ora de pessoas que não resistiram à doença e morreram. A lista também incluía médicos e enfermeiros que combatiam o novo coronavírus dentro das UTIs fluminenses. Na ocasião, dia 3 de abril, sexta-feira, o Brasil registrava 359 óbitos decorrentes do patógeno, segundo o Ministério da Saúde. O Rio de Janeiro contabilizava 47. A enfermidade provocava apenas os primeiros estragos por aqui. Praticamente três meses depois, em 24 de junho, os números saltariam para 53 830 no país e 9 295 no Rio.
“Vamos lá?”, perguntou Maltaroli, sem esperar propriamente uma resposta. Ela se aprumou na cadeira e começou uma prece improvisada, em voz alta. Pediu que “os amigos desencarnados” comparecessem à reunião, harmonizassem “as energias” da sala e inspirassem cada um dos presentes. Rogou, ainda, que zelassem pelos brasileiros durante toda a pandemia. Tais amigos são os espíritos moralmente superiores que guiam aquele centro religioso – o Lar Paulo de Tarso – desde a fundação, em dezembro de 1983.
Depois da prece inicial, a dirigente enunciou um dos nomes que figuravam no caderno. Explicou de quem se tratava e lhe dedicou uma oração curta, novamente improvisada e em voz alta. Os demais participantes acompanharam a reza com atenção, mas sem falar nada. O ritual se repetia sempre que Maltaroli citava um nome da lista. Quando mencionava o de alguém que morrera, os devotos aguardavam alguns minutos após a oração – tempo necessário para que o espírito do morto se manifestasse, caso houvesse condições.
Entre os seis participantes, estavam dois médiuns. Seria por meio de um ou de outro que o morto se comunicaria. Em sessões do gênero, conforme a doutrina espírita, a alma dos médiuns mostra-se capaz de abandonar parcial ou totalmente o corpo, à maneira de uma sombra que se descola do organismo que a gerou. O afastamento ocorre numa fração de segundos e quase ninguém de carne e osso o enxerga. Mal o fenômeno acontece, um fio de energia prateado – e igualmente invisível – passa a ligar o corpo dos médiuns à sua alma, como um cordão umbilical.
Espíritos de mortos que desejam se pronunciar conseguem, assim, estabelecer uma triangulação com os vivos. Endereçam mensagens para a alma, que as leva até o corpo dos médiuns. Eles podem retransmiti-las instantaneamente e de diferentes modos: pela fala (psicofonia), por desenhos e pinturas (psicopictografia) ou pela escrita (psicografia). Daí os pincéis, lápis, canetas, tintas e sulfites que repousavam nas mesas do Lar Paulo de Tarso.
Ao longo do processo, os médiuns raramente perdem a consciência. O mais comum é que permaneçam tão lúcidos a ponto de censurar as mensagens que julgam inapropriadas e não passá-las adiante.
Naquela noite, os espíritos pareciam relutar em dizer qualquer coisa. Logo depois de uma oração, porém, um dos médiuns – grisalho, quarentão e gorducho – deu a impressão de que caíra no sono. Isabella Maltaroli se levantou e caminhou para perto dele. “Ei, querido, vamos acordar?”, propôs, carinhosamente, ao perceber que se tratava de um espírito que não sabia ter desencarnado. Ela queria avisá-lo. O médium, ainda de olhos cerrados, resistiu: “Me deixa! Está gostoso assim…” A dirigente não recuou: “Acorde, meu bem! Vamos conversar um minutinho. Bora lá!” Sem alterar a voz habitual, mas assumindo uns trejeitos inusuais, o médium resmungou: “Quem é você? Não me enche!” Maltaroli respondeu: “Sou uma amiga. Acho que vou pegar um balde d’água para jogar em você. Água gelada, que tal? Você vai acordar rapidinho.”
Mesmo contrariado, o médium – ou o espírito que se expressava pela sua boca – resolveu abrir os olhos. “Peraí! Estou sonhando?”, indagou. “Não, não é um sonho”, esclareceu a dirigente. “É o quê, então?! Não me diga que… Eu morri? O coronavírus me matou?” Maltaroli procurou tranquilizá-lo: “Você não morreu, querido. Continua vivo, vivíssimo, mas de outro jeito. Você apenas desencarnou.” O espírito refutou, enfaticamente: “Besteira! Não acredito em nada disso. Sou ateu!” A dirigente sorriu: “Olhe para si próprio. O que vê? O corpo de outra pessoa, não? O de um médium… Cadê o seu?” O espírito observou ligeiramente o homem que lhe servia de mensageiro e admitiu: “Não sei… Será que enlouqueci?” Maltaroli o acalmou de novo: “Não enlouqueceu! Juro! Você só retornou para o plano espiritual, de onde todos viemos.”
Codificado pelo francês Allan Kardec durante a segunda metade do século XIX, o espiritismo chegou ao Brasil em 1865. À época, o jornalista e professor Luiz Olympio Telles de Menezes fundou em Salvador uma comunidade que estudava a doutrina. De acordo com o Censo mais recente, a religião somava 3,8 milhões de adeptos no país há dez anos, algo como 2% da população geral. Os católicos eram 65%, e os evangélicos, 22%. Atualmente, 12 milhões de fiéis abraçam a crença. A estimativa, bastante otimista, é da Federação Espírita Brasileira.
Grosso modo, a denominação – monoteísta e cristã – preconiza a existência de um mundo que está em outra dimensão e abriga os espíritos. Quantos exatamen-te? Uma infinidade. Ou, como ensinam os devotos, “tantos quantos Deus quiser criar”. De início, os espíritos se revelam ignorantes. Nem bons, nem ruins, nascem muito simplórios e destinados à felicidade. Só que, para conseguir atingi-la plenamente, terão de evoluir. Precisarão encarar um longuíssimo aprendizado, que acontecerá na dimensão onde moram, mas também na Terra ou mesmo em outros planetas.
Eternos e com livre-arbítrio, os espíritos frequentemente podem decidir quando e sob quais condições irão se corporificar, embora necessitem que uma oportunidade se apresente. Não basta, portanto, almejar a encarnação. É imperativo que, simultaneamente, apareçam vagas entre os terráqueos. Uma vez corporificados, os espíritos tendem a esquecer a outra dimensão e se apegar à nova vida. O ciclo de encarnações e reencarnações só termina no momento em que os aprendizes se tornam imensamente puros, éticos e sábios. Até hoje, Cristo é o único que alcançou tal condição na Terra.
“Agora que estou morto, o que devo fazer?”, questionou o ateu desencarnado. “Nada. Simplesmente pense em alguma coisa bonita e descanse”, orientou Maltaroli. “Com o tempo e a ajuda de amigos, você refletirá sobre todas as lições que já aprendeu. Mas, por enquanto, não se preocupe. Apenas recupere-se da viagem.” Bem mais sossegado, o espírito suspirou, agradeceu a dirigente e partiu.
(revista piauí)

