sexta-feira, 1 de março de 2024

Sem pai nem mãe

O primeiro Mickey, de 1928, finalmente se livra da Disney e ganha permissão para aloprar nos Estados Unidos

Se gostasse de pagode romântico, o Mickey agora poderia cantarolar, à moda do Só pra Contrariar: O que é que eu vou fazer/Com essa tal liberdade? Desde o começo de 2024, o camundongo mais famoso, querido e lucrativo do mundo caiu em domínio público nos Estados Unidos e está livre da Disney. Para que exatamente? Talvez para beber e fumar de novo. Ou para falar palavrões, emitir opiniões políticas, abrir a relação com a Minnie… Ideias não faltam, como bem demonstram os doze cartunistas que, nesta edição da piauí, imaginaram o personagem em situações nada habituais.
O Mickey que se libertou, porém, é apenas o de 1928. As outras versões do roedor continuam obedecendo às normas da centenária empresa californiana. O ratinho alforriado se distingue do atual por ter um formato menos arredondado, dispensar as luvas e, o mais importante, não ser colorido. Ele apareceu no dia 18 de novembro daquele ano, em O Vapor Willie, curta-metragem de sete minutos que arrebatou a plateia do Colony Theatre, um cinema de Nova York.
A produção logo virou um clássico – e não somente porque apresentou o personagem que iria se tornar mascote da Walt Disney Company. Também chamou a atenção pelo fato de a trilha e os efeitos sonoros estarem totalmente sincronizados com a ação, um prodígio técnico para a época. Mickey e seus parceiros de cena, todos animais, não diziam uma única palavra, mas assobiavam, gargalhavam, mugiam, cacarejavam, miavam e soltavam uns resmungos. A turma viajava no barco a vapor, onde a pancadaria corria solta. O comandante – um gigantesco felino – maltratava o camundongo, que maltratava o papagaio, o gato, os porcos, o ganso… Ou melhor: Mickey descia a lenha nos bichos para extrair deles sons ritmados e, assim, executar uma alegre música folclórica, Turkey in the straw. Outros tempos…
Em maio e agosto de 1928, o roedor já protagonizara os curtas O avião do Mickey e O gaúcho galopante. Os filmes, originalmente mudos, ficaram meses na gaveta. Só estrearam depois de O Vapor Willie e em versões sonorizadas. Uma simpática Minnie participava das três produções como coadjuvante. O gigantesco felino que fazia bullying com o Mickey ganharia, por aqui, a alcunha de João Bafo de Onça. Quando O Vapor Willie surgiu, Walt Disney amargava sérios problemas financeiros. O sucesso estrondoso do curta o tirou do buraco. Não à toa, o artista nutria especial afeto pelo ratinho e o considerava um poderoso amuleto. De início, Mickey se chamava Mortimer, nome que Lillian Bounds – animadora e mulher de Disney – julgava excessivamente formal. Ela sugeriu a mudança, e o marido topou. O camundongo dos primórdios, além de distribuir porrada, curtia bebida e cigarro. De 1930 em diante, ficou mais certinho, devido à imensa popularidade que alcançou. Um astro daquele tamanho não poderia dar maus exemplos.
As leis americanas protegem os direitos autorais de uma obra audiovisual durante 95 anos, contados a partir do seu lançamento. A entrada em domínio público do Mickey ancestral garante que qualquer pessoa exiba ou compartilhe O Vapor Willie nos Estados Unidos sem pagar nada à Disney. Permite-se também parodiar ou alterar o curta. No Brasil, contudo, o papo é outro. A legislação prevê que os direitos patrimoniais do autor sobre produções audiovisuais perdurem por 70 anos, e não por 95. Entre nós, portanto, o Mickey de 1928 tem licença para aprontar desde janeiro de 1999. Mas, até o momento, parece que não está aproveitando muito a emancipação…
(revista piauí)

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Frangoesa e jabuticabra

Um ás da guitarra viciado em trocadilho

Recentemente, o guitarrista Marcinho Eiras abriu o Instagram e se deparou com a selfie de uma amiga que, dentro de um avião, aguardava a decolagem. Ele não titubeou. Foi até o espaço de comentários e escreveu “jato indo”. Poucos dias depois, num restaurante, pediu “aquele peixe que pulou do prédio”. O garçom, claro, não compreendeu. “Aaaaaa… tum!”, explicou o músico de 52 anos, com ares de menino travesso. Em outra ocasião, contou para a mãe que pretendia estudar na escola de inglês recém-inaugurada pelo Sérgio Mallandro, a CCIéIé. “Eu simplesmente não resisto”, diz Eiras. “Faço trocadilhos o tempo inteiro, mesmo em momentos inoportunos: no Uber, nas reuniões de trabalho, numa consulta médica ou num encontro amoroso. Virou uma obsessão.”
Não por acaso, há quem o considere bobo, infantiloide, sem noção, mala ou o próprio tio do pavê. “Pior que sou… Nem adianta negar”, reconhece, enquanto despeja mais uma leva de gracinhas: “Qual é o inseto que só come madeira cor-de-rosa? Cupink! Qual o doce favorito dos átomos? Pé-de-molécula! Quais as frutas que os veganos detestam? Frangoesa e jabuticabra!”
No entanto, há também os que o julgam genial, seja por se lembrar rapidamente de trocadilhos clássicos, seja pela agilidade com que inventa novos. Desde 2016, o guitarrista integra um grupo de WhatsApp em que todos os diálogos precisam conter jogos de palavras. Entre os 51 membros, prevalecem os humoristas, como Marcos Castro, Ed Gama, Criss Paiva, Talita Halliday e Marcio Ballas. Outros participantes são revisores de texto, produtores, dubladores, roteiristas ou mesmo engenheiros e matemáticos. Até o saxofonista Derico, que compunha o sexteto de Jô Soares, está ali. No grupo, Eiras já atingiu os patamares de “máquina”, “mito” e “monstro” – termos que designam os craques do time. “Por que o padre bateu o carro? Porque deu uma rezinha! Por que o lápis resolveu malhar? Para ficar grafitness! Por que não pode soltar pum numa loja da Apple? Porque lá não tem Windows!”
Paulistano da Vila Mariana, o guitarrista demonstrou talento musical antes de se alfabetizar. Com apenas 4 anos, tocava canções de novelas ou sucessos de Roberto Carlos que pescava na televisão. Começou dedilhando o piano de uma tia-avó. Mais tarde, se deixou seduzir pela bateria e finalmente aderiu à guitarra. Frequentou um conservatório na pré-adolescência, mas logo o abandonou, para desgosto do pai. Até hoje, aprende tudo de ouvido e não sabe ler partitura. “É mal de família. Meu avô materno arrasava no acordeão e meu tio se tornou um exímio contrabaixista profissional. Nenhum dos dois estudou música formalmente.”
Em 1997, Eiras fez parte do Rádio Táxi, grupo que ganhou fama com EvaSanduí­che de Coração, Garota Dourada e outros chicletes do pop. Também engrossou por meia década a banda do extinto Domingão do Faustão. No programa, acompanhou cantores dos mais diversos estilos: Ivete Sangalo, Vanessa da Mata, Zezé Di Camargo e Luciano, Agnaldo Rayol, Latino, Reginaldo Rossi, Felipe Dylon…
Entretanto, o que realmente distingue o guitarrista dos colegas brasileiros é o domínio de uma técnica difundida pelos americanos Eddie Van Halen e Stanley Jordan: a two-handed tapping. “Os adeptos do método tocam sem palheta e unicamente com as cordas que estão no braço da guitarra”, esclarece o músico. “Não usamos a porção das cordas que atravessa o corpo do instrumento. Extraímos do braço tanto a melodia quanto a harmonia das composições.” Graças à técnica, os instrumentistas conseguem tocar duas ou três guitarras de uma só vez. No Instagram e no Facebook, Eiras gosta de publicar vídeos em que realiza a façanha. São hipnotizantes.
O virtuosismo possibilita que o guitarrista promova workshops e se exiba regularmente no Brasil, na Europa, na Ásia e nos Estados Unidos. Ele costuma entrar em cena sozinho ou à frente do Projeto BePop – trio cujo nome é um trocadilho com bebop, gênero que inaugurou o jazz moderno.

O fascínio de Eiras por jogos de palavras também nasceu na infância. “Eu pirava sempre que ouvia bobagens do tipo: ‘Como se chama o dono do cemitério? Seu Pultura.’ Para mim, não havia ninguém mais inteligente do que os autores de trocadilhos.” Em paralelo, o menino descobriu o universo das anedotas – inclusive as chulas ou preconceituosas – e tratou de decorar o maior número possível delas. “Acumulei um repertório tão gigantesco que o pessoal do colégio vivia me pedindo para contá-las.”
À época, o pai de Eiras tinha o hábito de escutar o comediante Juca Chaves no toca-fitas do carro enquanto passeava com o filho. “Foi outra descoberta incrível. O Juca tocava modinhas satíricas num alaúde durante os espetáculos. Unia o humor à música.” Por volta de 2010, o guitarrista – que também é cantor – resolveu imitá-lo. “Botei alguns causos, piadas e trocadilhos nos meus shows. O público se amarrou tanto que não parei mais.”
Hoje, Eiras se apresenta até em clubes de stand-up. “Qual o país onde se prepara o melhor omelete? Kosovo! Se virasse terrorista, o Tiririca participaria de que grupo? Do Abestado Islâmico! O Cebolinha entrou no cinema com dois sorvetes para ver qual filme? Lambo 2 – A Missão! Que posição sexual faz o Galvão Bueno subir pelas paredes? Anal do Cezar Coelho!”

Embora crie trocadilhos diariamente, o músico não reivindica a autoria de nenhum. Tampouco se priva de roubar as invenções alheias. “Jogos de palavras não têm dono. São como os memes. A gente recebe um, morre de rir, passa adiante e não se preocupa em saber quem bolou aquilo.” De uns tempos para cá, Eiras vem apostando justamente na disseminação de memes – um mais tosco que o outro. Ele próprio os elabora, ainda que mal domine programas de design. Há uns meses, por exemplo, concebeu o Nanando Reis, fotomontagem em que o baixista dos Titãs aparece dormindo de óculos escuros numa cama com lençóis muito brancos.
O guitarrista afirma que inventa trocadilhos quase sem pensar. “Às vezes, quebro a cabeça. Mas, na maioria dos casos, as ideias pintam naturalmente. Vejo ou escuto algo que me inspira e, pronto, transformo o banal em zombaria.” O processo se assemelha à improvisação no jazz. “Quando toco, amo o freestyle. Quando falo, também. Sinto prazer em contaminar os ambientes com brincadeiras infames. Boa parte das pessoas curte as minhas tolices. Raras se irritam de verdade: ‘Porra, Marcinho! Jura que você se orgulha de uma babaquice dessas?’”
Solteiro e sem filhos, Eiras mora num tríplex em São Paulo. Mantém os cabelos loiros sempre compridos e se veste de maneira jovial. Toda semana, pratica surfe na Praia Grande, município da Baixada Santista que frequenta desde criança. À espera da melhor onda, não perde a oportunidade de pentelhar os companheiros do lado: “Deve ser horrível dar aula de natação. O professor ensina, ensina, ensina, e o aluno nada!”
(revista piauí)

sábado, 1 de julho de 2023

O sumiço de Teresa

Depois de encalhar em Angra, orca-pigmeia não manda mais notícias

Cadê Teresa? Ela nunca dava as caras. Numa tarde de março, chegou sem avisar. Estava bem desorientada. Precisava de ajuda. Muita gente se comoveu e fez de tudo para animá-la. Funcionou. Teresa se recuperou, ainda que lentamente. Ficou tão aprumada que, certa manhã, pegou carona num barco e caiu fora, mas jurou que mandaria notícias. Por um tempo, cumpriu a promessa. Enviou mensagens bastante alentadoras, em que demonstrava se sentir cada vez melhor. De uma hora para outra, porém, meteu um ghosthing e sumiu sem dizer tchau. Será que, um dia, vai aparecer novamente?
Não, a Teresa daqui não tem nenhum parentesco com aquela do Jorge Ben Jor, que resolveu sambar no morro e jamais voltou. A protagonista desta história é uma orca-pigmeia. Como pertence à família dos delfinídeos, os cientistas a consideram um tipo de golfinho. Ela, de fato, lembra os cetáceos que equilibram bolas ou cruzam arcos em parques aquáticos. Não dispõe, no entanto, do “bico” característico de seus parentes mais conhecidos. Em vez de pontiaguda, a boca de Teresa é arredondada. Daí a associação com a orca, também um golfinho sem “bico”, apesar de o senso comum defini-la como uma baleia.
Predominantemente negra, Teresa exibe manchas esbranquiçadas na barriga. Mede 2,25 metros e pesa 116 kg. Ninguém sabe direito quando nasceu, mas tudo indica que se trata de um mamífero adulto (as orcas-pigmeias vivem cerca de trinta anos). Com 22 dentes na mandíbula superior e 26 na inferior, gosta de comer peixes e lulas. Costuma se deslocar em grupos de pelo menos quatro indivíduos. Não raro, um deles mordisca a nadadeira do outro. “É um jeito de se comunicarem. Humanos trocam abraços e apertos de mãos. Golfinhos se mordem ou compartilham esfregadinhas”, explica o biólogo Rafael Ramos de Carvalho, pesquisador da Uerj.
As orcas-pigmeias normalmente apresentam comportamento dócil. Só se tornam agressivas em cativeiro. Identificadas pela primeira vez na segunda metade do século XIX, não correm risco de extinção, conforme a União Internacional para a Conservação da Natureza. Habitam águas tropicais e subtropicais de todo o mundo, mas são difíceis de encontrar (e estudar) porque nadam longe da costa, nos chamados taludes – regiões oceânicas com mais de 200 metros de profundidade.

Às 16 horas do último dia 4 de março, dois policiais militares patrulhavam a Ilha Grande, em Angra dos Reis, quando avistaram Teresa. Ela havia se perdido e encalhado na Praia de Provetá. Estava muito distante de casa, já que o talude fica a 140 km daquele ponto do litoral fluminense. “Os golfinhos se desorientam por diferentes motivos”, afirma Carvalho. “Às vezes, o ruído de navios ou de atividades petrolíferas os atrapalha. Outras vezes, o desnorteamento resulta da poluição marítima ou de alguma doença.”
Embora respirem fora d’água, pois têm pulmões e não brânquias, as orcas-­pigmeias podem morrer caso encalhem e ninguém as acuda. Em terra, a força da gravidade lhes pressiona excessivamente os órgãos, o que acaba por sobrecarregá-­los. Não bastasse, a pele delas resseca bem rápido e ganha feridas preocupantes. Há, ainda, o alto nível de estresse que qualquer bicho selvagem manifesta quando sai do habitat natural. Na esperança de salvar Teresa, a dupla de PMs a isolou e pediu auxílio especializado. Os biólogos, veterinários e oceanógrafos convocados logo perceberam que o golfinho necessitava de socorro hospitalar. Na manhã do dia 5, depois de quinze horas encalhada, ela finalmente pegou uma lancha para o Centro de Reabilitação e Despetrolização de Animais Marinhos, também em Angra. Foi lá que a batizaram de Teresa, uma brincadeira com o nome científico das orcas-pigmeias (Feresa attenuata).
Exames mostraram que a paciente desenvolvera uma pneumonia grave, além de alterações neurológicas que a faziam nadar sem direção e flutuar de maneira inadequada – seu corpo sempre virava de lado. Por duas semanas, doze profissionais cuidaram de Teresa em três piscinas de tamanhos diferentes. “Nunca a deixávamos sozinha. Mesmo à noite, tinha alguém dentro d’água para impedi-la de afundar ou ficar parada durante muito tempo”, conta a veterinária Anneliese Kyllar. A médica é uma das coordenadoras do Projeto de Monitoramento de Praias da Bacia de Santos (PMP-BS), executado pela Petrobras desde 2015 em parceria com diversas instituições públicas e privadas. A iniciativa busca diminuir o impacto que a produção e o escoamento de petróleo exercem sobre as aves, os mamíferos marinhos e as tartarugas nos municípios litorâneos de Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro.

Assim que Teresa melhorou, iniciaram-se os preparativos para devolvê-la à natureza. A equipe que se encarregou da reabilitação fixou um pequeno rastreador na barbatana da orca-pigmeia. O aparelhinho retangular atua como um GPS. “Precisávamos saber se, depois de solta, Teresa retornaria para o talude”, diz Carvalho. O pesquisador da Uerj integra o Laboratório de Mamíferos Aquáticos e Bioindicadores, que faz parte da faculdade de oceanografia e assessora o PMP-BS. “Alcançar de novo o talude seria o principal indicativo de que Teresa sarou totalmente e conseguiu se reorientar”, prossegue o biólogo.
Em 18 de março, um barco partiu cedinho de Angra com a orca-pigmeia no convés. Ela estava sobre um colchão inflável. Um grupo de veterinários averiguava a frequência cardiorrespiratória e a temperatura do golfinho. Também molhava regularmente seu corpo com água salgada. “Navegamos por duas horas e percorremos uns 35 km”, recorda Carvalho. “Quando cruzamos a Baía da Ilha Grande, libertamos Teresa.”
O rastreador indicou que, num primeiro momento, a orca-pigmeia se manteve perto da costa fluminense. Passou pela Barra da Tijuca e pelas Ilhas Cagarras. Na altura de Maricá, se afastou das zonas costeiras até atingir o talude em Arraial do Cabo. Depois, desceu para São Paulo e atravessou o Paraná. Ao longo do trajeto, zanzou por mares com quase 2 km de profundidade. “Não fazemos ideia se Teresa arranjou companhia. O rastreador não capta informações desse tipo”, esclarece Carvalho.
O aparelho transmitiu a última localização da orca-pigmeia em 8 de abril. Ela ainda estava no talude, mas se aproximava de Florianópolis. “Perdemos o sinal do rastreador. O equipamento deve ter quebrado ou ficado sem bateria. Uma pena…”, lamenta o biólogo. “Rastreadores não funcionam para sempre, claro. O de Teresa nos abasteceu de dados por 22 dias. Já houve casos, porém, em que os aparelhos duraram mais de sessenta.”
O bom é que, enquanto se comunicou com os pesquisadores, o golfinho provou que esbanjava saúde. Antes de Teresa despontar na Ilha Grande, o PMP-BS registrou apenas um outro encalhe de orca-pigmeia. Infelizmente, o cetáceo acabou morrendo. “Espero que Teresa continue no talude e nunca regresse para a costa”, diz Carvalho. “Agora, se ela arrumar um modo de enviar notícias, a gente agradece.”
(revista piauí)

segunda-feira, 1 de maio de 2023

“Abra os pernões, gostosinho!”