terça-feira, 2 de junho de 2020

"Eu não aguento mais chorar"

Fragmentos de revolta contra o assassinato de negros pela polícia explodem em manifestação no Rio

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e máscara branca sobre a boca e o nariz, Mônica Cunha – uma educadora negra de 54 anos – vociferava na frente do Palácio Guanabara, sede do governo fluminense: “O Estado não pode matar. O Estado não pode achar que somos descartáveis. Não somos! Somos humanos! O Estado não pode nos mastigar e jogar fora.” Em torno dela, umas vinte ou trinta pessoas incentivavam com aplausos e exclamações o discurso improvisado, que se tornava cada vez mais cortante. “Temos que sair às ruas! Não podemos ficar em casa como pedem a Organização Mundial da Saúde e o governador. Sabe por quê? Porque o Estado não para de nos assassinar, mesmo na pandemia do coronavírus. A vida dos meus filhos, a vida do meu povo importam! Eu não aguento mais chorar!”
Em 2003, a manifestante fundou o Movimento Moleque e o comanda desde então. O coletivo luta pelos direitos de jovens infratores. Domingo à tarde,  enquanto protestava, a ativista protegia o rosto com uma viseira translúcida e vestia uma camiseta larga que estampava a foto de um rapaz sorridente. Era Rafael, o segundo de seus três filhos. Ele tentou roubar um carro na adolescência e, por isso, cumpriu medidas socioeducativas durante quase nove meses. Mais tarde, se envolveu com o tráfico de drogas. Acabou morto pela Polícia Civil em dezembro de 2006, entre as favelas do Rato Molhado e do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Testemunhas contaram que o moço levou um tiro de fuzil perto do estômago quando já se encontrava rendido, de joelhos. Tinha 20 anos.
“Ou a gente dá um basta agora, ou amanhã você vai estar igual a mim”, prosseguiu a educadora, apontando para uma negra bem mais nova que a observava. “É inadmissível! O meu povo precisa continuar a viver. Povo negro vivo! Jovens negros vivos! Mulheres negras vivas!”, concluiu Mônica, que não usava megafone nem alto-falantes. Ela gritava com a voz nua, como todos os que se pronunciavam ali.
Sem carros de som ou palanques, a manifestação não dispunha propriamente de uma liderança. As centenas de pessoas – duzentas, trezentas, quatrocentas? – que decidiram quebrar o isolamento social e se juntaram às 15 horas diante do palácio, no bairro de Laranjeiras, dividiam-se em vários grupos. Cada um deles constituía um fragmento autônomo, onde alguém discursava ou lançava palavras de ordem, prontamente repetidas pelos que estavam ao redor. Entre o nascimento e a dispersão deste ou daquele grupo, passavam-se apenas poucos minutos.
Um aspecto nada desprezível garantia a unidade do protesto: a fúria dos manifestantes contra os excessos cometidos por policiais do Rio, que não raro culminam no assassinato de negros. Esse tipo de violência – que os ativistas chamavam de “genocídio” – é antiquíssima e já alimentou toda sorte de denúncias. Seis acontecimentos recentes, porém, serviram de estopim para a ação de domingo:
* Em 15 de maio, a Polícia Militar e a Civil enveredaram pelo Complexo do Alemão, na Zona Norte carioca, atrás de drogas, munições e armas. Moradores relatam que presenciaram ou escutaram intensos tiroteios. A operação resultou em doze mortes. Somente um policial se feriu, sem gravidade.
* Em 18 de maio, o adolescente negro João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, morreu após receber um tiro de fuzil pelas costas. Ele brincava com os primos na casa de um tio em São Gonçalo, município da Grande Rio, quando a Polícia Federal e a Civil invadiram o imóvel à caça de traficantes.
* Também no dia 18 de maio, familiares de Iago César dos Reis Gonzaga disseram que policiais militares torturaram e mataram o jovem negro de 21 anos durante uma incursão pela Favela de Acari (Zona Norte do Rio). A PM não comentou a denúncia.
* Em 20 de maio, uma troca de tiros entre criminosos e a Polícia Militar na Cidade de Deus (Zona Oeste) interrompeu a distribuição de duzentas cestas básicas por voluntários locais. A batalha provocou a morte de João Vitor Gomes da Rocha, negro de 18 anos. Segundo a PM, o rapaz fazia parte de uma quadrilha que pratica sequestros relâmpago. A mãe dele, empregada doméstica, nega a versão das autoridades.
* No dia 21 de maio, enquanto patrulhava o Morro da Providência (Centro), a Polícia Militar entrou em confronto com bandidos. O tiroteio – que atrapalhou outra doação de cestas básicas, desta vez promovida por alunos de um pré-vestibular comunitário – ocasionou a morte de Rodrigo Cerqueira da Conceição. Os policiais afirmam que o rapaz negro de 19 anos portava uma pistola e um carregador, além de entorpecentes. Testemunhas, entretanto, alegam que o jovem trabalhava numa barraquinha quando o conflito eclodiu.
* Em 30 de maio, Matheus Henrique da Silva Oliveira – um barbeiro negro de 23 anos – tomou dois tiros e morreu enquanto andava de moto perto do Morro do Borel (Zona Norte). Vizinhos do moço contam que PMs fizeram os disparos. O caso ainda está sob investigação.
Os seis episódios de maio se deram após um mês particularmente sangrento. Em abril, 177 óbitos no estado do Rio decorreram de intervenções policiais. O número, divulgado pelo próprio governo, é 43% maior que o de abril do ano passado.
Coletivos de favelas e militantes do movimento negro recorreram às redes sociais para convocar a manifestação. No sábado, o Instagram de Raull Santiago – ativista do Alemão – já disseminava mensagens em português, espanhol e inglês sobre o protesto. “Infelizmente”, lamentava uma delas, “a polícia insiste em assassinar nosso povo durante a pandemia. Se não morremos por causa do vírus, a violência policial nos mata.”
No domingo de manhã, a agência de notícias Alma Preta Jornalismo informava que a ação estava se organizando “de maneira espontânea” pela internet. Duas imagens ilustravam a nota: a do menino João Pedro e a de George Floyd, o negro desempregado que o policial branco Derek Chauvin assassinou por asfixia em Minnesota, há uma semana. O homicídio gerou uma onda de rebeliões populares nos Estados Unidos, que agora inspiravam os brasileiros.
À tarde, diante do Palácio Guanabara, Raull Santiago profetizou: “Este não é apenas um ato. Este não é o único ato. Este não é o último ato. Este é só o início!” Palmas e gritos de “arrasou” festejaram o presságio.
As mensagens digitais que anunciavam o encontro pediam para os manifestantes não abdicarem dos cuidados sanitários. “Ponham máscara.” “Levem álcool em gel numa mochila ou no bolso.” “Fiquem a dois metros das demais pessoas.” “Retornem para casa logo depois do protesto.”
Quase todos os presentes procuravam respeitar as regras. Muitos não apenas usavam máscaras como viseiras, óculos de segurança e luvas. Também limpavam as mãos regularmente. O problema era guardar distância. Com frequência, surgia uma aglomeração aqui ou ali. “Olha o espaçamento!”, berrava alguém. Os aglomerados, então, abriam os braços em cruz e buscavam se afastar uns dos outros. A estratégia, no entanto, só funcionava por alguns segundos.
Entre os ativistas, mal se avistavam bandeiras de partidos. Em compensação, proliferavam faixas e cartazes improvisados, geralmente escritos a mão: “A periferia grita!”; “Dor de mães de filhos assassinados não tem preço”; “Parem de nos matar”; “Vidas negras e faveladas importam”; “Meu grupo de risco é outro”.
Os brados e cantos seguiam na mesma linha: “Contra o genocídio do povo preto, nenhum passo atrás!”; “Fascistas! Racistas! Não passarão!”; “Chega de chacina, polícia assassina!”; “Povo preto unido é povo preto forte, que não teme a luta, que não teme a morte”; “Acorda, classe média!”; “Não acabou, tem que acabar! Eu quero o fim da Polícia Militar!” De vez em quando, ecoava um “Fora, Bolsonaro!” ou um “Bozo miliciano!” O governador Wilson Witzel mereceu igualmente alguns “afagos”: “Ei, Auschwitzel, vai tomar…”
Com muita verve, a advogada negra Valéria Lúcia dos Santos mencionava os filhos no meio de um discurso. “O meu mais velho tem 19 anos e o meu caçula fez 17. Eles só continuam vivos porque resolvi tirá-los do Brasil. Hoje os dois moram nos Estados Unidos, um país que também é extremamente racista e que se encontra em guerra. Os pretos de lá brigam, gente! Eles lutam! Os pretos dos Estados Unidos mandaram um recado para o mundo: ‘Nós não vamos mais suportar humilhações, não vamos mais aceitar isso. Basta!’”
Habitante de Mesquita, na Baixada Fluminense, Valéria dos Santos é ex-mulher de um norte-americano, “o pai dos meus garotos”. Ela não vê os filhos pessoalmente desde 2011. “Deixei que o pai os levasse para a Flórida. Lá os meninos estudam, vivem melhor do que aqui. Eles não teriam futuro em Mesquita. O pai agora os protege e já conversou seriamente com os dois: ‘Se a polícia abordar vocês, fiquem quietos, não digam nada, não façam movimentos bruscos.’ Essa é a sina do negro em qualquer lugar do mundo: nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra. Desgraçadamente…”
A advogada cível ganhou certa notoriedade em setembro de 2018, quando discutiu com uma juíza leiga de Duque de Caxias, outra cidade da Baixada, durante uma audiência. Por causa do entrevero, os policiais plantonistas do fórum algemaram Valéria. Três vídeos que registraram o ocorrido circularam pelas redes sociais e indignaram a Ordem dos Advogados do Brasil. “A juíza e os policiais cometeram flagrante ilegalidade contra a colega”, avaliou a OAB. Alvo de uma representação da Ordem, a juíza foi absolvida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
No fim do discurso de domingo, Valéria declarou: “Eu lamento pela mãe do João Pedro, porque sou mãe igual. É revoltante! Quando gritamos, parece que estamos loucas. Não! Nós estamos sentidas.”
O protesto reunia principalmente jovens na faixa dos 20 e 30 anos. Os negros, óbvio, imperavam, mas os brancos também compareceram, ainda que nenhum tenha ousado discursar. Às tantas, um casal que passeava pelas redondezas, ambos de pele bem clara, xingou os manifestantes. Parte deles saiu atrás dos ofensores. “Volta! Volta!”, berraram outros. “Não vamos aceitar provocação dos fascistas!” Embora se inspirassem nas rebeliões dos Estados Unidos, os ativistas de Laranjeiras apregoavam a paz. “Nada de violência, galera!” O casal entrou ileso num prédio das imediações e os ânimos serenaram.
A PM acompanhou todo o ato de perto, sem se alterar, mesmo quando as palavras de ordem a citavam. A partir das 15h40, a manifestação se dispersou. Pouco depois, um grupo de retardatários chegou à frente do palácio, e a confusão começou. A polícia afirma que alguns dos atrasados jogaram pedras contra a sede do governo e tentaram invadi-la. Para afugentá-los, a corporação utilizou “instrumentos de menor potencial ofensivo”, como costuma dizer: bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e tiros de borracha. Não houve registro de feridos.
(site da revista piauí)