Mulher-gorila expõe a crueldade do machismo em monólogo que “abusa” do público masculino

Inicialmente, a impressão é de que a atriz Rafaela Azevedo está fazendo um simples pedido. “Você… Sim, você mesmo. Por gentileza, poderia trocar de lugar com aquela moça?”, indaga a protagonista do monólogo King Kong Fran para um jovem da plateia, num teatro do Rio de Janeiro. Surpreso, o rapaz de barba concorda sem reclamar. Ele usa camisa e bermuda claras. A atriz, posicionada no canto direito do palco, mira outro jovem e repete o apelo. Dessa vez, o alvo resiste. Também de bermuda, o homem não pretende trocar de poltrona com mulher nenhuma. “Ah, prefere continuar aí?”, certifica-se a artista. “Beleza. Mas você vai se arrepender…” Num piscar de olhos, o rapaz entende que não se trata de um pedido. É uma ordem, e só lhe resta ceder. “Método Paulo Freire… Funciona, viu?”, zomba a atriz.
O espetáculo mal começou e a estrela da noite já tem o público nas mãos. Ela desce languidamente do palco. Enverga uma fantasia de gorila, bem peluda. A máscara do primata, no entanto, não lhe oculta o rosto. Repousa sobre a cabeça da artista, como um boné. Os dois rapazes estão, agora, em poltronas vizinhas, perto de um terceiro jovem, que traja uma elegante calça comprida. A atriz caminha até o trio, equilibrando-se num salto plataforma de 10 cm, que a deixa com 1,80 metro de altura. Impetuosa, encara um dos homens de bermuda: “Pernão de fora, hein? E a camisa? Aberta no peito… Por que você se vestiu assim? É um código, né? Você deseja que a mulherada avance. Confessa! Que tal dar uma levantadinha para todo mundo admirar o material?” Completamente sem jeito, o jovem obedece. “Hmmmm… Resolveu meter o tímido, é?”, provoca a artista.
Ela aborda, então, o segundo rapaz de bermuda. “Outro gostosinho aqui. Você se incomodaria de abrir as pernas? Quero checar um negócio: a sua mala está marcando?”, pergunta com voz quase ingênua, enquanto aponta o pênis do jovem. “Está marcando ou não? Preciso saber… Abra os pernões! Não está?! Que absurdo! Por que você saiu de casa se não planejava mostrar o que interessa?!”
Cada vez mais afrontosa e destemida, a atriz sugere que os três homens fiquem de pé e se acariciem mutuamente. O de calça comprida não topa. Os de bermuda, ainda que embaraçados, aceitam compartilhar esfregadinhas nas costas. “Gosto quando vocês se pegam. Lindo, lindo!”, incentiva a artista. “Por que não se beijam?” Os rapazes, atônitos, suspendem imediatamente os carinhos. A atriz se agarra à oportunidade e explica: “Minha peça acontece no limiar do constrangimento e do terror. Mas apenas para metade da plateia… Para a outra metade, é só comédia, humor, curtição!”
Na verdade, o sarcasmo de King Kong Fran lava a alma de uns 80% do público. Desde a estreia, em novembro, as mulheres ocuparam praticamente todos os assentos dos teatros cariocas que receberam a montagem – o Ipanema, o Cesgranrio e o xp Investimentos, onde o monólogo estará de novo neste mês, depois de passar por lá em março. Os poucos boys que ousam se defrontar com o espetáculo de setenta minutos dificilmente saem incólumes da experiência. A protagonista inverte a ordem patriarcal e se transmuta em algoz dos “machos héteros” não somente porque assedia parte da audiência masculina. Ela também conta histórias reais de sexismo no showbiz, que desconcertam os marmanjos presentes. A intenção é fazê-­los sentir empatia pelo sofrimento feminino. Claro que as espectadoras se entregam freneticamente à catarse e estimulam a artista o tempo inteiro, com uma profusão de gritos, assobios, gargalhadas e aplausos. Há, inclusive, as que antecipam certas frases da atriz, numa demonstração de que assistiram à peça mais de uma vez.
O boca a boca dentro e fora da internet acabou tornando a encenação um inesperado sucesso. Dez mil pessoas já a prestigiaram – número elevadíssimo para os padrões brasileiros, sobretudo quando a produção é de baixo orçamento. King Kong Fran custou 30 mil reais, garimpados numa vaquinha digital.

Escrito e dirigido pela própria atriz e por Pedro Brício, o monólogo agrega várias linguagens: as do circo, do vaudeville, da performance e do cabaré burlesco. O espírito justiceiro das redes sociais norteia to­do o espetáculo, na medida em que a protagonista adota um tom assertivo, lacrador, e comanda um tribunal anár­quico, onde nenhum homem goza da presunção de inocência.
A montagem não tem exatamente uma trama. Em linhas gerais, apresenta a versão alongada de um velho quadro circense – o da Monga, mulher sensual que vira gorila e ataca a plateia. Se a fera do passado apenas urrava, a do século XXI fala pelos cotovelos e levanta sem trégua as bandeiras do feminismo. Curiosamente, quem se converte em gorila na peça é a palhaça Fran, alter ego de Rafaela Azevedo. A protagonista assume, portanto, duas facetas complementares: a da macaca tagarela e a de uma clown tão mordaz quanto egocêntrica, autoritária e perversa. Ela inicia a encenação numa jaula e rapidamente se liberta. Logo abaixo da cintura, exibe um dildo de 37 cm, ora utilizado como arremedo de microfone, ora como um simulacro de espada ou porrete. A música Dona do Prazer – adaptação de Toxic, sucesso de Britney Spears, gravada pelo grupo Forró na Veia – serve de trilha sonora. Um trechinho da letra: Bem que eu te avisei/Para não me tocar/Cuidado, baby/Você vai se queimar/É perigoso/Provar do meu amor.
Carioca de Honório Gurgel, bairro periférico onde também nasceu a cantora Anitta, a atriz de 31 anos criou Fran em 2013, durante uma oficina de palhaçaria. Inspirou-se na mãe, que já morreu e padecia de uma doença mental grave, o transtorno de personalidade limítrofe. “Ela não separava a fantasia da realidade. Dizia que iria telefonar para um galã de novela, por exemplo, e acreditava naquilo. Conversava horas pelo celular com absolutamente ninguém. Era triste, singelo e engraçado. Tudo junto”, relembra a artista. “Minha mãe fazia coisas em casa que muitos atores não conseguem fazer em cena.”
Diferentemente dos palhaços tradicionais, Fran evita pintar a face. Usa apenas uns cílios postiços enormes, uma peruca chanel preta e um batom vermelho, sempre borrado. Esforça-se para bancar a gata do pedaço, mas frequentemente naufraga e soa desajeitada, excessiva ou ridícula. Entre 2018 e 2019, a personagem estrelou o solo Fran World Tour, em que tentava executar diversos números de circo e fracassava.

Um terrível acontecimento está por trás do espetáculo que Rafaela Azevedo encabeça agora. Quando tinha 21 anos, a atriz sofreu um estupro. Ela se tratava com um osteopata, que a violentou durante uma consulta. “No momento da agressão, uma dúvida me atormentava: ‘Será que dei motivo para o cara se comportar assim? Será que agi de maneira inadequada?’ Eu me culpei… Por isso, não o denunciei.”
O ataque lhe deixou marcas profundas. “Meu útero adoeceu, parei de menstruar e senti cólicas horrorosas. Os sintomas me assombraram por um bom tempo.” Não bastasse, a moça se fechou para as relações amorosas. “Eu me enxergava como o problema. Então, pensava: qualquer homem que me atrair vai abusar de mim, já que sou fácil demais.”
Graças à psicoterapia e à leitura de ensaios feministas, a atriz reinterpretou o episódio. “Compreendi que posso reagir. Os agredidos têm direito à violência. Por que nem cogitei esmurrar o médico na hora do estupro? Não seria impossível. Faço ginástica, cultivo os músculos, exercito minha agilidade. Só que, em vez de peitar o agressor, aceitei o papel de vítima como inerente à mulher.” Uma década depois do ocorrido, com King Kong Fran, a artista finalmente reagiu.
(revista piauí)

quinta-feira, 6 de abril de 2023

A bandeira do Brasil que os patriotas destruíram

Três meses depois dos atos golpistas em Brasília, filhos do pintor Jorge Eduardo ainda não sabem o que o governo vai fazer com obra vandalizada do pai

Na manhã do dia 9 de janeiro, enquanto acompanhava pela tevê as repercussões dos ataques golpistas à Praça dos Três Poderes, Felipe Eduardo Alves de Souza teve a sensação de ver algo familiar. O designer carioca passava aquela segunda-feira em casa. “Quando a câmera mostrou os estragos no Palácio do Planalto, levei um susto. Entre as peças danificadas, avistei de relance uma pintura que parecia a do meu pai. ‘Será que os bolsonaristas avançaram no trabalho dele? Não faz sentido…’, pensei. Foi uma cena muito rápida. Não consegui ter certeza de nada, mas fiquei com a pulga atrás da orelha.”
Pouco depois, a imprensa divulgou a lista preliminar dos bens avariados pelos baderneiros no domingo, dia 8. “Infelizmente, minha suspeita se confirmou”, lamenta Souza. Uma foto publicada no site G1 flagrava a pintura Bandeira do Brasil em condições lastimáveis. A criação de Jorge Eduardo, o pai do designer, estava suja e molhada. Os vândalos a arrancaram da parede e jogaram no chão, inundado pela água dos hidrantes abertos durante a invasão. Em cima do trabalho, havia pedaços de vidro e pó químico de extintores. Marcas de dedos e calçados, além de arranhões, se espalhavam por toda parte.
Com 1,5 metro de largura e 2 metros de comprimento, a pintura de 1995 reproduz a bandeira nacional que tremula diante do Planalto. É um quadro hiper-realista, em tinta acrílica sobre MDF, material semelhante à madeira. De acordo com a Presidência da República, vale 80 mil reais. Vinte obras do palácio sofreram danos, incluindo a escultura O Flautista, de Bruno Giorgi, e a tela As Mulatas, de Di Cavalcanti, que leiloeiros estimam custar mais de 15 milhões de reais. Morto em abril de 2019, Jorge Eduardo abraçou o hiper-realismo na década de 1980 e virou entusiasta do gênero. Gostava de pintar cenários naturais ou urbanos e, principalmente, coisas. Quando as retratava, dizia-se um criador de “ilujetos”, imagens tão detalhadas que causavam a impressão de tridimensionalidade – ou a ilusão de se mirar um objeto. Em razão disso, muitos confundem os trabalhos do artista com fotografias de alta resolução.
“Por que os caras atacaram uma reprodução super fidedigna da bandeira brasileira? Eles não se consideram patriotas? Não usam verde-amarelo dos pés à cabeça? Não cantam o hino o tempo inteiro? Por que, então, investiram contra um símbolo que idolatram?”, pergunta Souza. “Num primeiro momento, aquilo me soou como um tremendo absurdo. Ou melhor: como um absurdo dentro de uma situação já totalmente nonsense. Questionar o resultado das eleições?! Ocupar o Planalto, o Congresso e o Supremo?! Quebrar tudo?! Depois, me liguei que não adianta esperar bom senso ou coerência de bolsonarista. Vândalo é vândalo. Destrói o que encontra pela frente.”
Mal leu o texto do G1 sobre a pintura mutilada, o designer de 59 anos o compartilhou no grupo de WhatsApp que mantém com os irmãos: Adriana, a mais velha, e o caçula Paulo. “Não fiz nenhum comentário. Apenas enviei a notícia”, relembra. Adriana e Paulo repudiaram o episódio. “Sorte do nosso pai que não verá uma barbaridade dessas”, escreveu a primogênita. Ao mandar o link, Souza quebrou uma regra que os irmãos buscam seguir de uns tempos para cá: não tratar de política, seja nas reuniões virtuais, seja nas presenciais. Desde 2016, quando o impeachment da presidente Dilma Rousseff se consolidou, eles estão rachados ideologicamente – uma cisão que se repetiu em inúmeras famílias do país.
O trio não se interessava muito por questões políticas e costumava ter opiniões parecidas sobre o assunto. No entanto, à medida que a Operação Lava Jato avançava e a extrema direita saía do armário, as divergências familiares ganharam corpo. Souza guinou para o campo progressista e hoje se identifica com a esquerda. Já seus irmãos permaneceram na seara conservadora. “Chegou uma hora que não conseguíamos mais dialogar”, conta o designer. “Para o caldo não entornar de vez, resolvemos abolir o tema de nossos papos.”     
Agora, três meses depois dos atos golpistas, os irmãos convergem pelo menos num ponto: desejam saber o que o staff do presidente Luiz Inácio Lula da Silva fará com a pintura de Jorge Eduardo. Vai recuperá-la? Vai exibi-la de novo? Quando e onde? Logo que tomou conhecimento da ofensiva contra o “ilujeto”, Souza divulgou um comunicado no site do pai com a esperança de que alguém do governo federal o lesse. Ele pedia que os responsáveis pela reconstituição do trabalho o contactassem a fim de obter informações sobre como executar a tarefa. Na mensagem, chamava as invasões de “eventos terroristas”. O designer também encaminhou um aviso similar para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Até o momento, ninguém o procurou.

O carioca Jorge Eduardo de Affonseca Alves de Souza nasceu em agosto de 1936. Era filho do arquiteto Wladimir Alves de Souza, que alcançou certa notoriedade no Rio de Janeiro por dirigir a Escola de Belas Artes, restaurar a Capela Mayrink, do século XIX, e projetar a Chácara do Céu, residência do industrial Raymundo Ottoni de Castro Maya. Localizada em Santa Tereza, bairro montanhoso e boêmio do Centro, a propriedade de feições modernistas se tornou um renomado museu, que abriga o acervo do antigo morador. À semelhança do pai, Jorge Eduardo estudou arquitetura, mas exerceu o ofício somente por dois anos. Achou melhor enveredar pela publicidade. Começou como ilustrador e se transformou em dono de agência. Depois, arranjou emprego numa loja de departamentos, onde assumiu a gerência de marketing. Em 1981, abandonou a carreira para se dedicar apenas à pintura, que o fisgara ainda menino e lhe trouxe sucesso comercial. Foi representado por um dos principais marchands e colecionadores do país, o romeno Jean Boghici. De 1972 até 2013, expôs em diversas capitais brasileiras, além de Paris, Nova York e Miami. A partir de 2014, deixou as mostras coletivas e individuais de lado.
O artista se orgulhava do autodidatismo. Aprendeu sozinho as técnicas pictóricas que iriam caracterizá-lo. De início, produzia quadros abstratos. Mais tarde, aderiu à figuração de viés realista e finalmente se especializou no hiper-realismo. Entre os papas do estilo, admirava o chileno Claudio Bravo, que se radicou em Tânger, cidade portuária do Marrocos.
O próprio Jorge Eduardo fotografava as paisagens, os objetos e os personagens que decidia pintar. Ele também cortava e preparava o MDF que utilizava como base para as obras, já que nem sempre recorria às telas. Por isso, se proclamava “carpintógrafo” – um híbrido de carpinteiro, pintor e fotógrafo.
Fã de automobilismo, participou de várias competições e se gabava da ocasião em que venceu Emerson Fittipaldi num rally. Não à toa, adorava pintar carrões. Reproduziu dezenas, como um Jaguar e uma Ferrari de 1954, um Chevrolet Bel Air de 1957, um Porsche de 1994 e a McLaren com que Ayrton Senna se sagrou campeão de Fórmula 1 em 1988. Por ironia, só tinha automóveis velhos. Durante muito tempo, guiou uma Belina mal-ajambrada, que apelidou de Velhina. Posteriormente, comprou uma Caravan de segunda mão.
Detestava ostentar – em parte, por temperamento; em parte, para não despertar a cobiça de ladrões. Certa vez, cogitou pintar manchas de ferrugem na Velhina com a intenção de deixá-la ainda menos atraente. Costumava passar o dia de camiseta puída, sandália e bermuda surrada. Curtia ir à orla do Rio ou de Niterói porque o mar e o Sol o fascinavam. Já a areia… Irritava-se com os grãos que teimavam em lhe impregnar a pele. Era bom de garfo e cozinhava pratos italianos ou franceses, muito celebrados pelos parentes. Não raro, levava um fogareiro para a praia, reunia os amigos e fritava pastéis de massa caseira ali mesmo. Batizou tais aventuras gastronômicas de “pastelâncias”. Desde moço, fumava e bebia com avidez. Não dispensava uma cervejinha ou uns tragos de Underberg, aperitivo bastante amargo de origem alemã. Por volta dos 60 anos, largou o álcool, mas continuou fumando.
Na faculdade de arquitetura, conheceu a polonesa Stella Freiwald, que migrou para o Brasil após resistir à Segunda Guerra. Os jovens, apaixonados, logo se casaram. A união, que durou até 1974, resultou nos três filhos e em três netos. Stella acabou desistindo de ser arquiteta, cursou medicina e virou clínica geral.
Casado novamente, o pintor não dividia o mesmo teto com a segunda parceira quando morreu, aos 82 anos. Jorge Eduardo e a publicitária Rachel Braga preferiam morar em casas separadas. Ele vivia sozinho num apartamento espaçoso e arejado, que também funcionava como ateliê. Disciplinado, pintava todos os dias. Não folgava nem sequer nos fins de semana. Da sala, onde trabalhava, conseguia avistar um lindo pedaço do bairro de Laranjeiras. Uma placa oval na entrada do apartamento anunciava: “Café, Bar e Restaurante Vira-Lata Dormindo”. O artista concebeu o letreiro depois de observar um cachorro que cochilava em plena Copacabana. “Pessoas zanzavam de lá para cá, ônibus tocavam as buzinas, camelôs vendiam bugigangas, e o bicho não dava a mínima”, descrevia o pintor. “Nada abalava a soneca do cãozinho. Quero que o meu apartamento seja assim: tranquilo como um vira-lata dormindo.”