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Isolamento à beira-mar

Como idosos lidam com a pandemia num prédio de Copacabana

Pela manhã, quando abri a porta de casa para apanhar o jornal, ouvi uma conversa nada corriqueira no andar logo acima do meu. “Que barbaridade, Seu Zé! O senhor tem certeza?”, indagava a moradora da cobertura. Ela vive ali com o marido e sem empregados ou animais de estimação. Nunca vi o casal, nem sequer de relance, mas sei que amos já passaram dos 90 anos e estão no prédio há quase seis décadas. “Tenho certeza, sim! Internaram o moço ontem, lá no Copa D’Or. Um rapaz novinho de tudo, universitário”, respondeu Seu Zé com um quê de impaciência. “Quer dizer, não posso garantir a data da internação. Foi ontem à noite, parece. Ou hoje bem cedo? Não importa…”
O cearense José Cordeiro de Farias é zelador no pequeno edifício de Copacabana para onde me mudei em outubro de 2017. Ele e minha vizinha, imagino, conversavam à beira da escadaria acinzentada que percorre os onze andares do prédio. Embora não pudesse enxergá-los, escutei perfeitamente: “Deus do céu! O que vai acontecer agora?”, perguntou a vizinha, mais para si mesma do que para o zelador. “Será que a gente corre perigo?”
Era dia 18 de março, quarta-feira. Na antevéspera, o novo coronavírus levara à morte um aposentado em São Paulo. O Ministério da Saúde o identificou como a primeira vítima fatal da Covid-19 entre os brasileiros. Até o início daquela quarta, o vírus contaminara 33 pessoas no Rio de Janeiro, mas ainda não havia provocado nenhum óbito. Com o intuito de retardar a pandemia, o governador do estado, Wilson Witzel (PSC), começou a semana anunciando uma série de restrições temporárias, como a suspensão de aulas em instituições públicas ou particulares, o fechamento de teatros, cinemas, academias e shopping centers, a proibição de eventos esportivos e a recomendação para que ninguém fosse às praias. O isolamento social ganhava corpo, e o lema “Fique em casa” se espalhava.
Assim que tive oportunidade, procurei o zelador:
– Desculpe, mas ouvi parte da conversa de vocês na cobertura. Algum morador está internado?
– Morador, não. Um rapazinho que veio olhar o 301 no final da semana passada. Ele queria alugar o apartamento, que vagou faz uns dias. Espiou tudo bem espiado e depois bateu papo comigo aqui no hall de entrada. Agora me contaram que pegou o tal do vírus pouco antes de assinar o contrato.
– Quem contou?
– A faxineira que limpa o apartamento. Ela falou que já puseram o moço na UTI. Misericórdia! Eu cheguei perto do rapaz, apertei a mão dele… Não posso me contaminar. Sou do grupo de risco! E a Lourdes também!
O zelador se referia à sua mulher, a pernambucana Maria de Lourdes Barbosa de Farias, com quem divide as tarefas do condomínio. Em tese, o casal realmente figura entre os alvos preferenciais do novo coronavírus – não porque sofra de diabete, asma, bronquite, enfisema pulmonar ou hipertensão arterial, mas pela idade avançada. Taurinos, os dois aniversariam em maio. Ele vai completar 78 anos. Ela, 75. No entanto, jamais os tomei por velhos, embora tampouco os considerasse jovens, é claro. Eu simplesmente não pensava sobre o tempo quando os flagrava em plena atividade. Desde 1992, Farias e Lourdes são os únicos funcionários do edifício: limpam todos os andares, cuidam da portaria durante o dia (à noite, a partir das oito, não há porteiro), fazem reparos miúdos nas áreas comuns, recebem encomendas, distribuem correspondências e recolhem o lixo. Labutam como formiguinhas, sem muito tempo para o dolce far niente das cigarras. “Consigo subir do térreo até a cobertura, pelas escadas, num pique só”, gosta de trombetear o zelador. Não se trata de exagero.
O térreo, aliás, é onde o casal mora. Eles ocupam um apartamento com quarto, sala, cozinha, dois banheiros, lavanderia e um quintalzinho. No imóvel abarrotado de coisas, terminaram de criar a filha, Giseli, uma dona de casa que cursou administração de empresas e direito, mas nunca se formou, e lhes deu um par de netos. Bem menor que a cobertura dúplex da vizinha nonagenária, a residência do casal revela-se maior que os demais vinte apartamentos do prédio, cada um com 50 m2 e apenas um dormitório.
Inaugurado em 1964, o edifício também abriga salas comerciais. Tem uma garagem modesta, com apenas duas vagas, e não exibe nenhum “penduricalho”: nem playground, nem salão de festas, nem piscina. Apesar de franciscano, fica muito perto da praia, numa região privilegiada do Rio, o ponto em que Copacabana se aproxima de Ipanema – divisa batizada pelos cariocas de Copanema.
“Sou do grupo de risco!” A frase do zelador não só me fez atinar que o prédio se encontra sob a guarda de dois “velhinhos” – dispostos, prestativos, mas agora ameaçados – como me lembrou que moro no epicentro da terceira idade.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) calcula que o país reúne, atualmente, 34 milhões de pessoas com 60 anos ou mais. Cerca de 1,5 milhão está no município do Rio de Janeiro. Apenas São Paulo, entre as capitais, o supera. Lá vivem 2,3 milhões de indivíduos que pertencem àquela faixa etária. Em termos relativos, porém, a situação muda – e o Rio se converte na capital com a maior porcentagem de idosos. Essa população representa 22,7% dos 6,7 milhões de habitantes. Porto Alegre, Vitória e Belo Horizonte aparecem, respectivamente, em segundo, terceiro e quarto lugares no ranking (22,3%, 19,7% e 18,8%). Florianópolis, Curitiba e São Paulo compartilham a quinta colocação (18,4%).
O IBGE também estima que Copacabana seja o bairro carioca com maior número de idosos. O Censo de 2010 – a pesquisa mais recente sobre o assunto – indicou haver 43,4 mil moradores sexagenários ou acima dos 70 anos por aqui. Depois, vinham Campo Grande (41,4 mil) e Tijuca (39,5 mil).
O zelador, sua mulher e eu moramos, assim, no bairro com mais idosos da capital que detém a maior proporção deles. Um epicentro, portanto, ou algo do gênero. Alheio à demografia, Farias se angustiava cada vez mais: “Quem entrou em contato com um infectado precisa se isolar? A Lourdes pode pegar o vírus de mim? Como vou me isolar se tenho que ganhar a vida?”

O casal se conheceu em Copacabana mesmo. Ele trabalhava de garagista num edifício da Rua Bolívar. Ela, comerciária, costumava andar pelos arredores do prédio. “Eu vendia de tudo naquele tempo: roupa, sapato, qualquer coisa. Era empregada de lojas finas, sabe? O Zé manobrava carro, e a gente se paquerava de leve.” Um dia, o flerte vingou, enveredou para o namoro e… “Casamos em 1972”, recorda o zelador, que foi garçom “numa pensão de português” antes de se tornar garagista.
Depois do casamento, Lourdes virou depiladora e manicure. Farias comprou um Opala Comodoro (“o melhor carro da ocasião”) e se transformou num híbrido de motorista e guia turístico. Levava hóspedes do hotel Sheraton para visitar as atrações do Rio. Em abril de 1992, quando surgiu uma vaga de porteiro no nosso edifício, não titubeou. “Me ofereceram carteira assinada e a chance de sair do aluguel. Dava para recusar? Aqui moro de graça. Não pago nem a luz. Sem contar que contrataram a Lourdes também, como auxiliar de portaria.” Ele só ganhou o cargo de zelador há poucos meses – apesar de, na prática, exercer a atividade desde que chegou. Sua parceira segue com a mesma função.
Hoje ambos estão aposentados, mas permanecem na ativa porque ajudam financeiramente os familiares. “Nosso neto mais jovem peleja com uns problemas de saúde e, por causa disso, a Giseli não pode trabalhar. Precisa cuidar do menino”, explica a auxiliar de portaria. O que o genro deles fatura como taxista não é suficiente para saldar as contas.
Farias e a companheira têm origem parecida. Filho de um caixeiro-viajante e de uma dona de casa, o zelador nasceu em Santa Quitéria, cidadezinha do interior cearense. Ainda bebê, perdeu o pai (“Dizem que morreu de nó nas tripas”) e acabou educado pelos avós maternos. “Minha mãe tolerou a viuvez por um período curto e depois se casou de novo. Formou outra família. Somos treze irmãos no total – dois do primeiro casamento dela e o resto do segundo.”
Exímio boiadeiro, o avô de Farias gerenciava uma fazenda. “Era uma propriedade gigante, com açude e quinhentas cabeças de gado. Se um boi escapasse do pasto e desaparecesse mata adentro, um punhado de vaqueiros saía à procura do bicho. Demoravam três, quatro, cinco dias para encontrar, tamanha a imensidão daquelas terras.”
Em 1958, Farias trocou Santa Quitéria pelo Rio. Estava com quase 17 anos, mas ainda não concluíra o ensino fundamental. “Meu padrinho, um carpinteiro, veio antes. Ele já morava no bairro de Botafogo quando me convidou: ‘Esquece a roça! Você não vai ter futuro nenhum se ficar no Nordeste.’ Eu escutei o conselho e parti.” No Rio, não retomou os estudos. “Só quis saber de trabalhar.”
A auxiliar de portaria também é de uma pequena cidade interiorana – Gravatá, em Pernambuco – e passou parte da infância na zona rural. “Meu pai plantava fumo, milho, aipim, feijão, café, inhame, algodão, batata-doce… Tudo no nosso sítio, um cafundó sem iluminação, sem vizinho, sem nada. Me lembro apenas de um senhor que morava perto da gente, um ex-escravo velhíssimo. Ele vivia num ranchinho. Vivia, não. O homem se escondia… Ficava assustado quando via algum de nós e se enfurnava dentro do rancho. Sempre que dava tempestade, os coqueiros do sítio balançavam à beça e os relâmpagos cortavam a escuridão. Eu morria de medo.” Depois de cada colheita, o pai transportava a produção para um armazém dele próprio, onde a negociava.
“Tive 27 irmãos”, prossegue a auxiliar de portaria. “Minha mãe se casou duas vezes, e meu pai, três. Por isso, espalharam tanto filho pelo mundo. Uma porção já morreu. Nem sei quantos. Não conheci todos.” Beirando os 9 anos, Lourdes se mudou para o Recife com a família. “Estudei bem pouco. Desisti da escola porque a matemática nunca entrou na minha cabeça. Somar, dividir, multiplicar, resolver expressão… Complicado demais para mim.”
Durante a adolescência, mesmo sem terminar o antigo ginásio, conseguiu “um empregão” na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Como recepcionista e ajudante geral, servia um grupo de técnicos oriundos da França, principalmente engenheiros agrônomos. Em 1967, assim que saiu da autarquia, decidiu migrar para Niterói, onde já estavam duas sobrinhas. “Mas não gostei de lá, não. Preferi tentar a sorte no Rio.”