Quando lhe perguntavam se gostava de futebol, Jorge Eduardo respondia: “Não. Gosto do Pelé.” Ele adotava estratégia idêntica sempre que se defrontava com questionamentos sobre partidos, ideologias ou governos: “Não gosto de política. Gosto do Fernando Henrique.” De natureza pacata, cultivava o bom humor e a delicadeza. Evitava, portanto, qualquer discussão acalorada, especialmente em períodos eleitorais. No máximo, zombava do Brasil com piadinhas do tipo: “Os cenários daqui são esplêndidos. A iluminação, maravilhosa. A trilha sonora, de primeira. O elenco, talentoso. Mas a direção… Péssima!”
“Meu pai se enxergava como um sujeito politicamente conservador. Um cidadão moderado, que rejeitava os fanatismos. Ele não tentava impor suas convicções e sabia respeitar as diferenças”, diz Souza. O apelido do cantor Erasmo Carlos – Gigante Gentil – também poderia servir para o pintor, que tinha quase 1m90, porte elegante, sobrancelhas grossas e uma densa barba branca.
A admiração de Jorge Eduardo por Fernando Henrique Cardoso aflorou na época em que o tucano comandava o Ministério da Fazenda (1993-1994). “A hiperinflação maltratava o país. Como praticamente todos os brasileiros, meu pai festejou o êxito do Plano Real, lançado pela equipe de FHC para frear a alta dos preços e reequilibrar a economia”, lembra o designer. Em 1995, assim que Fernando Henrique se tornou presidente da República, o artista resolveu presenteá-lo com a reprodução da bandeira nacional que está na frente do Planalto. Soprou a ideia para um de seus irmãos, o diplomata Carlos Eduardo Alves de Souza. “Meu tio mexeu os pauzinhos até receber sinal verde da presidência”, prossegue o designer. Se o pintor fizesse o “ilujeto”, o tucano o aceitaria. “Não sei em quanto tempo meu pai concluiu a tarefa. Eu chutaria que levou uns três meses. Ele havia fotografado a bandeira no começo da década de 1990. Por isso, tinha uma porção de imagens em que se basear.” O próprio artista entregou o presente para FHC numa cerimônia oficial.
Logo após a entrega, Jorge Eduardo se encontrou com Nelson Piquet, tricampeão de Fórmula 1 que morava em Brasília. A dupla já se conhecia porque o automobilista possuía uma obra do pintor. Em poucos dias, Piquet voaria para o Rio. “Que tal me acompanhar?”, propôs o esportista. “Vou no meu jatinho. Eu mesmo piloto.” O artista, tão fascinado por aviões quanto por carros, nem pensou em recusar a carona. Mais de duas décadas depois, Piquet frequentaria o noticiário como um bolsonarista ferrenho.      
Inicialmente, a pintura Bandeira do Brasil decorou o gabinete de Fernando Henrique no terceiro andar do Planalto. Em seguida, circulou por outras áreas do palácio até descer para o térreo, onde ficava quando os extremistas a atacaram. Muitos pronunciamentos de ministros e presidentes aproveitaram o trabalho como pano de fundo. Daí o “ilujeto” ter aparecido em algumas charges e reportagens. “Às vezes, estava lendo o jornal e me deparava com a foto de um político em que a obra do meu pai servia de cenário”, conta Souza.    
Jorge Eduardo retratou mais cinco bandeiras depois de pintar a de FHC. “Produziu todas sob encomenda – as de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, dos Estados Unidos, do Fluminense e do Flamengo”, afirma o designer. “Ele amava bandeiras, mas não por motivos históricos ou algo do gênero. Meu pai as apreciava como objetos. Valorizava a plasticidade, o colorido e a geometria delas.”
Em 1986, quase uma década antes de presentear o tucano, o pintor deu um quadro para outro presidente: François Mitterrand, o socialista que governou a França por catorze anos. Enquanto visitava uma galeria de Paris que exibia trabalhos do brasileiro, o mandatário os elogiou com entusiasmo. Jorge Eduardo fez, então, uma pintura semelhante às da mostra europeia e a ofereceu para Mitterrand. Era a reprodução hiper-realista de um casario vermelho, branco e azul (as cores nacionais francesas) que se situava no bairro carioca da Lapa. Uma janela de madeira, garimpada pelo artista entre restos de demolição, emoldurava o quadro. Quem contemplasse o conjunto teria a sensação de ver a paisagem através de uma vidraça. 

“Eu mesmo gostaria de restaurar a bandeira que os golpistas destruíram. Me sinto à altura do desafio, mas será que o governo toparia?”, indaga Souza. Pintor bissexto, o designer assessorou Jorge Eduardo entre 1991 e 1993. Limpava pincéis, misturava tintas, serrava placas de MDF, preparava telas e, acima de tudo, observava o pai em ação. Foi assim que aprendeu a técnica hiper-realista. “Na época, fiz dois ‘ilujetos’ sozinho: uma garrafa de Coca-Cola e uma de cerveja Heineken.”
Em 2019, Jorge Eduardo aceitou reproduzir outra vez a bandeira do Planalto. Um executivo do setor energético queria uma versão ligeiramente menor que a ofertada para Fernando Henrique. Pagou metade do preço combinado. Iria arrematar o valor tão logo a encomenda estivesse pronta. No entanto, mal iniciou a pintura, o artista ficou doente e morreu. Para honrar a dívida, o filho decidiu concluir o trabalho. Ele passou meses no ateliê do pai. Usava o material de Jorge Eduardo e colocava em prática os segredos que o pintor lhe ensinou. “Não conseguiria imaginar um jeito melhor de me despedir do velho.”
O designer lastima “o sequestro da bandeira nacional” pelo bolsonarismo. “É triste que um símbolo tão importante continue associado à extrema direita. O PT comete um erro de marketing quando prioriza o vermelho. Não tenho nada contra o vermelho, claro. Mas as cores do país – o verde, o azul e o amarelo – deveriam ganhar cada vez mais espaço no campo progressista. A camisa da Seleção e a bandeira do Brasil são de todos nós e não apenas dos que combatem a esquerda.”
Souza admite que já se deixou seduzir pelo antipetismo. “A retórica da Operação Lava Jato, que tachava o Lula e seus aliados como os maiores corruptos da nação, me balançou. Acreditei naquilo e saí às ruas para exigir o impeachment da Dilma. Fui mudando de opinião sobretudo por causa de minha mulher, Patrícia. Ela me abriu os olhos: ‘Vá se informar, pô! Vá ler! Questione os preconceitos da classe média. Escute as minorias. Preste atenção nas favelas, nos sem-teto, nas crianças fumando crack. O mundo não se resume à nossa bolha!’” Convencido de que precisava se repaginar, o designer votou em Fernando Haddad, do PT, na eleição presidencial de 2018. Quatro anos depois, apertou o 13, de Lula. “Jamais escolheria o [Jair] Bolsonaro. Seria inadmissível, o fim da picada!”
Diferentemente do irmão, a oncologista Adriana Alves de Souza Scheliga diz que não se interessa por política. “Dou muita palestra sobre medicina. Tenho de me atualizar constantemente na área e quase não sobra tempo para outros temas. Sem contar que ando bem desanimada com os políticos. A gente elege deputado, senador, prefeito, governador, presidente, e as coisas não mudam. Para piorar, as fake news confundem todo mundo. Não sabemos mais o que é verdade ou mentira quando lemos algo sobre um candidato, uma sessão no Congresso ou um programa de governo. A separação entre Judiciário, Executivo e Legislativo já não existe. Veja os ministros do Supremo Tribunal Federal: me parecem bastante tendenciosos. Eles não fazem justiça de verdade. Interferem nos demais poderes sem que ninguém os impeça. Como a gente vai se entusiasmar com a política diante de tantos despropósitos?”
Ainda que procure manter distância do assunto, a médica de 62 anos afirma não gostar do PT e de Lula. “Nunca votei no partido nem pretendo votar. Difícil esquecer as roubalheiras… No passado, pesquisei muito sobre socialismo e comunismo. São teorias lindas. Pena que não funcionem. As boas intenções acabam descambando para a tirania e a corrupção.” Ela rejeita, porém, a pecha de bolsonarista. “Combater o petismo não significa apoiar o bolsonarismo. Eu me defino como uma conservadora independente. Não considero o governo do Bolsonaro um desastre. Ocorreram avanços, especialmente na seara econômica. Mas também não defendo a gestão dele com unhas e dentes. O Bolsonaro é uma figura complexa, um sujeito turrão… ”
Nas eleições de 2022, a oncologista anulou o voto. “Faz tempo que anulo. Nenhum político me representa, nenhum presta. Por mim, as eleições deveriam ser facultativas. Voto obrigatório?! Países realmente democráticos permitem que o povo escolha se vai ou não comparecer às urnas. Eu só compareço porque tenho que estar com o título de eleitor em dia para renovar meu passaporte. Frequento congressos internacionais. Não posso correr o risco de me barrarem nos aeroportos.”
A médica conta que ficou deprimida quando soube dos ataques à pintura de Jorge Eduardo. “Nada justifica aquele quebra-quebra. Foram atos insanos, sem qualquer sentido. Os governos mudam, a história se altera, mas a arte deve sempre permanecer. Não compreendo quem invade museu para arruinar um Van Gogh, um Picasso… Senti uma tristeza imensa na hora em que vi o legado do meu pai destruído. Suspeito até que havia infiltrados ali. As manifestações da direita costumavam ser pacíficas. Por que, de repente, os ânimos se acirraram tanto? Me soa estranho.”
O filho caçula do artista, Paulo Alves de Souza, um marceneiro de 54 anos, preferiu não conversar com a piauí. Em fevereiro, a revista entrevistou Rogério Carvalho, diretor-curador dos palácios presidenciais, sobre o destino das vinte obras atacadas no Planalto. Ele disse que o governo enviara a maioria das peças para a reserva técnica, mas ainda não começara a reparação de nenhuma. Somente a tela As Mulatas e uma escultura de Frans Krajcberg continuavam expostas, mesmo com avarias. Carvalho também descartou que familiares de Jorge Eduardo possam recuperar a pintura Bandeira do Brasil. “Não convém que o autor de um trabalho danificado ou seus assistentes participem do restauro. É um princípio básico da conservação artística. Restaurar implica uma série de conceitos e habilidades que pintores ou escultores geralmente não dominam.” Por fim, o curador afirmou que o governo iria abrir “um processo licitatório” para viabilizar o reparo dos bens. “Ligue outra vez em março”, sugeriu. “Devo ter novas informações.” Desde então, Carvalho não atendeu mais a piauí, nem por telefone, nem por e-mail.
(revista piauí)

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

O amigo do Renan

Em novembro, vídeo com cena de uma sala de aula numa escola pública se espalhou pelas redes sociais. Conheça a história por trás das imagens

“Está tudo em ordem com o bebê, doutor?” Mal deu à luz num hospital público de São Paulo, a artesã Simone Cristina Rosa Cavallari fez a pergunta que qualquer mãe faz. “Está, sim. O menino parece saudável e herdou os olhos puxadinhos do pai”, respondeu o médico. Olhos puxadinhos?! “Por que o espanto? O pai não é nissei?”, indagou o obstetra. A artesã esclareceu que o pai – um metalúrgico – não tinha nem uma gota de sangue japonês, ou coreano, ou chinês. O médico, então, se alarmou. “Precisamos examinar melhor a criança”, disse, pouco antes de levá-la embora. A mãe só reviu o bebê 48 horas depois. Foi quando soube que o garoto nascera com Síndrome de Down. Por isso os olhos amendoados. Ele também sofria de problemas cardíacos, decorrentes da alteração genética.
A artesã não aceitou a situação. Retornou para casa bastante deprimida e mergulhou no negacionismo. Falava que o menino não lhe pertencia. “Trocaram os bebês. O meu continua na maternidade e logo vai chegar”, teimava. Rejeitou tanto a criança que abdicou de todos os cuidados neonatais. Não conseguia nem sequer amamentar o recém-nascido. “Eu já tinha uma filha de 4 anos, a Larissa. Ela é muito querida, mas fruto de uma gravidez inesperada”, conta Simone. “Como desejava compensar as dificuldades da primeira gestação, programei cada detalhe da segunda – e a Síndrome de Down, claro, passava longe dos meus planos. Talvez em razão disso reagi tão mal à notícia.”
Por ironia, a própria artesã havia enfrentado rejeição na infância. “Fui entregue para uma tia assim que nasci.” Os pais de Simone, paupérrimos, não podiam criá-la porque moravam na rua – mais precisamente, na Praça da Sé, em pleno Centro paulistano. Mesmo depois que se aprumou e arranjou um teto, o casal não pegou a garota de volta. “Minha mãe, uma baiana de pele bem negra, arrumou trabalho como empregada doméstica. Já meu pai… Não sei o que fazia, só sei que se viciou em jogo. Era branco, italiano, e migrou para o Brasil com alguns meses de idade. Eles viveram juntos por um tempão e tiveram mais três filhos – duas meninas e um menino.” A artesã costumava visitar os irmãos até completar 10 anos. “A gente se afastou quando minha mãe morreu. Na ocasião, meu pai não segurou a barra e decidiu ficar somente com uma filha. Confiou a guarda das outras duas crianças para conhecidos, e a família se dispersou.” Simone reencontrou as irmãs apenas recentemente, depois de procurá-las pelo Facebook, mas ainda ignora o paradeiro do irmão.
Um susto evitou que a artesã desse prosseguimento à sina familiar do abandono. A rejeição pelo recém-nascido já durava sessenta dias quando Simone percebeu que o bebê iria despencar do trocador. “Eu estava na cama, totalmente sem ânimo. A pessoa que cuidava do garoto saiu do quarto para tirar umas roupas do varal. Ele se mexeu em cima do trocador – uma peça alta, daquelas com banheira. Senti que o moleque iria cair. Aflita, pulei da cama como um gato e impedi a queda.” Daí em diante, o cenário mudou. Simone se apaziguou e pronunciou o nome do filho sem hesitação pela primeira vez: Renan. “Difícil explicar o que aconteceu. De repente, algo se abriu dentro de mim. Acho que Deus me presenteou com um milagre.”
Hoje Renan tem 21 anos e é capaz de executar várias tarefas sozinho: comer, se vestir, escovar os dentes, cortar as unhas, tomar banho. Compreende quase tudo que lhe dizem, mas se expressa monossilabicamente. Embora reconheça letras e números, não consegue ler nem calcular. “Para minha sorte, é um rapaz sorridente, calmo e amoroso”, elogia a mãe.

Em 2008, quando chegou a hora de Renan iniciar a vida escolar, a artesã o matriculou num colégio municipal. À época, muitas instituições comuns de ensino recusavam alunos com deficiência. Imperava a noção de que crianças e adolescentes “especiais” (termo agora inadequado) aprenderiam mais se frequentassem estabelecimentos segregados, onde convivessem apenas entre si, sem a presença de colegas “normais” (expressão também repudiada atualmente). Em paralelo à escola municipal, Renan fazia terapia ocupacional gratuita na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae).
O menino peregrinou por sete colégios públicos até terminar o oitavo ano do ensino fundamental. “Era complicado…”, relembra Simone. “As escolas me decepcionavam. Nenhuma se mostrava preparada para receber garotos como meu filho.” Ora Renan amargava provocações dos estudantes, ora sofria preconceito dos parentes deles. “Certa vez, um grupo de mães organizou uma manifestação na porta de um dos colégios. Entre xingamentos e ameaças, as mulheres tentavam obstruir a entrada de alunos com deficiência. O Renan só furou o bloqueio depois que pedi ajuda policial.”
Não bastasse, nem sempre os professores davam a atenção necessária para o menino. Sobrecarregados, acabavam isolando Renan. “Botavam o garoto no fundo da classe, rodeado de carteiras, e o deixavam ali, com alguns brinquedos. Um dia, visitei uma das escolas sem avisar e flagrei a cena. Fiquei tão enlouquecida que agredi a professora. Mais tarde, me bateu um arrependimento tremendo. Entendi que a professora não agia daquele jeito por maldade. As demandas do meu filho a desnorteavam. Ela não tinha capacitação para cuidar de um aluno como o Renan enquanto toureava uma sala com 35 crianças.”
As adversidades cessaram somente no primeiro semestre de 2019, quando Simone achou a Escola Estadual Lindamil Barbosa de Oliveira, em Guarulhos. A artesã trocara a capital paulista pelo município da Grande São Paulo havia poucos meses. Foi morar num conjunto habitacional com Renan, Larissa e o caçula, Nicolas. Estava separada do marido desde 2011. “O Lindamil fica bem perto do meu apartamento. Pus o Renan lá por ser mais prático e tive uma grata surpresa.”

A assimilação de estudantes com deficiência pelo sistema regular de ensino começou 33 anos atrás. Uma lei federal de 1989 abriu a possibilidade de aqueles alunos frequentarem colégios públicos e particulares. Até então, crianças e adolescentes com tais características se educavam em instituições especializadas (e segregadas) ou em casa. A lei de 1989, no entanto, afirmava que a inclusão só deveria ocorrer caso os estudantes demonstrassem capacidade de se integrar às classes comuns. O pressuposto deixava uma brecha para que as instituições especializadas permanecessem como primeira opção.
Depois, à medida que as discussões jurídicas e pedagógicas avançaram, prevaleceu a ideia de que todos os alunos cegos, surdos, paraplégicos, autistas ou com qualquer outra condição “diferente” têm o direito de ingressar em escolas regulares. Consequentemente, nenhuma delas pode recusá-los. Uma série de dispositivos legais sustenta a premissa. Os dois mais importantes são um decreto presidencial de 2009, que incorporou à Constituição um tratado da Organização das Nações Unidas sobre o assunto, e a Lei Brasileira de Inclusão, sancionada em 2015.
Para atender os estudantes com deficiência, os colégios precisam tomar inúmeras atitudes, como:
* ajustar seus projetos educacionais à nova realidade;
* garantir que professores e demais funcionários recebam formação apropriada;
* oferecer acessibilidade arquitetônica e comunicacional;
* assegurar que cuidadores ajudem as crianças ou os jovens menos autônomos;
* criar salas de recursos multifuncionais, onde os alunos possam realizar atividades complementares, fora dos horários de aula – por exemplo: aprender a língua de sinais ou a leitura em braile.
Ainda hoje, porém, há escolas que desrespeitam a legislação. Umas se negam a aceitar os estudantes com deficiência. Outras até os acolhem, mas não providenciam as condições adequadas. O descumprimento das regras se dá principalmente pela ausência de fiscalização.
Mesmo assim, o quadro vem melhorando. Em 2010, 69% dos alunos com deficiência matriculados nos ensinos infantil, fundamental, médio e profissionalizante do país ocupavam classes comuns. Uma década depois, a taxa ultrapassou os 88%. Dos colégios que abrigavam aqueles estudantes em 2010, 12,5% tinham salas de recursos multifuncionais e 25%, banheiros adaptados. Em 2020, os índices subiram para 28% e 56%, respectivamente. O levantamento é do Anuário Brasileiro da Educação Básica.
O presidente Jair Bolsonaro quis barrar o processo de inclusão no ano retrasado, quando baixou um decreto que tornava facultativa a matrícula de crianças e adolescentes com deficiência em escolas regulares. Ele cedia à pressão das instituições especializadas, ainda existentes, e de colégios privados que rechaçam a integração por razões ideológicas ou financeiras. O decreto gerou protestos de educadores e foi suspenso pelo ministro José Antonio Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. O plenário da Corte ratificou a suspensão em dezembro de 2020. Desde então, o STF faz consultas públicas sobre o tema. Pretende se inteirar mais da questão antes de tomar a decisão final.

Na Escola Lindamil Barbosa de Oliveira, Renan dispunha de banheiro adaptado e uma cuidadora que o acompanhava fora da classe. Enquanto assistia às aulas, contava com o respaldo dos professores e de colegas que se voluntariavam para auxiliá-lo. O jovem era avaliado de maneira diferenciada, conforme suas potencialidades. Ele repetiu algumas séries durante a trajetória estudantil, quase sempre por falta, já que os problemas cardíacos muitas vezes o prendiam em casa.  Nesta segunda-feira, 12 de dezembro, finalmente se formou no ensino médio. Estudava pela manhã e, de tarde, ia à sala de recursos multifuncionais. Embora não more longe do colégio, necessitava de transporte. “É que, no caminho, tem uma subida. O Renan se cansava demais quando atravessava o ladeirão a pé”, explica Simone. O próprio Lindamil se empenhou para arranjar, junto à Secretaria Estadual da Educação, a van gratuita que conduz o rapaz.
“Não encontrei apoio semelhante em nenhuma outra escola”, afirma a artesã. “Os coordenadores, professores e cuidadores do Lindamil nunca deixaram de me escutar e orientar. Até o pessoal da cozinha seguia minhas recomendações sobre a dieta do Renan.” O colégio – que reúne 1.302 estudantes – admite alunos com deficiência desde a fundação, na década de 1990. Em 2022, abrigou 27 deles. “Como a equipe pedagógica não conseguia monitorar a garotada o tempo inteiro, uma dúvida martelava na minha cabeça: será que os colegas tratavam bem o Renan nos momentos em que não havia adultos de olho? Será que o excluíam? Será que zombavam do meu filho? Não adiantava perguntar para o Renan. Ele não saberia responder.”
Uma coincidência acabou tranquilizando a artesã. Há dois meses, Nicolas – o caçula da família – passeava com uma amiga quando a moça avistou uma conhecida, Esther. Os três engataram um papo animado. Nicolas gostou de Esther e pediu o WhatsApp dela. Poucas semanas depois, descobriu que a adolescente não só estudava no Lindamil como pertencia à turma de Renan, o 3°A. “Meu irmão é bagunceiro?”, sondou Nicolas pelo aplicativo. “O Renanzinho? Imagine! É super de boas! O nosso xodó”, contou Esther, que logo compartilhou uma porção de fotos e vídeos. As imagens exibiam Renan todo alegre, cercado de estudantes e em diversas situações: na sala de aula, no pátio, na quadra esportiva ou no laboratório. “Está vendo aquele grandão ali?”, indicou a adolescente. “É o melhor amigo do Renanzinho. Os dois não se largam.”
O grandão tem 17 anos, 1,75 metro de altura, porte atlético e um nome igualmente robusto: Pedro Henrique Cosmo Germano Beserra de Souza. “Ele adotou o Renanzinho. Cuida do moleque sem ninguém pedir. Faz por prazer mesmo”, prosseguiu Esther. Boquiaberto, Nicolas levou a notícia para Simone e lhe mostrou as imagens. A artesã se emocionou. “Muita gente pensa que os jovens de hoje carecem de empatia e valorizam apenas os bens materiais: boné, smartphone, videogame, tênis de marca… Ou que preferem andar com a galera mais popular da escola. Os colegas do meu filho estão provando que não é sempre assim. Só me restava agradecê-los.”
Simone preparou, então, uma cesta de café da manhã para Pedro. Impossibilitada de presentear os 39 integrantes da classe, a artesã homenagearia o melhor amigo de Renan e, por tabela, os demais alunos. “Às 8h30 do dia 19 de outubro, apareci de surpresa no colégio.” Foi um alvoroço. Simone e Pedro se conheceram naquele instante. Esther, a única que soube antes da homenagem, gravou tudo pelo celular. “Eu não planejava divulgar o vídeo”, diz a artesã. “Queria guardá-lo como recordação e pronto. Só que, depois, refleti: por que não espalhar para todo mundo que o Pedro existe? Talvez o bom coração dele inspire outros jovens.” Em novembro, Simone publicou o vídeo no Instagram e no TikTok. Deu certo. Os posts alcançaram pelo menos 5,3 milhões de visualizações e 515 mil curtidas.

“Sou um menino chorão”, define-se Pedro. “O vídeo deixa muito claro, né? O engraçado é que filmes, séries ou músicas não me arrancam lágrimas. Só a realidade me comove desse jeito. Se vejo uma despedida na rodoviária, por exemplo, abro o berreiro.” O rapaz tem um modo inusitado de falar, que mescla a dicção paulista com a cearense. Ele pode encaixar numa mesma frase a gíria “mano” e o verbo “aperrear”. “Nasci em Guarulhos, mas toda a minha família vem de Lavras da Mangabeira, uma cidadezinha no interior do Ceará. Daí o meu sotaque diferentão.”
Pedro entrou no Lindamil em 2019, como Renan, e logo se destacou. Primeiro, por ser ótimo aluno. “Faço a linha nerdzinho. Sento bem em frente à lousa, presto atenção nas aulas e nunca tiro notas vermelhas.” Depois, por revelar um imenso talento para entreter. “Curto zoar o povo. Tipo: cutuco um, encho o saco de outro, conto piadas, invento dancinhas e arrisco umas loucuras. Simplesmente adoro quando a turma cai na risada.” Das loucuras que arriscou, uma já virou lenda. O adolescente se fantasiou de Chapolin Colorado e saiu pelo colégio repetindo o bordão do personagem: “Não contavam com minha astúcia!” Os colegas, em geral, aprovam as palhaçadas – tanto que o elegeram representante de classe.
Outra marca registrada de Pedro são as camisas extravagantes. “Tenho uma coleção delas: com estampas de flores, coqueiros, frutas, bichinhos, arco-íris ou folhagens. Compro pela internet e uso na escola. Gosto de variar o guarda-roupa. O pessoal repara, elogia e até me pede dicas de moda.”
O jovem prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em novembro. “Estava tão ansioso que me lasquei. Fui péssimo. Mó decepção…” Ele sonha estudar história por considerar importante “aprender com os erros do passado”. “Assim que terminar a faculdade, pretendo lecionar. Sabe onde? No Lindamil! O colégio me proporcionou tanta coisa da hora… Sinto vontade de devolver. Respeito bastante o conceito de gratidão.”
Se dependesse da mãe, a dona de casa Maria Aparecida, o filho mais novo abraçaria o sacerdócio ou a medicina. “Como sou muito bonito para me tornar padre e muito mole para me tornar médico, escolhi a carreira de professor”, brinca Pedro. Viúva de um caminhoneiro, com quem gerou o adolescente e outro rapaz, Maria Aparecida ainda derrapa na matemática, na leitura e na escrita. Por sugestão do caçula, retomou os estudos em 2021. “É lindo acompanhar a evolução dela. Também é lindo constatar o avanço dos colegas que já ajudei em sala de aula. Sempre que possível, esclareço as dúvidas da moçada. Explico os pontos complicados das matérias com linguagem coloquial e exemplos simples, do nosso cotidiano. Uma vez, depois de ouvir meus esclarecimentos, um garoto tirou nota maior do que a minha na prova. ‘Uau!’, pensei. ‘Tenho mesmo vocação para lecionar.’”
Na turma do futuro professor e de Renan, havia mais dois alunos com deficiência – um autista e uma cadeirante. “Eu procurava incentivar os três”, diz Pedro. “Não sei bem por que, mas sou um cabra naturalmente inclusivo. Quero que todos participem das minhas bagunças. Odeio aquele negócio de tratar a diferença com desdém.” O adolescente reconhece, no entanto, que desenvolveu uma afeição especial por Renan. “A gente se entendeu logo de cara. Ele é incrivelmente simpático. Enxergo o Renanzinho como um irmão.” A dupla criou maneiras peculiares de se comunicar. A mais engraçada: em plena aula, Pedro grita “rapaaaaaaaaaaaz!”, à semelhança do efeito sonoro que pontua o Programa do Ratinho no SBT. É o mote para que Renan se assanhe e imite o amigo: “Rapaaaaaaaaaaaz!”
Nas horas vagas, Pedro costuma ler romances distópicos (“amei 1984, do George Orwell”), ver ficções científicas e escutar músicas tão díspares quanto sucessos do axé e canções de Padre Marcelo Rossi. Curiosamente, o jovem não liga para as redes sociais. Está no Twitter, no Instagram e no TikTok, mas os frequenta pouco. “Tenho alma de velho. Me atrapalho com o mundo digital.” Ele não postou nem mesmo o vídeo que o homenageava. “Tento seguir um ensinamento de Jesus: ‘Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita.’ Conhece?” A discrição não evitou que o adolescente recebesse uma infinidade de elogios. Muitos dos que assistiram à homenagem na internet acessaram os perfis de Pedro para enaltecê-lo: “Continue assim, campeão! Não perca a essência, cara! Queria andar com você no recreio.”
Em outubro, o jovem arrumou uma namorada pela primeira vez. Ela se chama Nicoly e também estudava no Lindamil. “Se os cuidados com o Renanzinho empatavam o namoro? Claro que não! Sempre dizia à Nicoly: ‘Meu coração é grande, mulher! Cabe todo mundo.’” Pedro gostaria de se manter próximo do amigo mesmo depois de finalizar o ensino médio e sair da escola. Deseja, ainda, legar para o companheiro a paixão pelo Corinthians. “Pode escrever: um dia, o Renanzinho aprenderá a berrar ‘vai, Curintia!’”

Como artesã, Simone confecciona bonecos de cartolina emborrachada e isopor, que batizou de Fofuchas. “A maioria dos meus clientes os utiliza em decoração de festas infantis.” Ela exerceu vários ofícios antes de enveredar pelo artesanato. Foi empregada doméstica, babá, cuidadora de idosos, operária, caixa de supermercado e bombeira civil. Durante cinco semestres, cursou uma faculdade privada de direito com bolsa parcial da Educafro, instituição sem fins lucrativos que luta para elevar a presença de negros no ensino superior brasileiro. “Parei por razões financeiras. A bolsa cobria metade das mensalidades. Eu precisava bancar o resto. Infelizmente, não consegui.”
No fim de 2021, a artesã – que acaba de completar 47 anos – passou mal dentro de casa, fez exames laboratoriais e detectou uma hepatite C em estágio avançado. O quadro evoluiu para uma cirrose hepática aguda, inflamação crônica e incurável que compromete as atividades do fígado. Em virtude da doença, Simone enfrentou três cirurgias e deve tomar diariamente um remédio caríssimo, que combina os fármacos velpatasvir e sofosbuvir. Uma caixa do medicamento, com 28 comprimidos, custa entre 46 mil e 52 mil reais. “A droga está em falta na rede pública. Por isso, acionei a Justiça para que o governo assuma os meus gastos.” Enquanto aguarda a sentença, a artesã tenta arrecadar dinheiro pelo link https://www.vakinha.com.br/3004029. Quando soube da enfermidade, Pedro resolveu ajudar. Pediu doações em grupos de WhatsApp e afixou cartazes sobre a campanha nas salas do Lindamil.
Unidos por Renan, o adolescente e Simone têm diferenças significativas. Pedro é católico, devoto de Padre Cícero e cerimoniário, o responsável pela organização das missas numa paróquia de Guarulhos. Como a mãe, admira o PT e votou em Lula para presidente. Já a artesã é evangélica pentecostal desde os 15 anos e apertou o 22, de Jair Bolsonaro, nas eleições de outubro. “Quem ama o meu filho merece toda consideração, independentemente de preferências religiosas ou políticas”, diz Simone. “Verdade… O Renanzinho está acima de qualquer polarização”, emenda Pedro.  
(revista piauí)

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Um caso raríssimo

Jornalista negro processa CNN Brasil por racismo estrutural

Em junho de 2016, as seleções da Alemanha e da Polônia se enfrentaram pela Eurocopa, o campeonato europeu de futebol masculino, no Stade de France, perto de Paris. Foi um jogo tedioso, que terminou sem gols, mas lá fora o clima esteve quente. Pouco antes da partida, a repórter Sonia Blota e o produtor Fernando Henrique de Oliveira, ambos da Band TV, cobriam o vaivém de torcedores nas imediações da estação ferroviária Gare du Nord quando cerca de cinquenta alemães os rodearam e gritaram: Get out, you niggers! Mandaram os dois irem embora, usando a expressão racista mais insultuosa da língua inglesa. O líder do grupo ameaçou a dupla de brasileiros com um bastão, chutou uma perna da jornalista e deu uma bofetada em Oliveira, que operava a câmera e conseguiu filmar parte da investida. Os agressores seguiram adiante sem que ninguém os importunasse.
A repórter e o produtor denunciaram o ataque para um policial que circulava pelas redondezas. Ele se esquivou. “Vocês me parecem bem. Não sofreram ferimentos graves. Melhor esquecer o que aconteceu para evitar um conflito maior”, explicou, de acordo com as vítimas. Inconformado, Oliveira prestou queixa numa delegacia.
A truculência virou notícia dentro e fora da França. Os agredidos concederam algumas entrevistas, inclusive para a Band. Quando soube do incidente, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) soltou uma nota. Classificou o episódio de deplorável e criticou a inércia da polícia. Com o intuito de remediar o estrago, o ministério francês das Relações Exteriores ofereceu um almoço de desagravo para a jornalista e o produtor.
Embora dissessem a palavra nigger no plural, tudo indica que os torcedores não se referiam à repórter, neta dos apresentadores Blota Júnior e Sônia Ribeiro, duas lendas da tevê nacional. Ela é branca de cabelos escuros e olhos castanhos. Frequentemente, na Europa, a confundem com italiana em razão do sobrenome calabrês. Já Oliveira é preto retinto. “A dor moral e psicológica que a bofetada me causou supera a física”, declarou à imprensa na época.