Baixa e rechonchuda, a auxiliar de portaria tem a pele muito clara, com manchas de sol tão numerosas que a deixam um tanto rajada. “Sou do tipo galega”, resume. Na juventude, orgulhava-se dos cabelos loiros, que agora se tornaram avermelhados. “Tintura, né? Quando não pinto, ficam brancos como as páginas de um caderno.” Ela não dispensa uma boa conversa e normalmente a tempera com ironias sutis ou expressões em francês. Aprendeu o básico do idioma na Sudene. Bonjour! Comment ça va?, costuma me dizer pela manhã.
De poucas palavras, Farias se considera “pavio curto, um sujeito sem papas na língua” e não aparenta a idade. Embora meça apenas 1,60 metro, é troncudo e aprumado, uma herança da época em que praticou jiu-jítsu. No horário de trabalho, veste invariavelmente calça escura e camisa social de mangas curtas, azul ou amarela.
À diferença do marido, a auxiliar de portaria não se alarmou quando tomou conhecimento do rapaz internado. “Vou me apavorar com vírus? Tenho mais medo de levar uma facada ou de um carro me atropelar. Se bem que é besteira pensar nessas infelicidades também. Estamos todos nas mãos de Deus. Ele decide a nossa hora. Nem vírus, nem ladrão, nem motorista bêbado vai nos matar se o Senhor não quiser.”
Evangélica há trinta anos, ela pertence à Igreja Internacional da Graça de Deus – denominação neopentecostal liderada pelo pastor R. R. Soares –, mas já integrou a Universal do Reino de Deus, capitaneada por Edir Macedo. “Hoje percebo que, no fundo, não seguia religião nenhuma antes de virar crente. Eu às vezes acompanhava a missa dos católicos. Outras vezes, botava o cordão protetor da Igreja Messiânica ou aparecia no centro espírita para jogar búzios. E jamais deixava de olhar o horóscopo. Era viciada. Comprava o jornal mesmo quando o dinheiro minguava, só para checar o meu signo.”
A auxiliar de portaria acredita que Deus “mandou a pandemia” com a intenção de alertar a humanidade. “A Bíblia afirma que Jesus vai voltar, certo? Que vai caminhar novamente sobre a Terra. Acontece que Jesus é santo. Como um santo vai andar num lugar tão pecaminoso feito a Terra de agora? Enquanto o pessoal cometer erros, as pestes vão atormentar a gente. As pragas não são novidade. Já enfrentamos muitas, e outras piores virão. Peste serve para os humanos se corrigirem. O campo precisa ficar mais limpo, entende? Caso contrário, Jesus não pode voltar.”
E o que ocorrerá quando Cristo retornar? “Ele vai salvar todos os que se converteram. Vai levar os fiéis para o Céu. Depois, meteoros atingirão a Terra. O planeta vai se consumir em fogo, e os raros que não se converteram sofrerão as consequências. Vão continuar na Terra, mas uma Terra destruída, sem água, sem comida. Pior: vão ganhar uma marca na testa, o número 666, que é o da Besta.”
Ela observava a inquietação do marido e comentava: “O Zé ainda não se tornou evangélico. Então treme de medo quando pensa na morte. Ele toma todo o cuidado para se manter vivo, mas não adianta: se Deus chamar, tchau! A minha salvação é Jesus. A do Zé, o álcool em gel e lavar a mão.”
O zelador, sorrindo, retrucou: “A Lourdes adora me tachar de ateu. Bobagem! Sou católico. Rezo o Pai-Nosso antes de dormir e me levantar, gosto de Nossa Senhora Aparecida e, se passo na frente de uma igreja, me benzo. Só não vou à missa nem acredito que Deus envia praga. Ele não tem culpa da nossa desgraça. Imagina se iria mandar coisa ruim para a gente… O Satanás, talvez. Deus, nunca!”