A CNN Brasil estreou em 15 de março de 2020. Enquanto montava sua infraestrutura, a emissora contratou Fernando Henrique de Oliveira, que acabara de deixar o programa Conversa com Bial, na Globo, onde ocupava o cargo de assistente de produção. Ele se formara em relações públicas havia quase duas décadas e tinha registro de jornalista desde julho de 2018. Pelo contrato que assinou na CNN, cuidaria da “produção de imagens e/ou reportagens diversas para transmissões”. Poderia, ainda, se dedicar à “apuração de pautas” e à “realização de coberturas jornalísticas”. Viveria em Nova York e trabalharia com a correspondente Luiza Duarte.
No dia 25 de maio de 2020, o norte-americano George Floyd Jr. – um segurança negro desempregado – virou símbolo planetário da luta contra o racismo. Preso em Minneapolis, sob a suspeita de usar dólares falsos para comprar cigarros, morreu sufocado pelo policial branco Derek Chauvin, que apoiou o joelho sobre o pescoço dele durante nove minutos. As imagens do assassinato, registradas por testemunhas, geraram uma onda de manifestações nos Estados Unidos, no Brasil e em dezenas de outros países.
Escalado para cobrir as repercussões do crime como repórter, Oliveira abandonou momentaneamente a postura distanciada e fez um relato de cunho pessoal. Gravou o depoimento na varanda do apartamento que alugava em Manhattan. De tranças afro, barba bem aparada e óculos, trajava roupas sóbrias: blazer cinza por cima de uma camisa azul com listras brancas e gola padre. O Empire State aparecia à distância. Depois de acertar o enquadramento de uma pequena câmera Sony e ajeitar o microfone de lapela, o jornalista contou que morava no East Village, “um bairro majoritariamente branco”, em cujos supermercados sempre tinha a impressão de que os seguranças o vigiavam. Também recordou o ataque dos torcedores alemães, quatro anos antes, e a indiferença da polícia francesa. “Infelizmente, nós ainda precisamos nos preocupar com quem deveria nos proteger”, concluiu.
Exibido pela CNN em 29 de maio, o testemunho de 1 minuto e 42 segundos ficou no site da emissora. “O produtor Fernando Henrique relata um dos momentos mais difíceis que enfrentou na carreira por causa do racismo”, anunciava o texto online que introduzia o vídeo. O próprio Oliveira divulgou o depoimento pelas redes sociais. No Instagram, redigiu: “Violência racial. Como jornalista negro, conto minha experiência por aqui. @CNNbrasil.” Uma imagem congelada do testemunho ilustrava o post.
Ele também publicou no Instagram trechos da cobertura que fez para o canal entre 26 de maio e 9 de junho de 2020, em Nova York, Minneapolis e Houston, cidade do Texas onde Floyd Jr. foi enterrado. Por quinze dias consecutivos, a CNN mostrou boletins de Oliveira sobre o caso, a maioria estritamente jornalísticos, sem comentários pessoais. Em 2 de junho, porém, a apresentadora Monalisa Perrone pediu outro depoimento de caráter particular para o colega: “Eu sei que você já sofreu racismo. Por isso, abra o coração e conte exatamente o que você está sentindo agora.” Ao vivo, enquanto acompanhava um protesto em Manhattan, Oliveira disse que não integrava nenhum “movimento de lutas raciais”, mas que considerava fundamental pleitear “igualdade e justiça”. Enfatizou que se pronunciava “em nome de todos os negros”, como representante “de um povo, de uma nação”, e não na condição de jornalista. Perrone agradeceu: “Obrigada pelas palavras, pela observação, por abrir o coração! Cobertura de verdade também tem emoção. É a emoção de quem tem o lugar de fala, né?”
No dia 10 de junho, Oliveira entrou novamente em cena para avaliar como o mundo deveria lidar com o racismo à luz do homicídio de Floyd Jr. Outros nove funcionários negros da CNN, incluindo um maquiador, uma executiva e quatro repórteres, se manifestaram. Todos fizeram reflexões genéricas, sem explicitar situações mais íntimas.
Dois meses depois, em 21 de agosto, o canal demitiu Oliveira por divergências salariais, embora o contrato dele só terminasse no ano seguinte. A emissora queria que o profissional voltasse para São Paulo. Ele concordou, mas reivindicou manter o salário de 4 mil dólares (cerca de 21 mil reais hoje) que recebia nos Estados Unidos. A CNN não aceitou e rompeu o contrato. No dia 19 de novembro, o jornalista entrou com uma ação contra a antiga empregadora. À primeira vista, parecia uma briga trabalhista convencional, assentada principalmente em pendências financeiras. Examinado de perto, o processo se revelava também outra coisa: uma batalha contra o “racismo estrutural” – conceito típico dos nossos tempos e cada vez mais invocado por trabalhadores negros nas relações com as empresas.
A ação judicial não acusa nenhuma pessoa física de discriminação racial. O único alvo é a CNN. Nas palavras dos defensores de Oliveira, o suposto comportamento racista da emissora não se comprova “pela chancela escancarada”, mas “pelas condutas sorrelfas”. Por isso, os advogados usam a expressão “racismo estrutural ou institucional” para se referir às práticas da empresa. O termo designa um conjunto de medidas corporativas, educacionais, políticas, econômicas, jurídicas, culturais ou religiosas que favorecem determinado grupo racial e colocam outros em desvantagem. Nem sempre são atitudes de fácil percepção e resultam mais de uma dinâmica coletiva e histórica que do anseio deste ou daquele indivíduo. O racismo estrutural, portanto, se confunde com a própria ordem social.
Não à toa, o tema está no cerne de todas as discussões contemporâneas sobre aquilo que os negros chamam de “segunda abolição” – uma nova alforria, mais abrangente e transformadora que a de 1888. Uma libertação que “transcenda o corpo da lei e faça prevalecer o espírito da lei”, conforme escreveu o cantor Gilberto Gil em maio de 2009, no jornal Le Monde Diplomatique Brasil. Uma abolição que ouse sair “do papel” e ganhe “as consciências”.

“Disputas jurídicas como a de Oliveira, que envolvem debates identitários, sempre nascem de um elemento subjetivo: a percepção de quem se julga ofendido.” A frase é da advogada mineira Juliana Bracks, que leciona direito do trabalho na PUC do Rio de Janeiro. Ela não se refere apenas às demandas acerca do racismo, mas também àquelas que tratam de segregação por gênero, faixa etária, orientação sexual, crença religiosa, predileção política, deficiência física e até obesidade. Enquanto discorre sobre o assunto, Bracks acaba tocando no ponto que liga o processo de Oliveira contra a CNN Brasil a uma questão central do século XXI:
“Um funcionário negro pode ver preconceito racial em circunstâncias que os brancos qualificariam de irrelevantes ou nem sequer enxergariam. Às vezes, a discriminação se manifesta de modo explícito e incontestável – o superior zomba das tranças afro de um subordinado ou o xinga de macaco. Outras vezes, porém, a intolerância lança mão de artifícios bem mais sutis. Nesses casos, o desgosto e a revolta do profissional que se considera atacado são absolutamente legítimos. Ou melhor: a percepção do trabalhador merece respeito, ainda que não baste em termos judiciais.”
A professora explica que, nos tribunais, a percepção do reclamante vale tanto quanto a do réu. “O funcionário negro sente que sofreu uma humilhação racista. O empregador branco sente que não humilhou ninguém. Por que a percepção de um deveria preponderar sobre a do outro?” Daí a necessidade de provas, que podem derivar de perícias, vídeos, áudios, mensagens de celular, documentos em papel ou testemunhos de terceiros. A interpretação final será do juiz, o que adiciona mais um ingrediente à equação: até que ponto a identidade do magistrado (sexo, cor da pele, origem socioeconômica) afeta suas decisões? “Todos esperamos que afete o mínimo possível, e que a sentença se baseie especialmente na análise técnica das provas”, afirma Bracks.
Em 2004, uma emenda modificou o artigo 114 da Constituição e permitiu às cortes trabalhistas julgar processos de indenização por danos morais. Antes, só a Justiça comum mediava o assunto. “A emenda de 2004 certamente vem estimulando o aumento de ações sobre conflitos identitários no ambiente de trabalho. O fortalecimento das redes sociais, que ampliou a consciência política dos grupos tradicionalmente afrontados, também contribui para o fenômeno”, diz a professora.
Segundo a Data Lawyer Insights, plataforma que coleta e analisa dados jurídicos, pelo menos 3,6 mil processos trabalhistas com menções a “preconceito racial”, “racismo” ou “discriminação racial” chegaram à primeira instância da Justiça brasileira no ano passado. É um recorde. Em 2018, houve 1,1 mil ações. Em 2019, 1,4 mil e, em 2020, 2,3 mil. O método de prospecção adotado pela Data Lawyer Insights não permite saber o teor exato de cada processo.
Bracks salienta que a reforma trabalhista de 2017 introduziu o princípio da sucumbência na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Desde então, se o reclamante perder uma ação, terá de pagar o advogado da parte contrária e as custas judiciais. O ex-funcionário da CNN corre, assim, o risco de ficar no prejuízo caso a emissora vença o litígio.

Em 2021, uma pesquisa telefônica com 202 jornalistas pretos e pardos de todo o país perguntou: os negros encontram mais dificuldades que os brancos para ascender nas redações? Noventa e oito por cento dos entrevistados afirmaram que sim. Quando os pesquisadores questionaram se os 202 profissionais já haviam enfrentado alguma espécie de racismo enquanto trabalhavam, 43% também responderam que sim.
As indagações aparecem no Perfil Racial da Imprensa Brasileira, estudo que o informativo Jornalistas & Cia realizou com dois parceiros – o Instituto Corda e a I’Max, agência de tecnologia e comunicação. Metade dos entrevistados se definia como do sexo masculino, e a outra metade, como do feminino. A maioria tinha entre 26 e 45 anos. Cerca de 60% desempenhavam funções operacionais. Eram repórteres, redatores ou diagramadores. Os restantes estavam em cargos gerenciais (diretores, editores ou chefes de reportagem).
Das diversas situações racistas que os entrevistados disseram viver durante o exercício da profissão, destacam-se:
* Ser confundidos com o pessoal da limpeza;
* Ouvir piadas ou recriminações sobre o cabelo;
* Enfrentar acusações de vitimismo nos momentos em que reclamam de preconceitos;
* Sentir que os colegas os veem com desconfiança;
* Amargar tratamento diferenciado de policiais ou seguranças durante as coberturas;
* Sofrer agressões verbais;
* Ganhar apelidos pejorativos, como “neguinho” e “crioulo”;
* Ser convocados para fazer reportagens mais negativas do que positivas em comparação com os brancos.
Por meio de telefonemas ou questionários online, o estudo também consultou 1 750 jornalistas de diferentes origens raciais, que atuavam em sites noticiosos, jornais, revistas, tevê, rádio, blogs e podcasts. Depois, extrapolou a amostra para os 61 mil profissionais do país (a estimativa é da I’Max) e chegou às seguintes conclusões:
* Embora 56% da população brasileira se intitule preta ou parda, as redações têm mais brancos (77,6%). Somente 20,1% dos jornalistas declaram-se negros. Os outros são amarelos (2,1%) e indígenas (0,2%);
* Os brancos ocupam mais cargos de chefia, recebem salários melhores e permanecem mais tempo na mesma empresa;
* A prevalência de um segundo emprego é maior entre os negros;
* Na pandemia de Covid, os brancos fizeram mais home office que os negros.
A CNN Brasil ainda não dispõe de números precisos sobre a composição étnica de seus 730 funcionários. Até dezembro, pretende implantar um comitê de diversidade, que promoverá um censo para garimpar tais informações.
(Na piauí, onde trabalham 35 profissionais, a situação de desigualdade se reproduz: apenas cinco – ou 14% – consideram-se negros. Nenhum deles exerce funções gerenciais.)

Apesar de tamanho desequilíbrio na imprensa, processos trabalhistas como o de Oliveira são raríssimos. A Comissão Nacional de Jornalistas pela Igualdade Racial (Conajira), fundada em 2010, desconhece ações similares. “De modo geral, os pretos e os pardos evitam acionar a Justiça quando sofrem preconceito nas redações. Algumas vítimas até processam colegas, mas poucas se rebelam contra as empresas”, diz Valdice Gomes, integrante da comissão. “Os negros enfrentam vários obstáculos para atingir um mínimo de segurança na carreira. Se conseguem furar a bolha, acabam priorizando a empregabilidade. Temem queimar o filme no mercado caso briguem judicialmente com os patrões.”
O cenário não é muito distinto em outras áreas da comunicação. Recentemente, porém, a publicitária negra Rafaela Keroty Ferraz fugiu à norma e acusou de racismo a agência Plug. O processo tramitou na 27ª Vara do Trabalho de São Paulo. Em 25 de agosto de 2020, durante a pandemia, a agência convocou a reclamante para uma reunião por vídeo. Uma supervisora, também negra, iniciou assim o encontro: “Estou com vontade de ver todo mundo. […] Quero ver se [citou o nome de um funcionário, não mencionado nos autos] cortou o cabelo e se a Rafa continua preta.” O comentário deixou a publicitária bastante constrangida e a levou às lágrimas. Ela fechou a câmera da plataforma digital para não chorar diante da equipe.
No dia seguinte, a subordinada procurou a supervisora, criticou a abordagem e ouviu um pedido de desculpas. Assim que soube do ocorrido, o dono da agência menosprezou o episódio. Ponderou que a supervisora não quis ofender ninguém. “Ela só fez uma brincadeira fora de hora para descontrair a tensão da pandemia”, explicou à publicitária, de acordo com a ação judicial. Dois meses depois, a Plug demitiu Rafaela Ferraz sob a justificativa de que passava por solavancos financeiros. A publicitária recorreu à Justiça – e ganhou.
Em maio de 2021, a juíza Renata Bonfiglio proferiu uma sentença que desperta a atenção pela clareza e veemência quando descreve como a discriminação racial pode comprometer as relações de trabalho:
O fato de a ofensora e a própria reclamada não enxergarem no comentário qualquer ofensa não é suficiente para que a ofensa não tenha existido. […] A triste realidade é que há inúmeras práticas racistas naturalizadas em nosso cotidiano e materializadas em microagressões, que partem de comportamentos [] por vezes inconscientes. A situação dos autos [] é apenas mais um exemplo do que se convencionou chamar de “racismo recreativo”. []
A verdade é que todos nós precisamos estar atentos para não incorrer nesse padrão comportamental tão enraizado na sociedade. […] No ambiente de trabalho, cabe ao empregador essa fiscalização. Do contrário, estará sendo conivente com piadas que são verdadeiras manifestações de injúria racial, como é o caso em apreço.
Observe-se que a forma como a ré se posiciona em sua defesa, minimizando o desconforto e constrangimento da reclamante, já demonstra a existência de uma microagressão. [Segundo a reclamada, uma piada que envolva questões raciais serve para “descontrair a tensão”, o que representa um padrão de conduta que precisa ser revisto e combatido. [] Causa espanto ao Juízo que, justamente numa empresa de comunicação, que se diz atenta e preocupada com inclusão e diversidade, um fato como esse tenha sido banalizado.
A sentença determinava que a agência pagasse 20 mil reais à ex-funcionária por danos morais. No dia 13 de maio de 2021, quando a abolição da escravatura completou 133 anos, as partes encerraram a pendência ao firmar um acordo que reduziu a indenização para 18 mil reais.