Na quinta-feira, 19 de março, Farias me interfonou:
– Era mentira!
– O quê, Seu Zé?
– O papo da internação. O rapaz não pegou a doença. Está com a saúde em dia.
– Como assim? Quem inventou a história?
– A própria faxineira que cuida do 301. Inventou porque queria me assustar. Filha da mãe! Brincadeira mais sem graça! Fiquei sabendo quando liguei para a proprietária do apartamento, atrás de notícias do moço.
Um boato, afinal – ou uma fake news à moda antiga. O zelador, porém, não parecia bravo. Pelo contrário: dava a impressão de que levou a “pegadinha” macabra na esportiva.
– Que alívio! Porra! – suspirou.
Àquela altura, a síndica do prédio, Rosa Maranhão, já tomava uma série de providências na esperança de minimizar os perigos corridos pelo casal de funcionários e pelos moradores ao longo da pandemia. Fixou regras para o recebimento de entregas e o uso dos elevadores. Solicitou que o zelador e a mulher colocassem luvas antes de mexer com o lixo. Explicou como desinfetar o hall de entrada e os corredores.
Recomendou que utilizassem máscaras e álcool em gel durante o serviço. “O ideal seria conceder licença remunerada para os dois e arranjar substitutos temporários”, admite a síndica, uma psicanalista que ocupa o cargo desde 2012. “Só que, infelizmente, nosso caixa não tem reserva. E aumentar o condomínio em plena crise provocaria um fuzuê.”
Disciplinado, Farias procura seguir tanto as orientações da síndica quanto as das autoridades sanitárias. Suspendeu as visitas da filha e dos netos, guarda certa distância dos condôminos e entregadores, põe a máscara com regularidade, evita ir à rua e limpa tudo compulsivamente. “Sabe os botõezinhos dos elevadores? Passo álcool em cada um depois que alguém sobe ou desce.” Fumante dos 14 aos 38 anos (“Queimava dois maços de cigarro por dia”), sofreu um infarto há pouco menos de duas décadas, mas se recuperou bem. Para preservar a saúde do coração, andava à noite pela orla de Copacabana. Agora, perambula apenas dentro do edifício. “Caminho da porta de casa até a porta do prédio e volto. Faço isso um monte de vezes. Só paro quando completo 1 km.”
No resto das horas vagas, engrossa a audiência da Rede Globo (não assina canais pagos). Vê o Jornal Nacional, a novela das nove e o Big Brother Brasil. “Gosto demais do BBB! Não perco um.” Ele também adora futebol e torce pelo Flamengo, o que não o impede de acompanhar outras equipes. “Botafogo, Vasco, Fluminense… Jogo de qualquer time me interessa, e os da Seleção, mais ainda.”
Sua mulher, em contrapartida, quase não toma precauções. Vai às compras frequentemente e zanza sem necessidade pelo bairro. Não costuma usar máscara nem fica com “aquela psicose de álcool em gel pra cá, álcool em gel pra lá”. Agarra-se às crenças religiosas e à convicção de ter um sistema imunológico excepcional. “Na infância, comi um bocado de feijão, além de manga, jenipapo, laranja, banana, jaca, goiaba, araçá… Por isso, ganhei muita resistência. Minha única doença é a gula.”
Como o casal possui dois televisores, a auxiliar de portaria consegue driblar a Globo. “Deixo o Zé assistir às imoralidades dele e fujo para as novelas bíblicas ou para os cultos da Record.” De vez em quando, prestigia o apelativo Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes, comandado pelo jornalista José Luiz Datena, de quem se declara fã.
À semelhança do parceiro, jamais consulta a internet. “Não lidamos com negócio de computador, e-mail ou Facebook, e meu celular é de mil novecentos e bolinha.” Para “ouvir louvores”, mantém no apartamento um toca-CDs, que ela insiste em chamar de rádio.

“Não votei no Bolsonaro logo de cara, mas o homem está certo. A quarentena precisa acabar. Os idosos e as pessoas com sintomas devem permanecer em casa, lógico. Os jovens, não! Por que trancar um moço de 30 anos, uma mulher de 40? Se a turma não voltar rapidinho para o trabalho, o prejuízo será imenso. Vai começar a bagunça, o quebra-quebra, o fogaréu nos ônibus.” Quando discorre sobre o isolamento social que freou o país, Farias se exalta. No primeiro turno das últimas eleições presidenciais, ele votou em Alvaro Dias, do Podemos, “um político sério, limpo e competente”. No segundo, optou por Bolsonaro. “Deixar o Fernando Haddad vencer? Deus me defenda! Sou trabalhador, mas detesto o PT!”
A birra do zelador com os petistas começou no fim de 1989. Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva disputavam a Presidência da República. Farias apoiava o “caçador de marajás” e colou uma propaganda do candidato no vidro do Opala Comodoro. “Eu estava levando um turista para conhecer o Mosteiro de São Bento, se não me engano. Perto da Praça Mauá, tinha uns cabos eleitorais do PT. Assim que os caras viram a propaganda do Collor, me mandaram parar. ‘Tira o adesivo agora!’, gritaram. ‘Se não tirar, vamos destruir o carro!’ Me assustei à beça. Nunca vou perdoar aquele absurdo. Me fizeram arrancar a propaganda só porque eu não queria votar no Seu Lula?!”
Pelas mesmas razões do marido, a auxiliar de portaria advoga o término da quarentena. “Quem não é do grupo de risco deve pegar no batente. O país vai acabar se a maioria continuar de braço cruzado. Por enquanto, a favela está quieta, mas quando a fome apertar… O pessoal do morro vai descer e o pau vai cantar aqui embaixo.” Nas eleições de 2018, ela não compareceu às urnas. “Passei dos 70 anos. Não tenho mais que votar.” Mesmo assim admira Bolsonaro. “Também simpatizo com o Lula. Os dois falam a língua do povão. Só que, no prédio, ninguém suporta o Lula. Chamam de ignorante, de ‘sem-dedo’, de vagabundo. Por causa disso, não fico espalhando que gosto dele. Je ferme ma bouche, compreende? Calo a minha boquinha.”
Dirigindo o Opala Comodoro, Farias tomou outro susto – dessa vez, junto da família. “Foi em 1990. A gente voltava do Espírito Santo depois de quinze dias em Guarapari. Umas nove e meia da manhã, estacionamos num posto da estrada para abastecer. Aproveitei e bebi uma dose de conhaque. Um pouquinho mais tarde, cismei de ultrapassar um caminhão num trecho complicado da rodovia. Acho que o conhaque me tirou o juízo… No meio da ultrapassagem, percebi que iria me estrepar, porque o caminhão acelerou em vez de reduzir a velocidade. Resultado: joguei o Opala para a esquerda e capotei. Caí numa ribanceira. Estava com a Lourdes, a Giseli, uma amiga e um bebê de 8 meses. Ninguém se feriu, acredita? Um milagre dos grandes! Enquanto capotava, me lembrei de rezar: ‘Perdão, meu Deus! Fui muito descuidado. Se a gente ainda merecer, nos salve!’ Nunca vivi nada tão horroroso. Coronavírus é fichinha perto daqueles segundos em que o carro rolou pela ribanceira.”