Duas semanas antes de a ação de Fernando Henrique de Oliveira contra a CNN Brasil entrar em segredo de Justiça, a piauí teve acesso à sua íntegra. Os autos, que estão na 80ª Vara do Trabalho de São Paulo, somam 410 páginas. A maioria delas aborda questões de cunho essencialmente trabalhista, como a reversão da demissão ou a remuneração em dobro do jornalista pelos dezessete meses que faltavam para o término do contrato. Num conjunto menor de páginas, entretanto, Oliveira acusa a emissora de lesá-lo com uma série de gestos racistas, ferindo o artigo 5º da Constituição, que considera o racismo um crime inafiançável e imprescritível. Pelo delito, o profissional reivindica indenização por danos morais.
Uma das discriminações raciais que o jornalista atribui à emissora é justamente a de requerer os testemunhos pessoais sobre os preconceitos que ele já sofreu, como a agressão durante a Eurocopa. Conforme Oliveira alega no processo, o canal o obrigou a fazer os relatos de acordo com um “roteiro repassado pela chefia”. Para provar, os dois advogados do ex-funcionário – Carlos Daniel Gomes Toni e Kiyomori André Galvão Mori – apresentam trocas de mensagens entre o jornalista e Adriana Mabilia, uma das editoras que cuidavam do caso George Floyd Jr. Ela trabalhava na sede da CNN, em São Paulo.
– Fê, hoje […] você poderia entrar pra dar a tua percepção de tudo – escreveu Mabilia no WhatsApp.
– Claro, Dri. Fechado! – concordou Oliveira.
– Olha só. Editor me passou aqui. Vou te passar algumas orientações, tá? – prosseguiu Mabilia. – O vídeo precisa conter de 1 min a 1 min 30. É um depoimento, em que as pessoas respondam… Quem é você? Já foi vítima de preconceito? Qual mais te marcou?
A profissional referia-se à gravação de Oliveira na varanda de seu apartamento em Nova York. Por áudio, a editora complementou:
– Vamos fazer uma coisa bacana? […] Um depoimento… Questões históricas… Você trazer coisas da tua vida. Vamos pensar nisso? Mas é urgentão!
Nas redações, os editores costumam orientar os subordinados sobre o ângulo e a duração de um testemunho ou uma reportagem, tanto que Oliveira não se constrangeu ao receber as diretrizes e concordou em segui-las. Mais tarde, porém, o jornalista percebeu que o pedido de um depoimento daquele tipo, a respeito de uma experiência tão particular e dolorosa, configurava racismo. Fenômeno parecido ocorre com inúmeras vítimas de assédio sexual, que só se dão conta do ataque tempos depois de o sofrerem. Para Oliveira, a CNN lhe destinar uma tarefa como aquela é tão invasivo quanto solicitar a um repórter judeu que, durante a cobertura de uma passeata contra os neonazistas, evoque as perseguições antissemitas que já enfrentou.
No processo, o ex-funcionário acrescenta que a emissora o menosprezou com pelo menos outras três práticas racistas:
* Todos os jornalistas negros da redação ganhavam salários menores que os dos brancos quando exerciam funções iguais às deles. Oliveira diz que as provas das diferenças salariais estão “em poder da ré”, ou seja, da CNN. Como também fazia reportagens, extrapolando as atividades habituais de produtor, ele pede equiparação salarial retroativa com o cargo de repórter.
* O canal queria que Oliveira fosse segurança de Luiza Duarte enquanto a correspondente apresentasse boletins noturnos na rua. Os autos trazem mensagens que a chefia endereçou para o jornalista em 27 de julho de 2020, uma segunda-feira. O primeiro e-mail indagava se Oliveira poderia “acompanhar a Luiza nos deslocamentos à noite” durante a semana. Ele respondeu que não. Informou que tinha aulas às terças, quartas e quintas. Não entrou em detalhes, mas reservara os horários para um curso online de reeducação corporal e reuniões virtuais sobre um doutorado que planejava fazer. A chefia desaprovou a justificativa. Reclamou que os compromissos atrapalhavam o fluxo da redação e lembrou que um sem-teto perseguira Duarte numa cobertura recente. Contou, ainda, que a repórter amargara “diversas outras situações incompatíveis”. Por fim, sublinhou: “É inviável a Luiza trabalhar à noite, sem produtor.” Oliveira bateu o pé e não acompanhou a correspondente, que realizou os boletins sozinha.
* Depois de demiti-lo, a empresa tratou o jornalista como carregador. Pediu que ele levasse para São Paulo todos os equipamentos de Nova York, inclusive os usados por Duarte (nessa altura, a repórter havia deixado a emissora para tocar projetos pessoais). Eram 38 itens, entre microfones, cabos, baterias, refletores e um iPhone 11. O material, que não estava no seguro, ocupou quatro malas. Já os pertences do ex-funcionário, apenas uma. Assim, em 30 de agosto de 2020, nove dias após a demissão, Oliveira voou para a capital paulista com cinco malas. O canal pagou pelo excesso de bagagem.
Caberá à Justiça decidir se as denúncias do jornalista constituem racismo ou não. Sob a ótica de Oliveira, no entanto, está claro que a CNN não só adota regras e princípios que reproduzem a desigualdade racial em vigor no país como os naturaliza, tornando-os quase ocultos. “O racismo institucional da ré […], por óbvio, não se comprova pela chancela escancarada […], mas pelas condutas sorrelfas que se seguiram durante toda a relação de trabalho”, escrevem os advogados no processo.
Embora não usem a expressão “tokenismo” (estratégia de quem deseja parecer mais inclusivo do que realmente é), os defensores de Oliveira fazem uma alusão à tática: “Assim como William Waack disse ‘até tenho amigos negros’, a emissora até passou a admitir jornalistas negros, após contratar aquele que fora demitido […] da Globo, [depois de ser] flagrado pelas câmeras em suposto ‘gracejo’ de dar inveja aos segregacionistas do apartheid sul-africano.”
O trecho joga luz sobre um episódio ocorrido durante as eleições presidenciais norte-americanas de 2016. Na ocasião, Waack ancorava o Jornal da Globo e acompanhava a apuração dos votos. Ele se preparava para entrar no ar em Washington, com o comentarista Paulo Sotero, quando um carro buzinou insistentemente nas imediações do estúdio. “Tá buzinando por que, ô seu merda do cacete?”, resmungou Waack. “Não vou nem falar […] É coisa de preto. Com certeza.” Na sede paulistana do canal, um operador de vídeo, negro, teve acesso às imagens do destempero e as gravou pelo celular. Um ano depois, o caso se tornou público, e a Globo demitiu Waack, que se desculpou por fazer “uma piada idiota”. Em junho de 2019, a CNN o contratou.
O âncora integrou a equipe da emissora que cobriu o assassinato de George Floyd Jr. Pelas redes sociais, não faltaram queixas. “Porra @CNNBrasil, vocês só podem tá de sacanagem. Tão fazendo isso pra irritar a gente, né?! william waack, repito, william waack comentando racismo? Aaah, mano…”, tuitou um jovem negro. Convidada do programa CNN 360º, a jornalista Alexandra Loras, também negra, mexeu no vespeiro, ao vivo, em junho de 2020. Ela repudiou o protagonismo de Waack e frisou que a mídia detinha “o poder” de chamar acadêmicos pretos ou pardos para discutir o homicídio de Floyd Jr. “Não é apenas com gotinhas de cotas nas universidades que vamos resolver a questão racial no país”, afirmou. O canal não se pronunciou.
No dia 15 de abril de 2021, acusações de racismo assombraram novamente a CNN. Reportagem publicada pela agência de notícias Alma Preta contou que a analista de política Basília Rodrigues sofria perseguições dentro da emissora. A Folha de S.Paulo reiterou as denúncias. Segundo as apurações, funcionários do canal tratavam a jornalista negra com desrespeito. Reclamavam do cabelo “desgrenhado” e das “olheiras” dela ou criticavam os cenários que Rodrigues escolhia para entrar no ar quando estava em home office. Editores de imagem evitavam mostrar o rosto da analista. Preferiam substituí-lo por cenas ilustrativas enquanto transmitiam somente a voz de Rodrigues. Nem a Alma Preta nem a Folha identificaram os profissionais que fizeram as denúncias.
Logo que as reportagens saíram, a CNN classificou os relatos de gravíssimos e anunciou que iria investigá-los. De antemão, esclareceu que considerava o cabelo afro “um símbolo importante de resistência e empoderamento”, que eventuais ajustes nos cenários seguiam critérios técnicos e que “nunca houve qualquer orientação” para ocultar o rosto da jornalista. Pelo Twitter, Rodrigues limitou-se a agradecer o apoio da empresa e as mensagens solidárias de amigos, colegas e desconhecidos. Em agosto de 2021, a emissora divulgou que as investigações não detectaram racismo. Concluíram apenas que alguns funcionários tinham agido de modo inadequado. O canal não informou se os puniu.
Entre as acusações de Oliveira que extrapolam a seara racial, constam delitos trabalhistas relativamente comuns nas redações do país. Ele afirma que a CNN exigiu contratá-lo como pessoa jurídica, e não física, para pagar encargos menores. Também diz que a emissora lhe deve horas extras e adicionais noturnos. Se levar tudo o que pede, o jornalista receberá cerca de 700 mil reais. Desse total, 50 mil reais equivalem à reparação pelos atos racistas.
Como o processo está sob segredo de Justiça desde março de 2021, nem o canal nem Oliveira nem os advogados das partes podem falar sobre a causa fora dos tribunais. Só os envolvidos têm o direito de assistir às audiências.

A defesa da CNN Brasil, assinada pelo advogado Marcelo Costa Mascaro Nascimento, ocupa oitenta páginas do processo. Apenas nove delas se debruçam sobre as supostas condutas racistas. A emissora nega “veementemente” todas as acusações. Diz que o ex-funcionário age de maneira “leviana” por mencionar fatos inexistentes. Para o canal, Oliveira cai em contradição quando tacha de discriminatórios os testemunhos pessoais que deu enquanto cobria o caso Floyd Jr. Se a CNN realmente cometesse racismo, jamais permitiria que o jornalista expusesse no ar os preconceitos que enfrentou, sustenta a defesa. Tampouco deixaria que outros profissionais negros se pronunciassem durante a mesma cobertura, conforme ocorreu em 10 de junho de 2020. “A empresa-ré adota comportamento totalmente diverso daquele relatado [pelo ex-funcionário]. Observa-se claramente […] que a reclamada abriu espaço para seus colaboradores externarem sua opinião, como forma de reforçar a importância de assegurar o respeito ao ser humano, independentemente da cor da pele”, ressalta Mascaro Nascimento no processo.
Ainda de acordo com o advogado, ninguém exigiu que Oliveira testemunhasse nem que o depoimento dele seguisse um “roteiro repassado pela chefia”. A mensagem de WhatsApp que o jornalista recebeu de Adriana Mabilia, a editora em São Paulo, seria mais “uma indagação” do que “uma imposição”: “Fê, hoje […] você poderia entrar pra dar a tua percepção de tudo.” A CNN argumenta que havia a possibilidade de Oliveira recusar o pedido, mas ele “não o fez”. Pelo contrário: preferiu concordar “expressamente” em se manifestar (“Claro, Dri. Fechado!”).
Quanto à denúncia de que todos os jornalistas negros da redação ganhavam menos que os pares brancos, a emissora diz se tratar de uma afirmação “infundada”. Por isso, não lhe caberia abrir a folha de pagamento para a Justiça. “A atribuição de demonstrar a existência de fatos que não existiram […] fere o princípio da razoabilidade”, contrapõe a defesa. O canal também classifica de “impertinente” a reclamação de que Oliveira deveria ganhar salário de repórter.
A CNN contesta, ainda, que pretendeu converter o antigo funcionário em segurança de Luiza Duarte. Quando o convocou para acompanhá-la na rua, a emissora queria somente garantir “o suporte de produção” necessário às imagens que integrariam os boletins noturnos da correspondente. Oliveira cuidaria, por exemplo, “das questões técnicas de luz”.
O canal anexou à ação um e-mail que Mabilia enviou em 13 de julho de 2020. A mensagem elogiava uma matéria de Duarte e Oliveira sobre a ressurreição dos cinemas drive-in nos Estados Unidos durante a pandemia. “Fê e Lu, o VT [jargão para reportagem] ficou ótimo. Vocês viram? Imagens lindas… UAU! Parabéns. Valeu o esforço… Muito!”, escreveu a editora. Conforme a defesa, o e-mail mostra que a CNN “sempre primou pelo tratamento respeitoso e pelo reconhecimento da qualidade da prestação de serviço, situação longe de se caracterizar como […] racismo estrutural”.
“Por amor ao debate”, Mascaro Nascimento também coloca em xeque as críticas que os advogados do jornalista fizeram à contratação de William Waack. Recriminar a ida dele para o canal revelaria tanto uma “evidente posição discriminatória” de Oliveira quanto o desejo de condenar perpetuamente o apresentador, tirando-lhe o direito de continuar na profissão depois de sair da Globo.
Como baseia as acusações de racismo em “alegação desprovida de veracidade”, prossegue a defesa, o ex-funcionário estaria praticando “litigância de má-fé”. Ou melhor: estaria corrompendo a “lealdade processual” e tentando induzir “o Juízo a erro”. A estratégia, se comprovada, é passível de multa.
A própria CNN pediu o segredo de Justiça. “Os fatos alegados […], muito embora improcedentes […], têm potencial para macular a reputação de um dos canais mais influentes do mundo”, afirma Mascaro Nascimento nos autos. “Ademais, [fatos dessa natureza acabam] se transformando em notícia, que é levada ao conhecimento de colunistas de televisão para ser publicada.” No dia 9 de março de 2021, o juiz Gabriel Garcez Vasconcelos acatou a reivindicação e decretou o segredo.
Um mês depois, a CNN nomeou Renata Afonso como presidente. A executiva – branca – substituiu Douglas Tavolaro, fundador e sócio minoritário da emissora, que vendeu suas ações para o banqueiro e empreiteiro Rubens Menin, agora o único controlador do canal. Egressa de uma afiliada da Globo em São Paulo, Afonso é casada com outra mulher. Ela mesma deu a informação durante as primeiras reuniões de que participou na CNN. Também disse à nova equipe que abomina qualquer preconceito e que cresceu sob os cuidados de parentes negros. “Quero fazer uma gestão transparente. Por isso, não poderia esconder quem sou e quais as minhas convicções”, explicou para o site Notícias da TV.
Desde que tomou posse, a presidente busca estimular as discussões sobre diversidade e inclusão dentro e fora da empresa. Não à toa, em outubro de 2021, a emissora lançou o CNN no Plural. O projeto – idealizado pela gerente de conteúdo Letícia Vidica, uma jornalista preta – dissemina por todas as plataformas do canal reportagens que tratam de assuntos caros às chamadas minorias, como o etarismo, a identidade de gênero, a transfobia, a Lei de Cotas e a luta contra a Aids. O podcast Entre Vozes aborda temas semelhantes e se encaminha para a terceira temporada. A âncora Luciana Barreto o apresenta. Ela, que também comanda o programa Visão CNN, figurou na lista dos duzentos afrodescendentes mais relevantes do planeta em 2021. O levantamento anual conta com o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU).
No último 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, outro âncora preto, Jairo Nascimento, pediu licença para ler um “manifesto pessoal” durante o CNN Sábado Manhã:
Há quem diga que o racismo é mi-mi-mi, frescura, exagero e que, no fundo, a escravidão foi boa. O absurdo dessas ideias escancara o perfil de uma pessoa: o racista. No geral, ele estuda pouco e desconhece o passado do país, mas se vangloria desse desconhecimento convicto. Ele se acha uma boa pessoa, tem até um amigo negro para chamar de seu e que cai muito bem como um tipo de estepe se rolar um processo ou uma acusação de racismo. A empregada negra é quase da família, enquanto o cachorro, esse sim, esse é da família. O racista nunca é racista. Ele sempre é vítima do racismo que chama de reverso, de um mal-entendido, ou diz que estava apenas emitindo uma opinião. O racista precisa cair na real. As bases da escravidão são o sequestro, os assassinatos, a tortura, os estupros, a destruição cultural, os trabalhos forçados, a separação de famílias e etnias, além do roubo de propriedade, identidade e humanidade. Só por aqui isso aconteceu ao longo de quase quatrocentos anos. O resultado está na negação de direitos à maioria dos brasileiros pretos e pardos, que têm apenas acesso aos piores índices sociais. O Brasil precisa tratar o racista por aquilo que ele é, um criminoso. […] Eu quero dar um conselho a você, racista: assuma o seu crime, repense o seu preconceito e modernize as suas ideias. Entenda que você não é dono do meu passado […], nem das minhas vontades, nem dos meus pensamentos. Não lhe cabe determinar o que eu quero ou dar tamanho à minha dor. Economize seus adjetivos. Você, racista, é ultrapassado. A cada dia, com o despertar dos negros, você terá que […] aguentar a nossa pele, os nossos cabelos, a nossa teimosia em forma de resistência, a nossa história, a nossa inteligência e, claro, os nossos batuques.

Mesmo que involuntariamente, Hebe Camargo e Fausto Silva, o Faustão, contribuíram para que Fernando Henrique de Oliveira se encantasse pelas comunicações. Ele pegou no batente muito cedo, aos 13 anos. Não precisava trabalhar, mas já queria ganhar o próprio dinheiro. Ia para a escola de manhã e, à tarde, era balconista no boteco dos avós maternos. Com o salário, comprava roupas moderninhas, cadernos de capa dura ou lapiseiras prateadas. De quebra, a grana o deixava um pouco mais independente do pai, funcionário administrativo da prefeitura paulistana que criava os filhos sem nenhum tato – gritava, batia, ameaçava.
Na periferia de São Paulo, onde nasceu e se educou, Oliveira levava uma vida de classe média baixa. A casa térrea em que morava tinha 60 m², se tanto. Ele dividia o quarto com os dois irmãos e estudava numa escola pública. A mãe se dedicava às tarefas domésticas. Caso sobrasse tempo, descolava uns trocados como manicure. Nas férias, a família passava alguns dias em Praia Grande, balneário popular da Baixada Santista.
Perto dos 15 anos, Oliveira arranjou uma ocupação melhor, graças à indicação de um vizinho. Tornou-se office boy numa agência especializada em clippings, relatórios que reúnem informações divulgadas pela mídia sobre determinadas marcas ou personalidades. Entre os clientes da empresa, estavam Hebe e Faustão. De vez em quando, o garoto entregava clippings no endereço deles. Embora nunca conseguisse vê-los, se sentia o máximo por atender duas estrelas da tevê. A incumbência lhe parecia mais fascinante e promissora do que servir os fregueses dos avós.
O adolescente também deixava relatórios numa assessoria de imprensa muito requisitada por galerias e centros culturais. De tanto ir lá, conquistou a simpatia dos funcionários e recebeu um convite para trocar de emprego. Aceitou sem hesitar. Na ocasião, planejava estudar artes plásticas por influência de um tio, que fazia luminárias decorativas e pintava quadros. Como office boy da assessoria, Oliveira ganharia mais e ainda poderia se aproximar de artistas, marchands e curadores.
Foi assim que, com quase 16 anos, pisou num vernissage pela primeira vez. Ficou boquiaberto: o champanhe e as telas o deslumbraram. Ele logo se transformou num habitué de exposições e leitor voraz de críticas. Descobriu as vanguardas modernistas, a pop art, o abstracionismo e as performances. Por tabela, constatou que os brancos imperavam naqueles ambientes. Raríssimos negros visitavam as mostras. Oliveira já tinha certa noção do racismo, mas agora o problema se desnudava com nitidez. A maioria dos negros que circulava pelos eventos usava uniforme de segurança, garçom ou copeiro.
O desejo de cursar artes plásticas acabou descartado em nome da prudência. Quando terminou o ensino médio, o jovem decidiu seguir a carreira de relações públicas, que considerava menos instável. Foi aprovado no vestibular da UniSant’Anna, uma instituição privada. De início, julgou que conseguiria arcar sozinho com a nova despesa. Enganou-se: o salário de office boy mal dava para a alimentação no campus. À época, os pais de Oliveira já não viviam juntos. A separação do casal desequilibrou o orçamento doméstico. Pedir ajuda à família não estava mais no horizonte. Ele buscou, então, um financiamento do governo federal. Assim, durante a maior parte da graduação, pagou apenas 30% da mensalidade. Só liquidou o resto depois da formatura.
Antes de chegar à UniSant’Anna, estudou numa única escola. Não figurava entre os primeiros da turma, mas nunca repetiu de ano. Expansivo e aguerrido, se elegeu presidente do grêmio quatro vezes. Brigou para que o colégio fornecesse merenda de qualidade, organizasse passeios culturais, aprimorasse a limpeza das salas e não atrasasse a entrega gratuita de cadernos. Nos tempos de faculdade, porém, o rapaz se distanciou das lutas estudantis. Também evitou militar em partidos políticos ou engrossar movimentos identitários. Preocupava-se mais com as aulas e o trabalho. Mesmo assim, se proclamava um “preto de esquerda”.
A mãe de Oliveira não pulou de alegria quando o primogênito entrou na universidade. “Abra o olho, menino! Não imagine que mudou de cor só porque anda no meio dos ricos”, advertia. “Curso superior é papo de branco. Você vai torrar uma fortuna com a faculdade e, depois, não vai encontrar nenhum emprego que compense o investimento.” A orientação sexual do jovem – gay assumido desde a adolescência – causava atritos adicionais. A mãe rejeitava os gestos delicados, a voz fina e os trajes exuberantes do filho.
Não por acaso, às vésperas dos 19 anos, Oliveira saiu da casa materna para dividir uma quitinete com um professor da UniSant’Anna, também negro e gay. Em poucas semanas, o rapaz já enxergava o parceiro de apartamento como um híbrido de pai, irmão mais velho e mentor intelectual. O professor, que ensinava língua portuguesa, tinha centenas de livros. “Não leia apenas os textos da faculdade. Explore a minha biblioteca”, sugeria para o jovem, que acatava todas as recomendações de leitura. Certo dia, o professor lhe perguntou: “Que tal estudar fora do Brasil?” O universitário jamais aventara a hipótese. “Por que não? Quem sabe a França…”, insistiu o professor. “Se você realmente quiser, vai rolar.” O incentivo surtiu efeito.
Contrariando os receios da mãe, Oliveira arrumou bons empregos nos primeiros anos de formado, conseguiu poupar um dinheirinho e levou adiante o conselho de ir para a França. Desembarcou por lá no segundo semestre de 2007. Seis meses antes da viagem, teve aulas básicas de francês. Em Paris, continuou o aprendizado na Sorbonne, que oferecia cursos para estrangeiros. Tão logo se tornou fluente, tratou de alçar voos maiores. Ainda na Sorbonne, concluiu uma licenciatura e dois mestrados, sempre em arte e cultura. Sustentava-se principalmente com bolsas e outros tipos de apoio governamental. Se necessário, fazia bicos em restaurantes e bares. Não raro, cuidava de crianças.
Em 2011, o jornalismo da Band precisou de um produtor e cinegrafista na França. Era uma vaga temporária. Como sabia operar câmeras, Oliveira se candidatou. Deu conta do recado, e a emissora o convocou mais vezes. Com o tempo, ele se firmou no ofício, que exercia em paralelo às obrigações acadêmicas. Quando não prestava serviços para a Band, auxiliava o SBT, a Rede TV!, a France Télévisions e o canal russo RT.
No início de 2018, recebeu uma proposta da Globo. O programa Conversa com Bial queria incorporá-lo à equipe de produção, que ficava em São Paulo. Oliveira aceitou a oferta, mesmo sem curtir muito a ideia de deixar Paris. Aproveitou o retorno à cidade natal para obter o registro de jornalista no Ministério do Trabalho. Em dezembro de 2019, trocou a Globo pela CNN Brasil e São Paulo por Nova York. Hoje, com 39 anos, está de volta à capital francesa. Solteiro, não tem filhos, segue ganhando a vida como produtor e faz doutorado em economia da cultura.
Entre março e outubro de 2020, enquanto morava nos Estados Unidos, foi colunista da Gama, revista eletrônica do grupo Nexo. Escrevia sobre arte e questões raciais. Num dos artigos, relembrou o momento em que tirou o passaporte pela primeira vez, já com a intenção de viajar para a França. “Um sufoco. […] Todo mundo me achou maluco. Ir à polícia sem ser detido era algo novo no meu pedaço.” Ele contou que, quando começou a viver em Paris, finalmente se sentiu tratado de maneira respeitosa. “Me chamavam de monsieur DE OLIVEIRA (com um leve acento no A, bem francês).” Sempre que visitava o Brasil, se entristecia “por deixar para trás o respeito e o vocativo de senhor”.
Em outro artigo, abordou a cobertura do assassinato de George Floyd Jr.: Caminhar pelas ruas de Houston, no Texas, faz de mim um homem dividido: aquele que narra e aquele que está prestes a inventar suas próprias leis. […] As horas passam, e as reflexões não param. Minha conclusão é que Floyd cometeu, sim, um crime: nasceu preto. Minha entranha está dilacerada. Eu também sou um criminoso […]: nasci preto. […] Dizer que a vida dos negros importa é essencial, mas dizer isso para nós, sinceramente, não muda nada. […] O que Floyd, eu e tantos outros temos em comum é que somos fruto da desigualdade social. Não somos e não seremos iguais enquanto eu tiver três vezes mais chance de ser assassinado pela polícia do que você.
Num terceiro artigo, Oliveira discorreu sobre o Dia da Consciência Negra:
Se não bastasse lidar com todas as frustrações, lido com o que dita a moda. […] Por conta da cor, pelo famoso lugar de fala e talvez por minha formação acadêmica, às vezes sou sondado para o dia de “preto brilhar” […]. Dos oito convites que me foram feitos – entre eles, escrever um texto, dar uma palestra e fazer um filme para a internet – nenhum foi remunerado. Nenhum. Minha leitura? “Aproveite o momento para levantar a bandeira da sua gente. Não precisamos te pagar para isso; na verdade, é uma oportunidade.” Além de ser frustrante, é a morte do bom senso. Mudar pressupõe repensar a economia e a distribuição de renda.
Quando vivia em Nova York, o jornalista também conversou a respeito de Floyd Jr. com o publicitário Bruno Infanger, que mantém o canal Alto Papo no YouTube. A entrevista durou 28 minutos. Logo no início, Infanger perguntou se falar de racismo incomodava Oliveira. O entrevistado respondeu que considera necessário discutir o assunto, embora não goste de recordar “o que já aconteceu” com ele próprio ou “algum amigo, primo, parente”. E explicou: “Na verdade, lembrar é sempre muito doloroso”.
(revista piauí)

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Macaco, não!

Uma carta para o lateral do Corinthians que foi acusado de injúria racial

MARIO ARANHA, em depoimento a Armando Antenore

Caro Rafael Ramos,
Faz quatro anos que não vejo um jogo de futebol. Nas quase duas décadas em que fui goleiro, vivi o esporte intensamente. Era um atleta obstinado. Treinava sem reclamar, estudava os adversários e me esforçava para manter o preparo físico. Hoje não acompanho os jogos nem pela tevê. Mesmo assim, fiquei sabendo do que rolou no dia 14 de maio. O Corinthians enfrentava o Internacional em Porto Alegre. O Campeonato Brasileiro estava na sexta rodada, e o Beira-Rio recebia cerca de 17 mil torcedores. Quando faltavam quinze minutos para o fim da partida, o volante Edenilson, do time gaúcho, acusou você de racismo. Ele é negro. Você é branco.
O juiz Bráulio da Silva Machado interrompeu o jogo. Queria entender melhor o que se passava. Edenilson disse que você o xingou de macaco. O árbitro anotou o caso na súmula, mas não tomou mais nenhuma providência. O jogo continuou e acabou empatado: 2 a 2. Logo depois do confronto, Edenilson prestou queixa à Polícia Civil, que foi até o vestiário e prendeu você por injúria racial. O Corinthians pagou a fiança de 10 mil reais na madrugada do dia 15. Agora você responderá ao inquérito em liberdade. “Sei o que ouvi”, escreveu Edenilson no Instagram. Mas você nega tudo: “Não fui, não sou e nunca serei racista.” O Corinthians acionou o Centro de Perícias Curitiba para analisar o vídeo de 28 segundos que registrou parte da discussão em campo. Os técnicos concluíram que ninguém falou a palavra “macaco”. No bate-boca, de acordo com a perícia, o volante do Internacional berrou “maluco!”, e você, “pô, caralho!”.
Como negro, minha tendência é acreditar no Edenilson. Também sei o que já ouvi dentro dos gramados… No entanto, não vou questionar o parecer de especialistas. Só decidi redigir esta carta porque você jogava em Portugal, onde nasceu, e virou lateral do Corinthians há apenas dois meses. Certa vez, o compositor Tom Jobim disse que o Brasil não é para principiantes. Falou de gozação, mas acertou em cheio. Nem os brasileiros sabem direito como lidar com o Brasil. Imagine os estrangeiros… Provavelmente, você não compreende muito bem em que pé está a luta racial por aqui. Gostaria de explicar.

Para começo de conversa, você não é o primeiro jogador a sair preso de um estádio no país. Me lembro perfeitamente de outro episódio. Em abril de 2005, no Morumbi, o São Paulo recebeu o Quilmes pela Taça Libertadores da América. Uma hora, o zagueiro Desábato, do clube argentino, ofendeu Grafite: “Negro de merda!” Indignado, o centroavante são-paulino empurrou o rosto do adversário e acabou expulso. Assim que a partida terminou, a polícia levou Desábato à delegacia. Ele ficou detido por duas noites. Pagou fiança e voltou para Buenos Aires. Grafite retirou a queixa em outubro daquele ano e sepultou a pendência.
Infelizmente, é comum que atletas ou torcedores do Brasil sofram injúria racial na Libertadores. Só em 2022, já aconteceram oito casos. Os racistas estavam nas torcidas do Olimpia (Paraguai), do Emelec (Equador), do Millonarios (Colômbia), do Universidad Católica (Chile), do Estudiantes de La Plata, do Boca Juniors e do River Plate (os três da Argentina). A Confederação Sul-Americana de Futebol abriu processos disciplinares para investigar os ataques. Por enquanto, multou cinco equipes.
Alvos habituais dos insultos, os torcedores, cartolas e jogadores brasileiros jamais deveriam se comportar como quem os provoca. Só que, para vergonha de todos nós, muitos se comportam. Eu próprio escutei coisas terríveis no dia 28 de agosto de 2014, quando defendia o Santos. Jogávamos contra o Grêmio pela Copa do Brasil, em Porto Alegre. Parte da torcida gaúcha me importunou o tempo inteiro. Uns gritavam “preto fedido” e “macaco”. Outros imitavam os sons do animal. Alertei o juiz Wilton Pereira Sampaio, que não moveu uma palha e ainda me ameaçou com cartão amarelo. Foi então que explodi. Passei a mão na pele do meu braço e berrei para os torcedores: “Sou preto, sim!” No final do jogo, dei várias entrevistas condenando duramente aquele circo de horrores.
O Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) excluiu o Grêmio da Copa do Brasil, mas a decisão acabou revogada. Pouco antes do  julgamento, dirigentes do time gaúcho apelaram à velha tática de culpar a vítima. Disseram que irritei a torcida gremista porque fiz cera no decorrer da partida. Um ex-presidente do clube me chamou de trapaceiro. Declarou à imprensa que armei “uma cena teatral depois de ouvir uns gritinhos”. Em 18 de setembro de 2014, o Santos enfrentou de novo o Grêmio, agora pelo Brasileirão. Mais uma vez, torcedores me atormentaram. Levei vaia durante todo o jogo.
A perseguição não parou nem mesmo quando mudei de equipe. No dia 16 de julho de 2017, como goleiro da Ponte Preta, encarei o Grêmio em Porto Alegre e amarguei outra enxurrada de vaias. Por determinação de cartolas gremistas, uma câmera acompanhou cada um dos meus movimentos dentro de campo. O clube me considerava “uma pessoa perigosa e difícil”, nas palavras de um diretor. Daí a vigilância. A única recordação agradável daquela tarde é o cartaz que dois gremistas, pai e filho, ergueram nas arquibancadas: “Aranha!! O tempo passa, mas a dor não! Novamente… perdão por tudo!!! Somos a verdadeira torcida do Grêmio!”

Virei profissional em 1999, no Palmeirinha, um pequeno time de Porto Ferreira (SP). Depois, vesti a camisa de mais sete equipes. Pela ordem: Esporte Clube União Suzano, Ponte Preta, Atlético Mineiro, Santos, Palmeiras, Joinville, Ponte Preta outra vez e Avaí. Tinha 38 anos quando parei. Agora, estou com 41.
O racismo me infernizou até o final. No Avaí, de Florianópolis, onde pendurei as chuteiras em novembro de 2018, pensei que teria sossego. Doce ilusão… Enquanto disputava o campeonato catarinense, aturei muita afronta de torcedores rivais. Eles não me ofendiam com termos racistas, mas faziam alusão à atitude que tomei contra os gremistas em 2014: “Aranha chorão! Aranha criador de caso! Aranha treteiro!”
A verdade é que minha carreira saiu dos trilhos depois que abracei a causa negra nos gramados. De 2014 em diante, nunca mais deixei de discutir o assunto publicamente. A mídia não parava de me procurar para tratar da questão. Nenhum dirigente gosta de jogadores que agem assim. Com o distintivo do clube e as marcas dos patrocinadores no peito, eu denunciava a estrutura racista do futebol. Mostrava a poeira debaixo do tapete. Botava o dedo na ferida. Era uma situação embaraçosa. Creio que, por isso, as boas propostas minguaram. Em dezembro de 2015, o Palmeiras me dispensou. Fiquei um semestre desempregado, sem receber um único convite. Atletas que deixam uma potência como o Palmeiras costumam se recolocar no mercado rapidamente. Em geral, vão para outro time grande. Imaginei que aconteceria o mesmo comigo, mas…
Até hoje, me entristece relembrar certos episódios. Por exemplo: quando jogava no Santos, peguei um voo comercial. Durante a viagem, uma passageira branca perguntou para um segurança negro do clube: “Aquele é o goleiro Aranha?” O segurança confirmou. A passageira logo emendou com uma observação surreal: “Não sei por que o cara reclamou tanto dos torcedores que o chamaram de macaco. Um bicho tão simpático, tão fofinho…” Sem elevar a voz, o segurança retrucou: “A senhora gostaria que a chamassem de vaca ou de galinha? Também são bichos simpáticos, fofinhos…”
Nas redes sociais, li coisas piores. Os racistas me bombardeavam com palavrões, ironias, piadinhas, textões e ameaças. Incomodavam até minha família. Tive de apagar todos os meus perfis. Só voltei para o Instagram e o Facebook há poucos meses.
Não é à toa que passei os últimos quatro anos sem ver jogos de futebol. O racismo tirou a felicidade que o esporte me dava. Você consegue se colocar na minha pele, Rafael? Consegue medir a violência dos gestos e expressões que roubaram de mim um dos meus bens mais preciosos? Recentemente, me tornei cartola. Aceitei um cargo administrativo no Mogi Mirim, clube paulista da quarta divisão. Tomara que a experiência me devolva o prazer do futebol.

Nasci em Pouso Alegre, no Sul de Minas Gerais. Quando criança, jogava com os moleques do bairro. Depois das partidas, matávamos a sede na casa de algum garoto. Às vezes, as mães dos meninos brancos não permitiam que os negros entrassem. A gente bebia o copo d’água na porta. Eu demorei para associar aquilo à discriminação. De início, me parecia natural que negros e brancos não compartilhassem determinados espaços. A ficha caiu apenas na adolescência, por causa do hip-hop. Meus primos tinham um grupo de rap. Aprendi bastante com o que cantavam e ouviam. As rimas condenavam os abusos da polícia, alertavam para o perigo das drogas, aplaudiam a negritude e protestavam contra o racismo. Estimulado pelo hip-hop, resolvi pesquisar mais sobre os pretos. Li biografias e livros de história, troquei ideia com estudiosos, participei de debates e acompanhei batalhas de MCs. Eu já estava na luta havia um tempão quando a torcida do Grêmio me provocou. Já militava, já participava de conversas em escolas e instituições sem fins lucrativos, já dava uns toques para os companheiros de time: “Mano, quem você acha que libertou os escravos? A princesa Isabel? Não, cara! A mina não cuidou de tudo sozinha…” Eu comia pelas beiradas e evitava me expor como ativista na imprensa. Se jogasse mal, os espíritos de porco iriam me encher o saco: “Está vendo? O Aranha esqueceu a bola. Só pensa em agitar.” Claro que minha estratégia se alterou por completo depois que reagi daquele jeito na partida de 2014.
Não me arrependo. Levantar a bandeira do antirracismo me trouxe problemas, mas também me engrandeceu como cidadão – tanto que, no finzinho de 2014, ganhei do governo federal o Prêmio Direitos Humanos. Sinto profundo orgulho das brigas que comprei em nome da igualdade. Hoje, recebo mais incentivo e elogios do que críticas. Sou convidado para dar palestras no país inteiro. Solto o verbo principalmente em ONGs, colégios e empresas. Tento seguir a trilha do ator Lázaro Ramos, que trata de questões raciais com certa suavidade. Ele manda a real sem usar palavras ásperas. Os brancos que o escutam acabam baixando as armas. Saem da defensiva, não se fecham para a mensagem.
Outra inspiração é Carolina Maria de Jesus, a catadora de papel que fazia um diário sobre a vida na favela onde morava com os filhos. Em 1960, os registros se transformaram no livro Quarto de Despejo. Como tinha pouco estudo, Carolina escrevia de maneira bem própria. Ela entregou o diário para o jornalista Audálio Dantas, que organizou a papelada toda, mas sem mudar o estilo da autora. Foi assim que surgiu o livro.
Eu também curto escrever e não avancei muito na escola (concluí o ensino médio só depois de adulto). Por dois anos, redigi pequenos textos sobre a história brasileira, destacando a contribuição de personagens negros, como o geógrafo Teodoro Sampaio, o psiquiatra Juliano Moreira, a socióloga Virgínia Bicudo e o engenheiro André Rebouças. Queria mostrar que os pretos não aceitaram passivamente a escravidão do passado nem aceitam as explorações do presente. Mesmo sob condições ruins, buscam caminhos para crescer.
Quando li Quarto de Despejo, tomei coragem e apresentei as anotações à editora Mostarda. Os profissionais da casa ajeitaram os escritos sem adulterar o meu palavreado. O trabalho resultou no livro Brasil Tumbeiro, que publiquei em 2021 com a intenção de atrair especialmente os jovens. Talvez você não saiba, mas tumbeiro é sinônimo de navio negreiro. Na travessia marítima da África para a América, os pretos morriam às dezenas. Viajavam em tumbas, não em navios. Agora preparo outro livro, um infantil sobre o abolicionista José do Patrocínio, que será lançado em julho, na Bienal de São Paulo.