No edifício de Copacabana, há mais nove idosos, além do zelador e da mulher. Dois resolveram passar a quarentena em outro lugar. Entre os que permaneceram, alguns se isolaram por completo e não aceitaram nem mesmo conversar. A pernambucana Gina, do 701, topou, mas com ressalvas: “Não venha aqui. Prefiro que você me encontre no térreo. E, por favor, não revele meu nome de verdade. Bote só o apelido. Odeio me expor.”
Ela acabou de comemorar 72 anos. Viúva de um motorista particular, deu aulas de matemática nos ensinos fundamental e médio até os 54. “Sou do tempo em que os professores acompanhavam os estudantes de perto. Se um aluno faltasse demais, a gente ia à casa dele e tentava descobrir o problema.” Gina conta que lecionou sempre no Rio, tanto em escolas públicas como em privadas. Mudou-se para a capital fluminense ainda criança, após deixar São José do Belmonte, onde nasceu.
Agora que está aposentada, virou estudante de novo. Cursa o último semestre de teologia na Pontifícia Universidade Católica (PUC). Também frequenta oficinas semanais de interpretação bíblica em igrejas da Zona Sul.
Embora tenha três filhas e sete netos, vive sozinha, o que nunca a incomodou. Com a chegada do novo coronavírus, porém, a solidão se transformou num fardo. Hipertensa e diabética, cumpre à risca o isolamento social. “Sai pouquíssimo, apenas para o mercado ou a farmácia, geralmente de luva, máscara, calça comprida e sapato fechado. Quando volta, se despe, toma banho, lava as roupas e esteriliza as compras. A contragosto, abandonou as caminhadas diárias pelo calçadão e já não papeia com os amigos nos cafés do bairro nem vai à missa ou à praia. Interrompeu as oficinas bíblicas e substituiu as aulas presenciais da PUC por virtuais.
Confinada no apartamento acanhado do sétimo andar, resta-lhe ouvir a JB FM, ler, cozinhar, ver filmes em canais pagos, fazer crochê e se exercitar sob a orientação de tutoriais que garimpa na internet. “Me ocupo bastante. Mesmo assim, é bem duro… A fase mais difícil que atravessei em 72 anos. Sinto saudades da antiga rotina e principalmente da família. Tenho adoração por meus netos. Sou chameguenta. Sofro muito com a distância deles.”
Recentemente, Gina recebeu o telefonema desesperado de uma conhecida. “Fiquei péssima. Uma senhora tão bonitinha, uma artesã de mão-cheia, pensando em se matar… ‘Não aguento mais, Gina! Só aparece notícia ruim na televisão.’ Respondi: ‘Então desliga a tevê! Você precisa se desintoxicar! Suicídio é pecado mortal!’”
Às vezes, a professora se pergunta o que Deus está querendo nos dizer. “Ele parou o mundo inteiro. Por quê? Será que se entristeceu com tanta prostituição, tanto homossexualismo, tanto travesti?”

De tão magro, elétrico e desengonçado, o recifense Edmundo Amaral, do 801, lembra os mamulengos, aqueles fantoches típicos do Nordeste. No prédio, todos o tratam por Comandante. Ele próprio se apresenta desse jeito: “Muito prazer, Comandante Amaral.” Ingressou na Marinha quando adolescente e se aposentou em 1987, como capitão de mar e guerra. “Passei quase mil dias a bordo de navios.” Tem 82 anos e três filhos, incluindo um enteado. Com frequência, usa bonés, camisetas e bermudas que exibem o distintivo do Flamengo.
Foi morar sozinho em 2017, após se separar da segunda mulher, e ainda não aprendeu a cozinhar. “Sobrevivo à base de congelados. Lasanha, almôndega, essas bostas. Se me dá na telha, encomendo um franguinho de padaria.” Hoje goza de boa saúde, mas já amargou um câncer de pulmão.
Concordou em me encontrar no térreo e, durante nossa conversa de meia hora, proferiu uma enxurrada de declarações contundentes:
“Você é da Folha? Do Globo? Se for, não quero papo. Jornalecos sem-vergonha! Mentirosos, terroristas, ‘subversas’, comunas, safados, apátridas! Um nojo! Tomara que o Clube Naval cancele a assinatura dos dois.”
“Não me separei de ninguém, não. Ela é que se separou de mim. Resolveu cuidar da mãe doente em São Paulo. Compreendo, mas não dá, né? Até parece que vou me mudar para São Paulo… Lugarzinho irritante… Sem praia, com um clima terrível e repleto de gente dizendo ‘Orra, meu!’ Tô fora!”
“Como me definir em poucas palavras? Escreva: flamenguista e contra o PT. Ponto final.”
“Note bem: não gosto do Bolsonaro. Gosto é do que o Bolsonaro defende.”
“Se o entregador da farmácia pode trabalhar em plena epidemia, por que o vendedor de sapatos não pode? Isolamento, sim, mas só para o grupo de risco.”
“O coronavírus é uma sacanagem da China, meu amigo! Tenho certeza. Comunista não presta. Todos filhos da puta! Se necessário, matam sem dó. Os chineses deixaram o vírus se espalhar porque desejam que a economia do mundo vá para o buraco. Assim, conseguirão levar as empresas dos outros países a preço de banana. Está na cara!”
“Respeito a quarentena, claro. Sou velho pra cacete, porra! Mas acho um saco! Ridículo! Vontade de chutar o balde! Manja o leão trancado na jaula? Não posso nem ver as namoradas. Para suportar o tédio e diminuir a ansiedade, encaro dois fitoterápicos por dia, um de manhã e outro à noite.”
Toda vez que há panelaço nas redondezas contra o presidente da República, o Comandante vai até a janela e grita: “‘Fora, Bolsonaro’, merda nenhuma! ‘Fora, corona’, pô!”

Em meados de abril, quando desci para pegar uma encomenda, Farias me chamou. Ele tomava conta da portaria, como de hábito. “Andei pensando…”, me disse, circunspecto. “No fundo, estou em isolamento desde que cheguei aqui, há quase trinta anos. Zelador trabalha seis dias por semana e só folga um. Vive sempre confinado. É uma espécie de Big Brother, mas sem a piscina…
(revista piauí)

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

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quarta-feira, 1 de agosto de 2018

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segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

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