Costumo dizer que não tenho nada contra os brancos. Minha desavença é com os racistas. Ou melhor: é com o racismo que está impregnado em nossa sociedade e se manifesta nas situações mais comuns. Nem sempre as pessoas que expressam preconceito desejam realmente discriminar. Muitas vezes, agem por impulso, sem perceber a imensa dor que causam. Chamar negros de macacos pode até não parecer tão ofensivo para um branco. Há quem ache que o xingamento é uma brincadeira. Estão redondamente enganados. Nenhum branco faz ideia do que os negros sentem quando são desumanizados.
Lembre-se disso toda vez que entrar em campo, Rafael, e continue lembrando fora dos estádios. Se por acaso você derrapar e disser uma bobagem para alguém, admita logo. Não finja que nada aconteceu. Assuma o erro e peça desculpas.
(revista piauí)

domingo, 1 de maio de 2022

Esqueceram de mim

Um casal de veterinários, uma guerra e uma legião de animais abandonados

Assim que Leonid e Valentina Stoyanov iniciaram a conversa por vídeo, uma sinfonia desordenada de gorjeios, assobios, grasnidos, arrulhos, pios e cacarejos se misturou às vozes deles. “Mil desculpas pela barulheira. É que estamos cuidando de umas cem aves”, explicou Valentina. Nenhum dos bichos aparecia na tela do computador. A sala em que a dupla se acomodou para a entrevista abrigava somente um camaleão. O pequeno réptil descansava num aquário retangular, espaçoso e sem água. Embora risonho, o casal de veterinários não conseguia esconder o cansaço.
Eram onze e meia da manhã no Rio de Janeiro. Em Odessa, onde nasceram e ainda moram, os Stoyanov estavam seis horas à frente. Naquela segunda-feira de abril, a terceira maior cidade da Ucrânia, com 1 milhão de habitantes, aguardava novos ataques russos. Desde que as tropas de Vladimir Putin invadiram o país, em fevereiro, a litorânea Odessa e seus arredores têm sofrido bombardeios frequentes. Os mísseis vêm de navios no Mar Negro. Às vezes, a fuzilaria também parte de aviões supersônicos. Os ataques visam sobretudo fábricas, refinarias, depósitos de combustíveis e outros pontos que a Rússia considera estratégicos para abalar a infraestrutura ucraniana. De tempos em tempos, drones sobrevoam a cidade com o intuito de mapear futuros alvos. Muitas das agressões têm como efeito colateral a destruição de moradias, já que as explosões espalham uma quantidade significativa de estilhaços.
As autoridades acionam sirenes tão logo detectam o risco de ataques. Nessas ocasiões, as igrejas badalam os sinos freneticamente. Uns saem das ruas ou se afastam das janelas caso estejam em ambiente fechado. Outros buscam proteção nos abrigos subterrâneos que a Ucrânia instalou quando pertencia à União Soviética. Há, ainda, quem procure as centenas de galerias, também subterrâneas, que atravessam Odessa. Escavadas a partir do século XVIII, somam pelo menos 2,5 mil km de extensão. A maioria funcionava como mina de calcário, rocha sedimentar usada na construção civil. Algumas integravam o sistema de esgoto. Hoje todas estão inativas e muitas viraram atração turística. Ironicamente, mesmo contando com uma rede tão vasta de túneis, a cidade não dispõe de metrô.
Nos momentos de maior perigo, o governo decreta toques de recolher, que podem suspender a circulação pelas ruas por mais de 24 horas. Milhares de pessoas saíram de Odessa desde que a guerra começou. Uma parcela dos egressos abandonou os animais de estimação, seja pela dificuldade de transportá-los, seja pelo temor de não conseguir entrar nos países fronteiriços com os bichos.
Sem intenção de ir embora da Ucrânia, os Stoyanov resolveram acolher uma legião de cães, gatos, roedores, pássaros, galinhas, cacatuas, papagaios, tartarugas, lagartos e camaleões deixados para trás. “Fora as cem aves, resgatamos 120 animais até agora”, diz Leonid. “Uma loucura! Estamos tão atarefados que já não sabemos direito o que é dormir.” A dupla levou boa parte dos recolhidos para a clínica que comanda perto do Centro de Odessa. Os restantes ficam na casa térrea dos veterinários, que tem um quintal amplo e arborizado, ou nos domicílios de familiares e amigos. “Ultimamente, nenhum dos nossos conhecidos ousa atender às minhas ligações. Eles logo pensam: ‘Aposto que aquele maluco vai querer me empurrar mais um cachorro…’”, reclama Leonid, em tom de zombaria.

Odessa é uma cidade bilíngue. Lá se fala tanto russo quanto ucraniano. Não raro, os nativos misturam os dois idiomas num mesmo diálogo. O casal preferiu dar a entrevista de quase três horas em russo. George Yurievitch Ribeiro, filho de uma pedagoga moscovita e um historiador paulistano, a traduziu. “Conseguem escutar as sirenes?”, pergunta Valentina após quarenta minutos de conversa. “Acabaram de soar.” Por estar dentro da clínica, numa espécie de porão, a dupla não precisou buscar abrigo.
Os Stoyanov já criavam diversos bichos quando o conflito estourou – as cadelas Alma, Bonitta e Aurora, o macaco Tosya, dez sapos, um camaleão e algumas tartarugas, além de cobras. “Somos exagerados”, admite Leonid. De acordo com o veterinário, no ano passado, 30% dos ucranianos tinham animais de estimação. Como o país reunia 43,7 milhões de habitantes à época, a fauna doméstica superava os 13 milhões de bichos, especialmente gatos. Quantos perderam os tutores de fevereiro para cá? “Difícil responder. Não existem levantamentos oficiais”, diz Valentina. A Organização das Nações Unidas calcula que 5 milhões de pessoas fugiram da Ucrânia e 7,1 milhões se deslocaram internamente em virtude dos recentes confrontos. Grande parte dos refugiados migrou para a Polônia, Moldávia, Hungria e Romênia. É o maior êxodo na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
A minoria dos 220 animais que os Stoyanov acolheram chegou por intermédio dos próprios tutores. “A situação do Kasper nos parece a mais trágica”, diz Leonid. Cego, o husky siberiano morava com um jovem militar. “As Forças Armadas convocaram o rapaz para o front. Ele é órfão e não tem parentes vivos. Por isso, considera o cachorro um membro da família”, conta Valentina. Pouco antes de se juntar às tropas, o soldado entregou o husky para o casal e pediu, chorando: “Gostaria que vocês me enviassem imagens do Kasper todos os dias.” Os dois vêm cumprindo o desejo do combatente. “Só que não sabemos nada dele há três semanas. Mandamos as fotos e os vídeos, mas o rapaz segue em silêncio. Não se manifesta de jeito nenhum, ao contrário do que fazia antes”, lamenta a veterinária. “É inevitável pensar no pior…” Noventa por cento dos animais acolhidos pela dupla já não recebiam cuidados de ninguém. Ocupavam gaiolas largadas nas ruas, ou estavam amarrados em postes, ou padeciam dentro de casas vazias. “A gente mesmo resgatou os bichos, depois de avaliar denúncias enviadas por telefone e pelas redes sociais”, diz Leonid. Os Stoyanov acreditam que havia mais abandonos no princípio da guerra. Àquela altura, a comunidade internacional ainda não decidira se aceitaria refugiados com animais de estimação. “Agora as coisas mudaram”, festeja Valentina. “Muitos países facilitaram a entrada de bichos ucranianos, inclusive o Brasil.” Em março, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento permitiu o ingresso de cães e gatos originários da Ucrânia, sem a necessidade de certificação sanitária. A medida, porém, não vale para répteis, aves e demais mamíferos.
Um dos destaques entre os bichos que escaparam é Stepan, gato malhado com milhões de admiradores no Instagram e TikTok. O influencer de quatro patas vivia em Kharkiv e se tornou ainda mais célebre há quase seis meses, depois que a cantora norte-americana Britney Spears postou uma foto dele. A família responsável por Stepan deixou às pressas a cidade do nordeste ucraniano, severamente bombardeada. No início de março, cruzou a fronteira com a Polônia e seguiu para a França. De lá, o bichano continua atraindo novos fãs.

Os Stoyanov planejam oferecer os animais recolhidos à adoção logo que o confronto terminar. “Mas é claro que, se os tutores quiserem os bichos de volta, nós vamos devolver”, diz Leonid. Outros ativistas realizam ações similares às da dupla em toda a Ucrânia. Mesmo alemães, holandeses, romenos e poloneses viajam até as zonas de guerra para acudir pets desalojados. Eles também resgatam habitantes de zoológicos danificados pelos russos ou sob a ameaça de bombardeio.
Não bastasse o abandono, os animais ficam assustadíssimos com os tiroteios, estrondos e sirenes. “Hoje uma moradora de Odessa me escreveu, desesperada: ‘Minha tartaruga parou de comer! O que faço?’ Infelizmente, não tenho como ajudar. É o estresse que está tirando a fome da pobrezinha”, aflige-se Leonid. No zoo de Kiev, capital ucraniana, o elefante-asiático Horace toma sedativos. Mesmo assim, desperta inúmeras vezes durante a noite. Para acalmá-lo, tratadores dormem perto dele e lhe dão maçã sempre que acorda.
Casados desde agosto de 2017 e sem filhos, os Stoyanov descobriram bem cedo o apreço pela veterinária. “Nunca cogitei outra profissão. Eu mal sabia falar e já anunciava: ‘Quando crescer, vou salvar os bichos doentes’”, lembra Valentina, que completará 29 anos em julho. Leonid, de 34, recorda que pegava minhocas na infância para lhes aplicar injeções fictícias. Agora a dupla cuida tanto de animais selvagens quanto dos domésticos. O casal também faz pesquisas acadêmicas na área de parasitologia. Valentina estuda os parasitas das aves. Leonid, os dos répteis. Nas redes sociais, há fotos e vídeos em que os dois interagem com tigres, leões, antílopes, zebras, leopardos, rinocerontes, bisões, lêmures, girafas, crocodilos e flamingos na Europa, Ásia e África.
Antes da guerra, além de se dedicarem à clínica particular, os Stoyanov reservavam parte do tempo para a Vet Crew. Fundada e administrada por ambos, a instituição sem fins lucrativos socorre bichos selvagens que se acidentaram ou sofreram agressões. “Em geral, a violência acontece nos circos e zoológicos de contato, uma vergonhosa tradição ucraniana. Não posso acreditar que ainda existam”, diz Leonid. Os zoos de contato operam em shoppings e permitem que o público toque nos animais, o que os incomoda bastante.
A própria dupla banca os custos da Vet Crew, que tem quatro funcionários – dois remunerados e dois voluntários. Os demais colaboradores são esporádicos e também não ganham nada. “Depois de tratar dos bichos, procuramos devolvê-los à natureza”, diz Valentina. No caso dos que sempre viveram em cativeiro ou perderam a capacidade de se virar, a saída é mandá-los para santuários ecológicos. “Um dia, aliás, vamos inaugurar o nosso”, promete Leonid.

Em abril de 2021, os veterinários dirigiram mais de 800 km até Kharkiv com a missão de resgatar Simba, um leão de 9 meses que enfrentava maus-tratos num diminuto zoológico. “O dono exibia o felino dentro de um shopping. Frequentemente, botava uma coleira no bicho e o levava para passear em meio às lojas, causando um tumulto que perturbava o leãozinho”, diz Valentina. De início, o dono não topou abrir mão do animal. “Gastamos muita saliva para convencê-lo.”
No mesmo zoo de contato, o casal encontrou Anatoli, um filhote de macaco-berbere que estava à beira da morte. “Ele dividia uma gaiola com vários porquinhos-da-índia. Tinha fraturas pelo corpo inteiro e um rasgo imenso no crânio”, recorda Valentina. Outro prisioneiro do zoológico, um primata adulto, mordera e espancara o filhote. “Assim que nos viu, o macaquinho saiu da gaiola aberta e segurou o meu polegar. Era um pedido de ajuda”, diz Leonid.
A dupla aproveitou a viagem e também resgatou Anatoli. “De cara, trocamos o nome dele para Tosya”, conta Valentina. Mais tarde, na clínica, os Stoyanov constataram que o bicho sofre de epilepsia, provocada pela lesão craniana, e gastrite crônica, fruto da má alimentação. Em vez de leite, o zoo lhe fornecia salsicha, pão e água. “Macacos-berberes duram entre duas e três décadas. Com uma saúde tão frágil, o Tosya só vai sobreviver tanto tempo se receber atenção humana. Jamais poderemos libertá-lo”, prevê Leonid.
O casal já fazia certo sucesso antes de adotar o macaquinho. Aparecia em programas de tevê e mantinha um bom número de seguidores nas redes sociais. Tosya, porém, elevou a fama da dupla à enésima potência. Há um ano, Valentina divulgou um vídeo no TikTok em que comia rabanetes com o mascote, sem falar absolutamente nada. Foi uma sensação: a cena rendeu mais de 15 milhões de visualizações. Empolgada, a veterinária decidiu gravar outros vídeos do gênero. Ela só mudava os petiscos do macaco – cenoura, queijo cottage, maçã, blueberry, melancia… O público de diversos países continuou aplaudindo. A glória suprema chegou quando o filhote e a tutora compartilharam um punhado de morangos. A gracinha ultrapassou 180 milhões de visualizações. Lógico que Valentina pegou carona no êxito planetário de Tosya para difundir, em inglês, o trabalho da Vet Crew.
Com a guerra, os fãs do macaquinho resolveram doar remédios, ração e dinheiro à causa dos Stoyanov. “Os donativos possibilitam que a gente atenda todas as necessidades dos animais resgatados. Sempre que sobra alguma coisa, encaminhamos para outros ativistas”, explica Leonid. A maioria das doações estrangeiras advém da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos, da Alemanha e do Brasil. “Nós amamos os brasileiros! Que povo generoso e simpático!”, derrama-se o veterinário. “As mensagens de vocês nas redes sociais nos enchem de calor e afeto. Se tudo correr bem, conheceremos a Amazônia e o Pantanal em breve.”

Fascistas. É assim que o casal define os militares da Rússia. “Vamos expulsá-los! Queria muito estar em combate. Tentei ingressar nos batalhões civis de resistência, mas me barraram porque não sei atirar”, conta Leonid. Valentina faz coro: “Eu também queria ir para o front. Somos pacifistas e não nos metíamos em política. Só que a guerra exige coragem e perseverança de cada ucraniano. Se os russos pretendem usurpar a nossa liberdade, não vamos permitir. Eles imaginavam o quê? Que invadiriam a terra alheia e logo ditariam as regras? Pois vão se dar mal!”
Os dois evitam citar o nome de Putin, “o chefão dos inimigos”. “Basta pensar no cara que sinto calafrios. Idiota!”, esbraveja Leonid. Para a dupla, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, se revelou um líder excepcional, “o único em toda a história ucraniana que abdicou dos próprios interesses e priorizou a nação”. “Qualquer outro já teria fugido do país. Votamos no Zelensky e não nos arrependemos”, diz Valentina.
Os Stoyanov cortaram relações com os amigos e colegas russos. “Eles simplesmente não acreditam que há um genocídio por aqui. Parece que o governo daquele imbecil os hipnotizou”, resmunga Leonid. Ex-praticante de luta livre (ou wrestling), o veterinário perdeu 11 dos 113 kg que pesava antes da guerra. “Culpa da tensão… Há algumas semanas, um míssil passou em cima da nossa casa. O barulho nos acordou às quatro da manhã. Por enquanto, as tropas fascistas não tomaram Odessa. E se tomarem? O que será de nós?”
Em 23 de abril, dezenove dias depois da entrevista, a cidade amargou o pior ataque aéreo desde o começo do conflito. Os russos lançaram sete mísseis contra Odessa. Um dos artefatos atingiu uma zona residencial e matou pelo menos oito pessoas, incluindo um bebê de 3 meses. No TikTok, os Stoyanov informaram estar bem, apesar do susto.
(revista piauí)

terça-feira, 1 de março de 2022

A dor como herança

Uma neta diante das revelações deixadas por escrito pela avó

S
e lhe pedissem para definir a avó materna em poucas palavras, a carioca Nanda Félix não hesitaria em pegar emprestado o título de uma antiga opereta: A Viúva Alegre. Composta pelo austro-húngaro Franz Lehár, a peça cômica narra a trajetória de Hannah, uma jovem bonita, sedutora e espirituosa que herda a fortuna do marido banqueiro. A primeira montagem, de 1905, não agradou. Com o tempo, porém, o espetáculo alcançou tamanho sucesso que acabou ganhando pelo menos três versões cinematográficas. Em março de 1982, quando enviuvou, Maninha – a avó de Félix – já não exibia a mocidade de Hannah (beirava os 60 anos) nem ficou milionária, embora gozasse de boas condições financeiras. Mesmo assim, a neta costumava associá-la à protagonista da opereta famosa. “Como nasci em outubro de 1981, mal conheci o meu avô. Não sei quase nada sobre a personalidade ou os hábitos dele. Em compensação, pude conviver bastante com minha avó, que me dava a impressão de esbanjar felicidade. Era carismática, sagaz, engraçadíssima e, principalmente, curiosa. Ela se interessava por tudo e todos. Não fugia da vida.”

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